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Dezessete escritores amapaenses reunidos em 67 contos |
RAY CUNHA
BRASÍLIA, 19 DE JULHO DE 2023 – Dezessete contistas
do estado do Amapá, a chamada Guiana brasileira, na Amazônia Azul, mostram, na
antologia LITERATURA AMAPAENSE – CONTOS ESCOLHIDOS, com 67 contos em 273 páginas,
o que se escreve no extremo norte do litoral brasileiro, revelando cheiros e
rumores de um outro Brasil, aquele voltado para o Caribe. A antologia pode ser adquirida, tanto impressa como em e-boock, na amazon.com.br e na amazon.
Organizada por Mauro Guilherme, os contistas são: Rui
Guilherme, Wilson Carvalho, Paulo Tarso Barros, Fernando Canto, João Barbosa,
Paulo Rebelo, Lulih Rojanski, Luiz Jorge, José Edson dos Santos, Ricardo
Pontes, César Bernardo, Edgar Rodrigues, Angela Nunes, Joseli Dias e Janete
Santos, além de mim.
“Decidi reunir nesta antologia os contistas do estado do
Amapá, seja os que ainda moram aqui, seja os que começaram as suas publicações
no Amapá, mas depois seguiram a sua vida literária em outros estados” – escreve
Mauro Guilherme, no prefácio, referindo-se a casos como o meu, que vivo em
Brasília/DF.
“Além de dar visibilidade à literatura amapaense, meu
intuito é oferecer um norte ao leitor, aos estudantes e aos professores do
estado. É que os vejo tateando no vazio em busca de informações sobre os
escritores amapaenses e os livros publicados por eles” – diz Guilherme.
Com efeito, Macapá, a capital do Amapá, tem universidade
federal e faculdades de literatura, mas jamais criaram cadeiras de literatura
da Amazônia, muito menos de literatura amapaense. Também jamais houve a
iniciativa de uma feira literária em Macapá.
Arremata Guilherme: “Pedi especialmente aos escritores desta
antologia que citassem em sua biografia os livros que já publicaram e as
antologias de que participaram, porque quero que os leitores e os professores
saibam quais as obras e quais autores fazem a história do conto no Amapá”.
Quanto a mim, sou autor de dois romances que considero um
raio X do Amapá e da Amazônia: JAMBU (há um exemplar na Biblioteca da Universidade
Federal do Amapá – Unifap) e A CASA AMARELA (salvo engano, há exemplares na
Biblioteca Professora Elcy Lacerda, em Macapá).
Segue o conto LATITUDE ZERO, que já publiquei nos livros TRÓPICO ÚMIDO e TODAS AS GERAÇÕES.
O DEPÓSITO de madeira estava adormecido como tudo o
mais na madrugada, exceto a luz do poste debatendo-se para escapar da névoa. A
claridade lutava para libertar-se da neblina pegajosa, e como carnicão rompendo
a película do tumor, vazava, arrastando-se até o depósito de madeira,
infiltrava-se por uma fresta e incidia sobre o cenho franzido de um rapaz. Ele
parecia morto, pois respirava imperceptivelmente.
A luz do poste, agora, agonizava na claridade dúbia do
amanhecer. Uma chuva pôs-se a cair, adensando o ar saturado de umidade. O rapaz
mexeu-se, num gesto instintivo de quem tem frio. Encolheu-se mais, agasalhando
as mãos entre as coxas. As tábuas sobre as quais deitara machucavam-no. Isto o
despertou. Abriu os olhos como uma boneca: só as pestanas mexeram-se. O resto
todo ficou imóvel. Depois procurou alguém com o olhar. Viu-o um pouco abaixo.
Moacir Canto dormia ainda. O rapaz levantou-se, estremunhado, e ficou olhando
para Moacir Canto. Apalpou o bolso traseiro à procura da carteira porta-cédula
e não a encontrou. Meteu o polegar e o indicador no bolsinho da calça e puxou
uma nota de cinquenta cruzeiros. Neste momento Moacir Canto despertou.
– Perdi a bolsa – disse o rapaz, que se chamava Alexandre. –
Mas tinha guardado cinquenta cruzeiros no bolsinho da calça.
– Porra... – disse o outro.
Olharam-se e depois cada qual olhou para si próprio. Haviam
começado a farra no GEN, o bar do ex-policial, que ficava na Rua Tiradentes.
