terça-feira, 31 de outubro de 2023

O grande romance carioca e da Amazônia


Capitu metia chifre em Bentinho? Se metia, e daí?

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 31 DE OUTUBRO DE 2023 – Machado de Assis é, provavelmente, o escritor mais emblemático do Brasil, por ser muito conhecido e mulato. Na escola, tanto no ensino fundamental como no médio, os professores costumam apresentar uma foto dele feita talvez com o propósito de disfarçá-lo, de maquiá-lo como branco, uma tentativa de esconder que a mestiçagem é a base da etnia brasileira; somos um caldeirão étnico misturando três elementos: o europeu, índio e o africano. O resultado é o povo mais maravilhoso que há na face da Terra, um povo que não discrimina a cor da pele nem religiões. Há uma discriminação, mas superficial, aquela que é mais um impulso do que um abismo, como nos Estados Unidos e na África do Sul.

Machado também é emblemático porque nasceu no morro; era pobre, é claro. Estudou em escolas públicas, jamais frequentou universidade e foi funcionário público a vida toda. Mas, mesmo assim, fundou a Academia Brasileira de Letras. Os brasileiros gostam de academias. Acho que em cada uma das 5.570 cidades brasileiras há uma academia de letras; e seus membros se sentem tão importantes quanto Machado. 

Não sei o que os portugueses, que são os criadores do Brasil, acham de Machado; talvez achem que é mais um negro tentando dizer alguma coisa da senzala. Só não é conhecido mundialmente porque era brasileiro e escrevia em português. Se tivesse nascido, hoje, estaria ferrado. Entre os brasileiros de hoje, e não sei se sempre foi assim, fazer sucesso é uma ofensa pessoal. Não sei de onde vem essa inveja, mas é assim. Jorge Amado só fez sucesso porque foi ajudado pelo Partido Comunista, que é uma espécie de igreja: de um lado, os cardeais; do outro lado, a miudeza dos corruptos e a multidão de ingênuos. Amado era cardeal. 

Creio que o ponto mais alto de Machado é Dom Casmurro, romance que tem como sinopse o ciúme. Ou fofoca? Ciúme é um elemento muito forte na cultura brasileira. O que é ciúme? É possessividade, uma pessoa dona do outro; e é assim que é, todo mundo é dono do outro, aqui no Brasil. 

Contudo, Machado cria, em Dom Casmurro, senão a personagem feminina mais sensual de toda a literatura brasileira, o que eu identifico como a mulher carioca. O fato é que Capitu é uma personagem deliciosa, o embrião da carioca moderna, que mora ou frequenta Copacabana, Ipanema e o Baixo Leblon, é malemolente e tem olhos de ressaca do mar. 

Para muitos, Capitu simplesmente metia chifre no marido, com o melhor amigo dele, ou amigo da onça, como se dizia nos anos 1960. Para outros tantos, Capitu era apenas objeto de fofoca, e seu marido, Bentinho, paranoico. A questão é que o brasileiro, como de resto o machão ibero-americano, se pela de medo de imaginar sua santa esposa sendo trabalhada por terceiros. 

Na Amazônia, temos um escritor tão denso quanto Machado de Assis, mas com outro estilo: Dalcídio Jurandir. Ele é pouco conhecido porque os paraenses não são bons para aplaudir e vender seus próprios escritores, pelo que já observei. Aliás, isso acontece na Amazônia toda. 

No livro mais emblemático de Dalcídio, Chove Nos Campos de Cachoeira, publicado em 1941, ele cria personagens de carne, osso e alma, como Capitu. Enquanto Capitu cheira uma mistura de maresia com Chanel 5, o personagem central de Chove Nos Campos de Cachoeira é o menino Alfredo, que sonha sair do Marajó e morar em Belém, sonho que ele reparte com um caroço de tucumã, que é um coquinho da Amazônia. Esse moleque deve feder a pitiú. 

Em contraste com Alfredo, seu irmão, Eutanázio, de 40 anos, é destituído de sonhos; não tem sequer um objetivo, nem sentido na própria vida. Vive em um mundo absurdo. Para completar sua miséria, a jovem Irene o despreza. As personagens de ficção de Dalcídio povoam seus livros como fantasmas, ora em um, ora em outro, em épocas diferentes, às vezes com o mesmo nome. 

