domingo, 11 de novembro de 2012

O apanhador no campo de centeio

BRASÍLIA, 11 de novembro de 2012 – Os dias sucedem-se nublados. Às vezes, abre-se uma gigantesca fresta de sol sobre a cidade, que pulsa ao calor. Há dias de vento forte, e chove. Assim caminha o ano rumo a dezembro, docemente, ao embalo do verão. Há mangueiras que já se vergam ao peso das mangas, belas como enfeites de Natal. Lemos, nas mentes das pessoas, que depositarão novamente todas as suas esperanças no primeiro dia do novo ano. Contudo, isso já está assegurado, porque a vida renasce todos os dias, todos os instantes, e para isso precisamos ouvir apenas o canto dos sabiás, sorrir para as crianças, especialmente as tristes, e oferecer flores aos que amamos, com o mesmo espírito de entrega do poeta ao ofertar rosas para a madrugada.

Dezembro não tardará, trazendo toda a magia da vida, até para os que se julgam perdidos na noite eterna dos danados, pois basta ouvir o riso dos pequeninos para que surja o sol no jardim do coração. Não importa quanto mal tenhamos praticado, mas quando sentimos o perdão todas as correntes se partem para sempre e descobrimos que é fácil voar. A esperança de 1 de janeiro deve se perpetuar para o dia 2 e se renovar, como as manhãs no trópico, até 31 de dezembro. Então, tudo recomeça.

Em 2013, vou abrir de novo meu relicário e ofertar todas as pedras preciosas que conseguir tirar de dentro dele. Posso ofertá-las para sempre, pois surgem mais e mais, infinitamente; são focos de luz, e só os vemos com o coração. Pretendo também ouvir mais a música da madrugada, para produzir mais diamantes, rubis e esmeraldas.

À medida que nos aproximamos de dezembro, a esperança brota numa flor, no canto dos passarinhos, nas mangueiras carregadas de frutos, no riso das crianças, nos olhos da mulher amada. As manhãs são redentoras, as tardes escoam como rios amazônicos e as noites são navios grandes e bem iluminados.

Sou o apanhador no campo de centeio. Estou ali, de vigília, e as crianças brincam de bola. Estou atento. Se a bola cai longe, vou apanhá-la e a devolvo para as crianças. Se uma delas se machuca, cuido do machucado e a consolo; quando elas sentem fome, alimento-as; e se alguma delas quer ficar triste, alegro-a, pois sei que tudo posso; até voar.

E assim vão-se os dias, embalados por ventos tão azuis que cheiram a mar. O Natal logo baterá à porta do meu coração, e virá o novo ano, num voo vertiginoso como o primeiro beijo, roubado dos lábios de um anjo, e tudo isso temos para sempre dentro de cada célula, de cada átomo, de cada quantum da nossa mente.

As madrugadas, as mesmas madrugadas que perpassam o Concerto para Piano e Orquestra, em Ré Menor, de Mozart, essas madrugadas impregnadas de Chanel Número 5 espargido nos labirintos de mistérios do corpo da mulher amada, essas noites tórridas da Amazônia, regadas ao choro dos jasmineiros, esse Atlântico, abrem-se na minha vida em veredas ladeadas por zínias multicoloridas e rosas colombianas, vermelhas. É nas madrugadas que dou à luz personagens que nascem ao computador.

E isso é tudo o que eu quero, além do brilho dos olhos da minha amada, e do riso da minha filha, e da luz dos meus anjinhos, e do cheiro da minha mãe, e do bate-papo com meus antepassados, e dos voos vertiginosos junto com meu pai. Assim, estarei sempre acordado e bem-disposto na missão do apanhador no campo de centeio.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Coachs e escravos não mergulham no azul!

BRASÍLIA, 2 de novembro de 2012 – Corno manso é quem tem ciência de que sua cara-metade lhe põe chifre, mas não tuge, nem muge; prefere repartir a ficar sem nada. Escravo manso, de certa forma, é uma espécie de corno, traído por si mesmo. Induzidos pela empresa na qual trabalham, tornam-se escravos por meio de coaching, palavra originada na cidade húngara de Kocs, à margem do rio Danilo, e onde fabricavam-se carruagens. Kocs é uma palavra húngara parecida com “tutores”. No século XIX, uma universidade adotou o nome “coach” para os professores, e depois técnicos esportistas locais passaram a ser também chamados assim. Nas décadas de 1950 e de 1960, a palavra ganhou o mundo como “coaching”.

Problemas financeiros, falta de mão de obra e fatores que levavam à demissão de funcionários, levaram empresas a contratarem assessores, chamados coachs, para treinarem os funcionários sobre o processo de funcionamento delas. Dava certo. As empresas começaram a investir firmemente em técnicos com capacidade de moldar funcionários para produzir mais sem espernear. Hoje, há quem utilize o processo de coaching até como terapia psicológica, o que, naturalmente, baralha ainda mais a mente do coachee. Pregam os coachs que o coachee alcançará melhor qualidade de vida por meio do coaching.

O objetivo é sempre alcançado com tecnocratas, que acabam se transformando em máquina, o que, no fim das contas, é o que os empresários querem. Quando ocorre de o funcionário ter personalidade, jamais chegará ao fim de um desses treinamentos para ovelha, e certamente entrará na lista negra da empresa, se não for logo demitido. Para quem é trabalhador compulsivo, coaching é um prato cheio, capaz de levar à sublimação robótica.

Todos nós nascemos com facilidade para realizar certas tarefas, com talento e até genialidade. Tudo o que temos a fazer é descobrir, o mais cedo possível, nossa inclinação. Muitos pais estragam a vida dos filhos ao definir a profissão deles. Daí é que surgem médicos assassinos, feirantes doutorados em física, peões que lecionam em escolas públicas, artistas asfixiados num banco e milhões de pessoas atrás de um alto salário num emprego público, no qual se masturbará o resto da vida. Outro drama na vida de funcionários infelizes é sonhar ou com o passado ou com o futuro. Como ambos não existem, sonham mesmo.

Há também outra questão: a da fidelidade. Acompanhei o caso de uma estagiária numa determinada empresa. Foi-lhe exigida uma carga de trabalho que nem o melhor coach do planeta conseguiria extrair dela, mesmo que fosse escrava na acepção clássica do termo. Morreria apanhando e não daria conta do que lhe impuseram, mas foi fiel consigo mesma, revelando personalidade. Sua atitude foi vista como irresponsável pelo seu coach. Ora, quem não tem fidelidade consigo mesmo será sempre um bosta n’água, flutuando ao sabor da maré.

Pessoalmente, eu mesmo sou quem oficia missa na minha igrejinha pessoal, razão pela qual não fiz sucesso em algumas das empresas em que trabalhei, porque os coachs, que não são apenas os próprios, mas qualquer escravocrata, acham que o único mundo que existe é o que existe na cabeça deles. Nem desconfiam que o agora é intenso, ilimitado e eterno, e talvez jamais sintam o perfume da vida, vertiginoso mergulho no azul.