Alexandre havia ganhado as obras completas dos irmãos Grimm em um concurso de
contos e vendeu-as para a tia de Moacir Canto por duzentos cruzeiros. Separou
uma nota de cinquenta, pô-la no bolsinho da calça e foram para o GEN. Tavares,
o ex-tira, estava lá no lugar de sempre, diligente, servindo bebida a dois
caras. Alexandre pediu meiota de Pitú. Tavares serviu-os com tira-gosto de
jenipapo.
Limitavam-se a beber. Moacir Canto incrustara-se no
silêncio. Livrava-se do rancor que levava consigo cagando em cima dos outros.
Certa vez, trepado numa árvore da Praça Veiga Cabral, deu uma cagada tão
surpreendente na cabeça de um homem que o derrubou no chão. Quando o tipo
recobrou-se, Moacir Canto já tinha se limpado, levantado as calças e se jogado
de um galho mais baixo. Pôs-se ao fresco quase caindo de tanto rir. Certa
noite, pediu a Alexandre para segui-lo de bicicleta. Moacir Canto ia na garupa
de outra bicicleta, pilotada por Grosseiro. Ficaram andando um pouco pela Praça
Nossa Senhora da Conceição, até que passaram por uma moça e uma menina.
Grosseiro fez a volta, pedalando sem pressa, e tirou o fino da menina. Moacir
Canto se ajeitou e deu tal soco nas costas dela que o barulho ecoou na praça
inteira. Mas engraçado foi quando uma noite Moacir Canto achou uma folha de
coqueiro e saiu à procura de vítimas com Grosseiro. Alexandre foi atrás para
ver. Iam a certa altura da Rua Leopoldo Machado quando viram seis estudantes,
uma ao lado da outra, ocupando a largura do passeio público e parte da pista. O
tronco da folha de coqueiro ia pegar no pescoço dela. Era a mais alta; uma moça
rosada e vigorosa. Ela se abaixou na hora e a folha de coqueiro passou voando
por cima da sua cabeça. Moacir canto perdeu o equilíbrio e caiu. A moça pegou a
folha de coqueiro e desferiu um golpe no queixo de Moacir Canto, que ia se
levantando do asfalto. Grosseiro havia estacionado adiante e morria de rir.
Alexandre passou por perto de Moacir Canto e salvou-o de seis mulheres
furiosas. Para se vingar, Moacir Canto foi à sua casa, pegou um fio elétrico e
saiu atrás das moças. Como não as encontrou, atacou uma velha, dando-lhe tal
lambada no pescoço que a velha caiu com um grito horripilante.
Ele era um cara assim mesmo. Seu ódio provinha da condição
em que o pai deixara a família, na miséria, para enrabichar-se por uma menina
de quinze anos, mas que o manobrava como uma puta experiente. No Dia dos Pais,
Moacir Canto entrou lá e deu uma paulada na venta do velho, arrancando-lhe pelo
menos um dente. O pai de Moacir Canto era policial. Telefonou para a polícia a
fim de que pegassem o rapazinho, que devia estar drogado para fazer um negócio
daqueles. Ficou por isso mesmo. A sorte de Moacir Canto era sua beleza. Tinha
um belo queixo quadrado, o rosto oval, sobrancelhas bem feitas e cabeleira
leonina. Seus olhos, entretanto, despertavam medo, sobretudo quando estava
estupidificado de maconha. Certa vez, Alexandre, Moacir Canto, Grosseiro e
Galego Demônio amanheceram na Praia do Barbosa. Alexandre e Grosseiro dormiam
ainda. Moacir Canto e Galego Demônio já haviam acordado há algum tempo quando
avistaram a menina. Correram em cima dela, agarraram-na e arrastaram-na para
detrás de um aturiá. Alexandre e Grosseiro acordaram com os gritos, correram
para lá e viram Moacir Canto tentando penetrar a menina por trás, enquanto
Galego Demônio segurava-a pelos cabelos, pelejando para a menina chupar o pênis
grande, mole e purulento que lhe empurrava no rosto. De todos eles, Alexandre
era o único que tinha um pouco de sensatez, e Grosseiro o atendia como a um
cão. E assim livraram dos répteis a menina.
– Está na hora da gente se escafeder – disse Moacir Canto,
no GEN.