Dacídio lembra Faulkner. Enquanto Faulkner recria o sul dos Estados Unidos, mergulhado em sangue coagulado, espirrado da negrura do preconceito, Dalcídio apresenta uma Amazônia suja de lama, cabocos com a alma amortecida por cachaça, da mesma forma que seu doce linguajar silencia no amortecimento da língua pelo espilantol, o princípio ativo do jambu, a emblemática erva do tacacá, que é uma comida de origem indígena. 

Como nunca entraram no mercado para valer, os livros de Dalcídio são raros, e desconhecidos, é claro. Ele é o tipo de escritor que deveria ser editado e distribuído em edições comentadas, mas, como eu disse, os paraenses não são bons para vender arte. Creio que haja vários trabalhos acadêmicos sobre Dalcídio, mas não chegam às livrarias. Aliás, pouco da produção acadêmica do Brasil, quanto mais da Amazônia, chega ao mercado. 

De qualquer forma, Dalcídio está naquele grupo de escritores clássicos, como William Shakespeare, Miguel de Cervantes Saavedra, Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, e todo esse pessoal que escreve em vernáculo; esse pessoal que deve ser lido em edições comentadas, a menos que o leitor os conheça muito, ou se identifique muito com eles. 

Falar em Faulkner, ele usava a técnica do fluxo de consciência, também utilizada por James Joyce, Marcel Proust, Thomas Mann, Virginia Woolf. Foi ele que narrou, como nenhum outro escritor, a decadência do sul dos Estados Unidos, criando inclusive um condado imaginário, Yoknapatawpha. Ele também criava múltiplos pontos de vista simultaneamente e utilizava mudanças bruscas de tempo narrativo. 

Hoje, os Estados Unidos são muito diferentes do país de Faulkner, que nasceu trinta anos após o Sul ter sido derrotado pelo Norte. O Sul, então, vivia sob a supremacia dos brancos de origem inglesa, protestantes, puritanos e coloniais. Antes de se tornar um dos maiores escritores de todos os tempos, Faulkner foi um faz-tudo. 

Como era baixinho para os padrões americanos, media 1,65 metro, foi recusado pelo serviço militar americano, e, assim, se alistou na Força Aérea canadense. Depois, passou um ano na Universidade do Mississippi, em Oxford, onde estudou inglês, francês e espanhol. De lá, foi trabalhar em uma livraria em Nova York, foi demitido porque lia em serviço e retornou para Oxford, onde trabalhou como carpinteiro, pintor de parede e agente dos Correios. 

Seu primeiro livro foi de poemas, The Marble Faun, publicado em 1924. No ano seguinte, foi para Nova Orleans, onde conheceu e foi influenciado por Sherwood Anderson, escreveu artigos para jornais e revistas e publicou seu primeiro romance, Paga de Soldado, em 1926. 

Deixou Nova Orleans em 1929 e se estabeleceu em Oxford, onde se casou com Estela Oldham e publicou Sartoris, o primeiro romance passado em Yoknapatawpha. Aí, vieram alguns livros que granjeariam respeito da crítica, mas só começou mesmo a vender bem com Santuário, de 1931; porém, quando estava precisando muito de dinheiro conseguia grana em Hollywood, como roteirista. 

Acho que ele chegou ao seu maior apuro com O Som e a Fúria, de 1929, a história dos Compson, decadente família do Mississippi. Faulkner disse que esse romance surgiu a partir da imagem de uma garotinha, Candance, Caddy, com a calcinha suja de lama, trepada numa árvore, descrevendo para seus irmãos pequenos e para os empregados domésticos negros o funeral da sua avó. 

A trajetória de Caddy é contada por meio do ponto de vista de seus irmãos, como Benjamin, Ben ou Benjy, que é idiota. “Uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria”, do monólogo de Macbeth, de William Shakespeare, em um fluxo contínuo de passado e presente, com o ar gasto de tanto carregar sons. 

