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| TRÓPICO, contos, em capa da edição da amazon.com.br |
RAY CUNHA
NÃO HAVIA SIDO um dia de sono restaurador para Amarildo
Teixeira. A periodontite o torturava, de modo que passou o dia
Lá pelas seis horas da tarde apareceu uma cliente, uma senhora elegante,
trajada com sapatos altos de couro preto, meias e vestido também pretos.
Bonita, de belos cabelos negros, quase longos, era patente que estivesse de
luto, pois acumulava duas alianças no dedo anelar esquerdo. Pediu o cardápio e
passado um momento perguntou se a caldeirada de frutos do mar dava para duas
pessoas.
– Dá para
quatro, senhora – informou o garçom Amarildo.
– Traga,
então.
– E para
beber?
– Nada. Fico
sempre muito cheia quando bebo alguma coisa durante o jantar.
Naquela hora não havia quase ninguém no Chorão. Estava tudo silencioso e
agradável. Tudo bem arrumadinho, à espera da turba que não demoraria a chegar
noite afora. Depois que o garçom Amarildo serviu a caldeirada de frutos do mar
pôs-se a observar a mulher. Estava desconfiado de alguma coisa. Não sabia bem
de quê. Ela pediu bastante pão francês e Amarildo serviu-lhe quatro pães. Um,
ela comeu em um relâmpago. O impressionante é que a caldeirada dava mesmo para
quatro pessoas normais e ainda sobrava. Era uma terrina enorme, cheia de um
caldo cheiroso e saboroso com grandes pedaços de peixe, moluscos e toda sorte
de crustáceos. Amarildo Teixeira não acreditou no que viu quando ela o chamou
para pedir a sobremesa. A terrina estava seca, o arroz e o pirão foram
devorados e os pães sumiram.
– Queijo com
goiabada! – ela disse.
O garçom Amarildo ficou confuso. Foi buscar a sobremesa. Quando voltou, a
bela viúva sumira. Amarildo correu para a rua e ainda pôde ver o vulto na
esquina, iluminado pelas primeiras luzes da noite. Não pensou duas vezes. Saiu
no seu encalço. Ao alcançar a esquina, a mulher estava à sua espera e
atirou-lhe uma pedra na cabeça. O garçom escorregou e caiu. Levantou-se. Ela
desaparecera. Amarildo Teixeira voltou para o restaurante. A pedra lhe fez um
galo. “Ainda bem que não foi na testa” – pensou, apalpando o calombo no lado da
cabeça. “Não vou nem contar essa. Ninguém vai acreditar. É melhor não contar. O
pior é que eu vou ter que pagar a conta daquele animal; me deu o cano e quase
quebra minha cabeça. Como é que pode?”
De volta ao Chorão, Amarildo Teixeira foi ao banheiro. Muita gente havia
chegado e o gerente estivera atrás do garçom. Quando Amarildo saiu do banheiro
havia um sujeito em uma das mesas de sua responsabilidade. Um sujeito
grandalhão, um verdadeiro mastodonte, olhando atentamente o cardápio.
Aproximou-se cautelosamente.
– Escute
aqui, meu jovem, esta caldeirada de frutos do mar dá para duas pessoas? –
perguntou.
– Dá para
quatro – disse Amarildo Teixeira.
– Quero uma.
Traga logo uns pãezinhos até chegar a caldeirada.
“Não é possível que esse cara saia correndo também. Não acredito! Até
porque não aguentaria correr com esse corpanzil” – pensou Amarildo, levando
quatro pães franceses para o freguês.
– Putz, ô
meu, só isto? Traga uns dez – pediu-lhe o
homem, passando manteiga em um deles e comendo-o em duas bocadas.
Amarildo Teixeira serviu a terrina de caldeirada olhando fascinado para o
homem. “É um animal de bruta raça” – pensou.
O freguês era bom de boca. Em pouco tempo não restava mais nada na mesa
que pudesse ser comido.
– Ô, meu,
queijo com goiabada! – disse o homenzarrão.
O garçom Amarildo foi buscar o que o sujeito pedira. Serviu a sobremesa;
o tipo devorou-a em segundos e pediu outra. Após comer quatro porções de queijo
com goiabada o gajo não deu tempo para nada. Ergueu-se subitamente da mesa e
partiu para a porta, ganhou a rua e correu em direção à Avenida W3 Norte, com
Amarildo Teixeira atrás. Mas o freguês tinha fôlego de peso pesado. Alcançou
facilmente o calçadão da W3 Norte, onde estacou abruptamente. Amarildo
aproximou-se dele e recebeu um cascudo na cabeça que o fez cambalear e cair.
Levantou-se e retrocedeu. O brutamontes partiu para cima dele. Alcançou-o e lhe
deu uma rasteira, fazendo o garçom se acabar na calçada. Levantou-se às pressas
e correu o quanto pôde para o Chorão. Quando se sentiu em segurança olhou para
trás e viu o mastodonte atravessando lentamente a W3 Norte. Olhou para si e viu
que ficara bastante estragado.
– Aquele
desgraçado quebrou a minha cabeça só com um cascudo. Acho que tinha um pedaço
de ferro na mão. Agora vou ter que pagar duas caldeiradas de frutos do mar e
mais quatro sobremesas – choramingou. – A melhor coisa que eu faço é ir embora para casa.
Mas Amarildo não pôde ir embora, pois faltaram três colegas seus e na sua
ala havia dois esgalamidos querendo caldeirada de frutos do mar.
“Droga, droga, droga” – disse de si para si, e foi buscar a primeira
terrina, decidido a não correr mais atrás de ninguém, nem que tivesse que pagar
a conta com sua poupança na Caixa Econômica Federal.
Do livro TRÓPICO

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