Pegaram a Rua Cândido Mendes e seguiram em direção ao
Igarapé das Mulheres. Todas as noites Alexandre ia à casa de Angélica, Sílvia e
Graciette. Angélica estava no portão da varanda. Era pequena e fofa. Usava os
cabelos, de cor indefinido, bem curtos. Tinha os olhos da cor dos cabelos e era
estrábica, e tudo chamava a atenção no seu rosto: o nariz arrebitado e os
lábios vermelhos e entreabertos, como rosa despedaçada e sumarenta. Isto, e os
olhos, davam-lhe um ar de avidez ninfomaníaca. Sílvia parecia uma fada morena.
Tinha a pele cor de leite, os cabelos negríssimos e longos, e os olhos azuis,
da cor dos olhos do pai. Vivia sorrindo, com seus lábios rosados. Tinha os
dedos longos, ágeis ao piano. Era bem mais alta do que Graciette. Os olhos de
Graciette ficavam entre castanho e verde. Usava unhas longas, que pintava de
vermelho, e punha uma língua tão comprida na boca dos rapazes que os sufocava.
Era ruiva. Puxava a mãe, uma potra ainda jovem que tinha o mesmo olhar
canibalesco de Angélica.
As duas outras garotas estavam na sala ouvindo os Beatles.
Nem bem os dois chegaram, Sílvia foi logo convidando Alexandre para dançar. Ele
ficou excitado. Sabia o jogo. Ela se encostava nele, os longos cabelos negros
caindo pelo rosto e pelos ombros de Alexandre. Ela não usava soutien; os seios
duros espetavam-no, e ele, de vez em quando, via os bicos rosados dos peitos
através da blusa meio desabotoada. Alexandre ia ficando cada vez mais
descontrolado. Ela batia com o púbis sobre o pênis de Alexandre, rijo como um
osso, e ele aparava as batidas prestes a gozar.
– Vamos para o quarto? – disse Alexandre.
Ela não falou nada. Puxou-o pela mão em direção ao quarto
amplo e bem arrumado. Sílvia era tão delicada! Desafivelou o cinto, abaixou o
fecho éclair - ele não usava cueca –, pôs o pênis duro para fora. Ela, com seus
olhos azuis, olhava maravilhada para o pênis.
– Caralhinho lindo! – disse, e desceu, suavemente, seus
lábios rosados sobre a glande vermelho-escura, que estava para estourar. Ele
não aguentou muito tempo. Logo se desintegrou em um gozo suculento, inundando
aquela boca de fada, respingando de esperma os lábios sedentos.
Três pares de olhos acompanhavam tudo, sem perder nada. Ao
ver o suco espermático escorrendo da boca da irmã, Angélica se despiu num
piscar de olhos. Tinha a bundinha mais linda do mundo. Estava gozando só de
ver. Possuía o dom dos gozos múltiplos. Pegou os cabelos de Alexandre e puxou-o
para seu púbis. Cheirava a Mateus Rosé, e o líquido que escorria pela sua coxa
tinha sabor de acme. Ao ver o traseiro de Angélica, Moacir Canto enfiou-se ali.
Graciette masturbava-se com seus dedos de garras e chorava.
Era meia-noite. Os cinco estavam banhados, na sala, bebendo
vodka e ouvindo os Beatles, quando a mãe das meninas chegou. O pai delas, como
sempre, fora a Belém. Dona Frênia deu um alô para os garotos, a caminho do seu
quarto.
– A velha está bêbeda – Moacir Canto cochichou para
Alexandre.
Foi neste momento que a garrafa de Wyborowa do pai das
meninas, que Alexandre bebeu, subiu de uma vez para a cabeça dele.
– Vou fodê-la – disse, ensaiando ir para o quarto da dona
Frênia.
Moacir Canto estava em melhor estado. Atirou-se de cabeça
nele. As meninas jogaram-se também em cima dele. Acabou tudo numa risada geral.
Quando Alexandre voltou a si estava deitado no meio da Rua
Cândido Mendes, de braços estendidos como Jesus Cristo na cruz, gritando:
fodam-se seus filhos da puta. Então começou a chover. O chofer do táxi não
estava vendo as coisas muito bem e pegou um susto ao vislumbrar aquele vulto
erguer-se do asfalto quase em cima do carro. Parou para averiguar do que se
tratava. Alexandre entrou no táxi. Moacir Canto veio correndo da calçada, onde
estivera vomitando, e entrou no carro.
– Bar Caboclo – Alexandre disse ao motorista.