Quanto à fúria, é a da derrocada. O próprio cansaço. Quando a personagem Dilsey assume a narrativa ela diz que os brancos se cansam facilmente, enquanto ela tinha que fazer todo o trabalho pesado e envelhecia. Mas ela sabia que todos são iguais. Ela diz, abrir aspas: “Os brancos morrem também. A tua avó morreu que nem qualquer negro”. Fechar aspas. 

Porém o que mais me impressiona na obra de Faulkner é a transcrição para o papel do fluxo de pensamento. Ele faz isso em longos parágrafos, longos períodos, com pontuação irregular. É o tal fluxo de consciência de Proust e Joyce, o que exige, no mínimo, cumplicidade do leitor, além de muita concentração e mais ainda interesse, se não o leitor não irá adiante.

Gosto do fluxo de consciência. Acho que todo mundo gosta. O romance em que melhor usei o fluxo de consciência foi em A CASA AMARELA, o zeitgeist de Macapá/AP, minha cidade natal, durante os 21 anos de regime militar. A CASA AMARELA foi selecionado pelo UOL como o romance mais emblemático do Amapá, embora quase ninguém, lá, me conheça. Talvez me ignorem porque sou conservador.

A CASA AMARELA, edição do Clube de Autores: o zeitgeist de Macapá

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Um louco... e sua comunicação, happening no salão da Rádio Educadora São José de Macapá

O escritor e sua estante, no Sudoeste, em Brasília/DF, onde mora

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 27 DE OUTUBRO DE 2023 – Depois de lançar XARDA MISTURADA (poemas, Macapá, 1971, 45 páginas), de Joy Edson (José Edson dos Santos), José Montoril e deste que ora lhes escreve, atravessei o rio Amazonas de Macapá/AP para Belém/PA, peguei a Belém-Brasília, que ainda estava em construção, de carona com um caminhoneiro, e fui para o Rio de Janeiro, em 1972.

Com 17 anos, não tinha sequer carteira de identidade. Levava apenas algumas dezenas de XARDA MISTURADA, que fui vendendo e sobrevivendo. A princípio, fiquei na casa de um amigo meu, em Niterói, e depois fui morar numa vaga, em Copacabana, ajudado pelo Itabaracy Nunes Batista, irmão do músico Aimorezinho.

No Rio, fiz um curso na Escola de Teatro de Comédia da Guanabara e encarnei um coveiro na peça Morte e Vida Severina, em apresentação única no antigo Teatro de Arena, no Largo da Carioca. Vi, ali, que meu negócio era poesia, mesmo. O curso de teatro serviu para me enturmar. 

Dois anos depois, peguei novamente a estrada e fui até Buenos Aires, onde tive a oportunidade de assistir a um happening encenado um ator de quem não me lembro mais. No happening não há separação entre ação e público, de modo que o público é atingido diretamente pela performance do ator, levando o espectador a pensar, escandalizar-se, chocar-se, emocionar-se com o que o ator está fazendo. Nunca tinha visto aquilo, nem sabia que aquilo fosse possível. “Preciso levar isso a Macapá” – pensei. 

De volta a Macapá, resolvi apresentar um happening. Tive ajuda do meu irmão, Pedro Cunha, que conseguiu o salão nobre da Rádio Educadora São José de Macapá, então sob o comando do padre Jorge Basile, que chegou a Macapá em 1948. Italiano, virou amapaense. Era também professor, jornalista, radialista e membro da Academia Amapaense de Letras. 

A apresentação ocorreu no dia 11 de janeiro de 1975, um sábado, às 20h30. O nome do espetáculo era Um louco... e sua comunicação. Redigi um impresso informativo que anunciava uma peça teatral em um ato, um monólogo tragicômico improvisado, com atuação e direção de Ray Cunha.

“Um acontecimento em termos de arte pode deleitar, ensinar ou, até mesmo, assustar. Na vida, nós aprendemos por caminho batidos, conhecidos e decorados, de maneira que quando nos perdemos, sabemos por quê. Na vida, nós aprendemos a evitar as sendas selvagens, medonhas e estranhas, de maneira de quando nos achamos, não sabemos por quê.

“Um acontecimento nas cadeias da corrente artística encaixa-se um pouco diferente das outras cadeias. Talvez pela cor, talvez pela forma. Na música, por exemplo, o acontecimento recebe o nome de “happening”, como recebeu em “Woodstock” – a expressão máxima de um longo e excitante sonho.

“Na literatura a lista é longa e variada, como pode ser a “Geração Beat”. Um acontecimento pictórico, Salvador Dalí, é um acontecimento vivo! Ao esculpirem o “Fauno de Praxiteles” em remota época completou-se um acontecimento maravilhoso. Alfredo Alaria foi outro acontecimento, ou événement, ou mesmo happening, como queira, pois em qualquer recanto do mundo onde pisava era a sensação. O cinema está acontecendo, inquieto e inquietante.

“O acontecimento teatral pode vir a qualquer instante. Ele pode comover, emocionar, despertar-nos ódio, indiferença, ou raiva” – dizia o texto publicitário que escrevi, anunciando o happening.

Até que foi bastante gente, acho que mais de dez pessoas. Uma delas é especial. Trata-se da dama da poesia amapaense, Alcinéa Maria Cavalcante. Ela estava lá e pode testemunhar, até contar como foi. O padre Basile também estava lá, assim como o meu irmão Pedro Cunha. Quero me lembrar de outras pessoas, mas não consigo. Não lembro se o Fernando Canto compareceu à apresentação única, mas foi ele que encontrou, na biblioteca dele, o texto publicitário da peça.

Imitei um pouco o ator portenho. Fiz caras e bocas, dancei o merengue do caboco doido, improvisei bastante. Disse também alguma coisa. Botei para fora toda a minha revolta adolescente sem causa.

Logo depois o Savino, José Figueiredo de Souza, me convidou para criar um grupo de teatro no Sesi de Macapá. Aproveito aqui para falar um pouco sobre o Savino. Ele era graduado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especializado em natação e educação física pela Fundação Getúlio Vargas. Foi um dos fundadores, em 1965, do maior bloco de rua da Amazônia: A Banda. 

Cheguei até o quarto ano ginasial no Colégio Amapaense e Savino foi meu instrutor na disciplina Educação Física. Lembro que certa ocasião ele reuniu várias turmas no Ginásio Coberto do Colégio Amapaense, centenas de alunos, só homens, e pediu para cantarmos o Hino Nacional. Em dado momento ele apontou para mim, no meio da multidão, avisando que eu estava desafinado. 

A convite de Homero Platon, delegado do Sesi no Amapá, Savino começou ministrando aulas de educação física e ascendeu ao cargo de superintendente do Sesi local e depois coordenador das superintendências do Sesi na Região Norte. 

Aceitei o convite do Savino. Comecei a criar o grupo e a ensaiar um texto meu. Mas, confesso, tratava-se de um testículo, não renderia nem uma hora de espetáculo, e eu estava ainda perdido, ainda na estrada, e assim larguei tudo, mais uma vez, peguei o rio e sumi do mapa. Desta feita fui para Santarém/PA e depois para Manaus/AM, onde comecei minha carreira de jornalista. Eu tinha 21 anos.

Aí, descobri que, além de poeta, era também contista, e comecei a escrever meus primeiros contos e, tempos depois, já morando em Belém, parti para o romance.

Adoro teatro, mas como espectador. A última vez que vi um happening foi uma apresentação do poeta Heitor Andrade, em Brasília. Heitor Humberto de Andrade, H2A, como ele se identificava, nasceu em Salvador/BA, em 21 de junho de 1937, e morreu em Brasília, a cidade que adotou como sua, em 1 de dezembro de 2017. 

O poeta deixou publicados os livros: Corpos de concreto (Salvador, Imprensa Oficial da Bahia, 1964); Sigla viva (Rio de Janeiro, Grupo de Planejamento Gráfico Editores, 1970); 3x1: a matemática do poema (Brasília, Senado Federal, 1978 – Coleção Machado de Assis, 14); Nas grades do tempo (Brasília, André Quicé, 1994); Minha moldura é o Universo (Brasília, Siglaviva, 2012); O cão selvagem (Brasília, Siglaviva, 2013); Corpos de concreto (Brasília, Siglaviva, 2014); e Probabilidade do jogo (Brasília, Siglaviva, 2016).