A chuva engrossara. Da mesa onde estavam podiam ver a chuva
estalar na calçada. Bebiam em silêncio a meiota, em pequenos goles de
apreciadores de bebida.
– Vamos voltar à casa das meninas? – Alexandre sugeriu.
Moacir Canto levantou-se incontinenti.
– Desta vez quem vai comer a velha sou eu – disse.
– Está bem – Alexandre concordou, chamando o garçom e
pagando a meiota.
Saíram do bar na chuva, que estava mais fina agora.
Atravessaram a Rua Cândido Mendes na altura do antigo Igarapé da Fortaleza.
Escorregaram numa poça d’água no outro lado da rua. Chapinharam lá dentro, até
que Moacir Canto conseguiu levantar-se e arrastar Alexandre para fora da poça. Andaram
em direção ao rio Amazonas, mas pararam logo adiante, ao verem que alguém
passava a chuva debaixo de uma marquise. Aproximaram-se. Era uma moça. Moacir
Canto disse alguma coisa para a moça. Ela tentou falar, mas era muda. Moacir
Canto pegou-a e começou a se esfregar nela. A moça tentava afastá-lo. Moacir
Canto subiu a saia dela e depois desceu a calcinha. A muda começou a rir e
depois procurou beijar Moacir Canto. Ele se desviava dos seus beijos e aquilo
fazia Alexandre se torcer de rir. Quando parou de rir não viu mais a muda.
Moacir Canto estava com uma calcinha na mão. De quem diabo era aquilo? Subiram
por uma escada lá mesmo naquele prédio.
– Conheço um cara que mora em um apartamento lá em cima –
disse Moacir Canto. – É da polícia e é veado.
Bateram lá e logo um sujeito branquela meteu a cara na porta
entreaberta.
– Oh! você! – disse para Moacir Canto, olhando também para
Alexandre. – Entrem! Entrem! Vou preparar um drink para vocês. Por que vocês
não tomam banho?
Serviu duas doses generosas de whisky e foi ver o frango que
pusera no fogo. O cheiro da canja empestava o ambiente, mas para os bêbedos
nada importava. Sentaram-se, com o whisky ao lado, e puseram-se a bater papo.
– Tenho roupas secas... – interrompeu o escrivão, tentando
atrair a atenção deles.
– Basta o teu whisky – disse Moacir Canto.
– Isto aqui é um buraco – dizia Alexandre, deixando o
escrivão desconfiado. – Uma merda! Senão vejamos: que escritor temos aqui?
Nenhum! Há o R. Lima, mas o R. Lima não escreveu mais do que um livro de
poemas, que teve uma tiragem ridícula de quinhentos exemplares. E por quê?
Porque não temos editora, porque não temos público, porque não temos aplauso.
O escrivão ficou menos preocupado ao perceber que não
falavam do seu apartamento.
– É uma sepultura... – disse Moacir Canto.
– Uma sepultura e uma fábrica de poetastros – disse
Alexandre. – Vês o caso do Galego Demônio, que lança um livro mimeografado por
semana...
– Não sei como aquele traficante que banca as baboseiras
dele ainda não percebeu que se trata de um psicopata mitomaníaco e
megalomaníaco.
– No seu livro mais recente ele resgata os últimos estupros
que cometeu – disse Alexandre.
– Nem a irmã dele escapou – disse Moacir Canto. – E com
aquela gonorreia crônica...
– Quis comer o diretor do Colégio Amapaense, o professor
Olhudo.
No dia em que isso aconteceu, Alexandre estava estudando em
casa para fazer quatro provas logo mais à noite quando Galego Demônio chegou
com seu livro Eu Imortal debaixo do braço.
– Vamos já para Serra do Navio – disse a Alexandre.
– Tenho quatro provas hoje à noite.
– O estudo formal embota os neurônios. Já está tudo certo:
vagão-leito especial no trem, suíte no hotel e duas professoras mineiras para
uma bacanal.
Alexandre ficou calado.
– Partamos já para a aventura! A rotina é um veneno lento. O
bar nos espera. Serra do Navio é um apelo irresistível com suas fêmeas
mineiras.
– Resolvi ir, mas não porque Galego Demônio tivesse me
convencido a ir, com aquele papo dele. Estava entediado só de pensar nas quatro
provas.
Moacir Canto serviu novas doses de whisky e Alexandre pôs-se
a contar o resto do caso. Já anoitecia quando ele e Galego Demônio saíram da
casa de Alexandre, entraram no bar da esquina e pediram uma meiota. Não
demoraram lá e foram a seguir para o Picolé Amigo, um bar onde R. Lima bebia de
vez em quando. Com efeito, encontraram-no lá.
– Lembro-me que no Picolé Amigo houve uma discussão entre R.
Lima e Galego Demônio. Galego Demônio estava botando muita banca e R. Lima
disse que seu livro deveria se chamar Eu Idiota, porque ao ler os originais de
Eu Imortal encontrara jacaré com g.
– Do ponto de vista da linguística é possível - Galego
Demônio se defendeu. - Sobretudo para um niilista igual a mim.
– E foi com o niilismo dele que eu tomei no rabo - disse
Alexandre para Moacir Canto. Acabara resolvendo, no Picolé Amigo, que deveria
fazer as quatro provas, e não teve quem o dissuadisse da ideia. Galego Demônio
foi com Alexandre para matar algumas questões. Ao chegarem ao Colégio Amapaense
um inspetor disse-lhes que não podiam entrar senão uniformizados. Alexandre
pediu para falar com o diretor. Impressionado, ou melhor, narcotizado com o
bafo de bebida, o inspetor não opôs objeção em anunciá-los ao diretor, que
estava ali perto fiscalizando ele próprio se os seus meninos encontravam-se
devidamente uniformizados. Quando Alexandre e Galego Demônio se aproximaram do
diretor ele estava atendendo um recruta do Exército que saíra do quartel
diretamente para o Colégio Amapaense, de modo que não pudera vestir o uniforme
de estudante. Levado pelo hábito, o rapaz se perfilou.
– Ô idiota! Esse gajo não passa de um professor de História!
- observou Alexandre para o recruta.
– O quê?! – gaguejou o diretor.
– Seu merda, foste tu que levaste A Galinha para o
governador, aquele ditador do caralho – disse Alexandre, referindo-se ao
jornalzinho que lhe rendera dez dias de suspensão.
– Vou chamar a polícia – disse o diretor, com seus olhos que
eram esbugalhados de nascença.
Galego Demônio tinha visto umas fêmeas gostosas e tentou
pegar no rabo de uma delas. A moça deu um grito que chamou a atenção do
diretor; ele passou uma reprimenda em Galego Demônio. A reprimenda foi mesmo
que nada. Galego Demônio já estava com o pau para fora e tentou metê-lo no
diretor.
– Foi uma cena muito engraçada aquele veado de uma figa
correndo com o Galego Demônio atrás, com aquele pau mole dele, pingando
gonorreia. Descemos correndo a escada, pois a polícia já fora chamada, e
voltamos ao bar onde deixáramos R. Lima. Pedimos mais uma garrafa de Pitú.
Iríamos cedo para Santana e de lá embarcaríamos para Serra do Navio. Mais ou
menos à meia-noite R. Lima foi embora e ficamos só nós dois no bar. Tomamos
mais duas e zarpamos. Daí não me lembro mais de quase nada.
Alexandre cochilou. Acordou com uns respingos quentes no
braço. Moacir Canto tinha se levantado, aberto a panela de canja e levou-a para
a sala, quando a panela virou, espalhando canja pelo chão. O escrivão cantava
alegremente no banheiro. Moacir Canto pegou o que ainda restava da canja na
panela, foi até a porta do banheiro e jogou a canja lá para dentro. O escrivão
deu um berro. Ao ouvir o grito, Alexandre levantou-se rapidamente pronto para
correr. Antes de ir embora Moacir Canto olhou em volta e depois, como se
lembrasse de algo, pegou a chave da porta. Nestas alturas o escrivão saiu do
banheiro chorando e todo melado de canja. Moacir Canto saiu e fechou a porta
por fora. Lá embaixo, jogou a chave no esgoto que cortava a rua
longitudinalmente.
– Vamos pegar um ar lá na amurada? – disse Alexandre.
– Vamos pegar um rato podre no pescoço? – disse Moacir
Canto, atirando nas costas de Alexandre uma ratazana morta, que encontrara na
calçada, correndo depois para a amurada que dava para o rio, ao lado da
Fortaleza São José de Macapá.
Alexandre abaixou-se numa poça de água e lavou o pescoço.
Depois andou em direção a um depósito de madeira. Moacir Canto veio também e
entrou no depósito. Alexandre adormeceu recordando de A Galinha, o jornalzinho
que não passou do primeiro número. Havia, em sala de aula, um ricaço. O pai era
dono de boa parte da cidade. Ele se ofereceu para financiar o jornal. Foram,
então, uma noite, para a casa do ricaço. O filho dele os levou para o gabinete
de trabalho do velho. Lá pelas tantas Alexandre tirou o telefone do gancho e
discou um número qualquer. Nestas alturas, o velho estava tomando soro no
quarto dele e apanhou a extensão para saber do que se tratava àquela hora da
noite, quase onze horas.
– Alô! – disse uma voz de mulher, sonolenta.
– Quem é?
– Solange – disse a voz.
– Oh! Solange! Minha doce cadelinha, vaquinha linda, minha
bocetinha fedendo a merda, vou já aí para empurrar meu caralho na doçura do teu
jardim de trás...
O ricaço arrancou a agulha da veia, pegou um cinto e
irrompeu no escritório. O velho entrou dando lambada no filho dele. Havia, além
de Alexandre, outro redator, um garotão de cabeça raspada, que montou na sua
bicicleta e se evaporou.
O primeiro número do jornal, e único, saiu com uma matéria
sobre o governador, o general ditador do Amapá. Dizia que ele passava o dia de
binóculos por trás das persianas da sua sala, no Palácio do Setentrião,
tentando ver, do outro lado da Praça da Bandeira, as calcinhas das estudantes
que se sentavam sobre o muro do Colégio Amapaense. Sobre o diretor do
educandário dizia que tinha um acordo tácito com algumas de suas alunas, de
modo que lhes dava nota dez se elas se arreganhassem e o deixassem ver suas
calcinhas nas aulas de História. Na mesma edição foram escolhidos os dez mais
punheteiros. O diretor enviou um exemplar do jornal ao secretário de Educação,
que o enviou ao governador. Mas nesse trâmite o exemplar desapareceu. Houve um
inquérito e os responsáveis por A Galinha, que na expectativa dos rapazes
deveria pôr ovos de ouro, acabou rendendo-lhes dez dias de suspensão.
Quanto a Galego Demônio, naquele mesmo dia tropical úmido em
que Alexandre ganhou as obras completas dos irmãos Grimm, o poeta entrou no
Gato Azul e pediu uma dose de rum Montilla. Fazia aquilo ordinariamente e bebia
até o anoitecer. Então voltava para casa, jantava e saía. Naquele dia bebera
além do normal. Ao retornar a casa não encontrou ninguém. Estava sozinho. O pai
fora comprar açaí no arquipélago do Marajó; a mãe estava em Belém; a irmã, sabe
Deus. Foi ao fogão. Comeu nas próprias panelas. Sentia-se pesado. Foi ao
quarto. Deitou-se. Dormiu. Canguru Sem Freio, a irmã, estivera escondida,
espreitando-o. A claridade da luminária do poste vencia o piche da noite sem
estrelas e entrava no quarto, banhando os móveis com um manto irreal. Galego
Demônio dormia de peito para cima. Assim, dormindo, era belo como qualquer
jovem da sua idade. A primeira machadada pegou no lado do pescoço. Galego
Demônio acordou como se estivesse impulsionado por molas. Tentou agarrar-se em
alguma coisa e começou a gorgolejar como porco sangrando. Canguru Sem Freio
ligou a lâmpada e olhou para Galego Demônio. Ergueu de novo o machado. Galego
Demônio fitou-o aterrado e começou a arrastar-se para um dos lados da cama, já
empapada de sangue. Canguru Sem Freio depôs o machado no chão, com o cabo
encostado na cama, desafivelou o cinto de Galego Demônio e arriou sua calça,
juntamente com a cueca. O pênis de Galego Demônio estava com os curativos
purulentos como sempre. A machadada deixou-o apenas pendurado pela pele do
escroto. A próxima machadada seccionou-o. Depois, Canguru Sem Freio aprumou bem
o machado, como se fosse dar o golpe final em um tronco que estivera tentando
partir ao meio, e desceu-o. A cabeça de Galego Demônio pulou e foi bater na
parede. Canguru Sem Freio arrastou o corpo mutilado, desceu as escadas,
caminhou até o monturo e atirou-o sobre o monte de caroços de açaí. Chovia como
o diabo. Canguru Sem Freio voltou ao quarto de Galego Demônio, levando seu
pistom, e pôs-se a tocar O Silêncio.