A partir de 1970, publica os seguintes pôsteres-poemas: Sigla Viva e Só amo (1970; arte: Sami Mattar), Lirismo (1985; arte: J. L. Paula), Pequena Revolução Burguesa (1989; arte: Simone Queiroz), Vislumbre (1994; arte: Mônica Indig), A Mulher dos Meus Sonhos (2006; arte: Beto Sá), A Mario Quintana (2010; arte: Ilva Araujo), Momento (2010; arte: Marcos Design) e Delicadeza de Lorena (2013; arte: Renato Cunha).

Em 8 de março de 1985, o poema Lirismo foi ofertado pela Mane do Brasil, com tiragem de mil peças, distribuídas em todas as filiais da empresa no mundo, oferecidas aos grandes clientes como brinde da inauguração da fábrica. A matriz, francesa, foi fundada em 1871 e hoje é administrada pela quarta geração da família Mane.

Especializada na criação de essências aromáticas do perfumismo e produção de bebidas destiladas, a filial brasileira é sediada no bairro de Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro. O designer J. L. Paula criou, em 1960, para a Mane do Brasil, a arte para Lirismo.

No cartaz, o poema flutua juntamente com uma grande balança, frascos, garrafas e um almofariz: “Havia um jasmineiro/lá em casa/florescia todo ano/Nem a fumaça que o envolvia/obscurecia sua alvura/aos olhos da rua/Ele brincava de florir/cuspindo todo mundo/com suas pétalas de perfume”.

Em 2008, Heitor Andrade apresenta o monólogo dramático Teatro do Imprevisto, no Café com Letras. Depois ele se apresentou em bares na noite de Brasília. Assisti uma dessas apresentações.

Convivemos bastante. Pouco antes de morrer, Heitor morou no prédio da Editora Thesaurus, no Setor Gráfico. Uma tarde, fomos andando até a Pães e Vinhos, uma padaria, cafeteria e restaurante na Quadra 103 do Sudoeste, próximo de onde eu moro, hoje. Comemos pão torrado com manteiga e café com leite, e conversamos, como sempre, sobre tudo. Ele estava com 80 anos, mas era um garoto.

Curtia tudo, como só os poetas sabem fazê-lo. Adorava a noite, as luzes, vinho, e tinha o faro dos poetas, que conseguem sentir cheiro de mulher trazido na aragem de leste.

Desconfio que não sabia da sua idade, e nem queria saber. Parecia um monge. Era pequeno, seco, sua pele era rosada e seus olhos, verdes. Escrevia poemas o tempo todo e tirava seu sustento do jornalismo. Amou muitas mulheres lindas e todas pelejaram para retê-lo, mas ele era indomável. Só tinha compromisso com a poesia. Lembra-me Pablo Picasso. 

Não conheci Picasso, que nasceu em Málaga, Andaluzia, Espanha, onde veio à luz em 25 de outubro de 1881, e, aos 91 anos, em 8 de abril de 1973, após uma noite de trabalho, até as 3 da manhã, morreu de infarto horas depois, em Mougins, na Côte d'Azur, França. Pintor, escultor, ceramista, cenógrafo, poeta e dramaturgo, foi criador inesgotável, artista incansável e amante intenso da vida. Picasso, como Heitor, podia sentir o cheiro de mulher nua na aragem do leste.

Além disso, era prolífico como seu nome de batismo: Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso. Era também bom marqueteiro de si mesmo. Contava que nasceu morto, mas o médico, Don Salvador, o salvou, trouxe-o de volta à vida soprando-lhe fumo de um charuto na face, que o fez chorar, e viver.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

O mestre do mistério Harlan Coben e o cão chupando manga verde no despautério do Brasil

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 26 DE OUTUBRO DE 2023 – Advirto que a resenha a seguir nada tem a ver com personagens ou acontecimentos reais, inclusive a parte que fala sobre o Brasil. É tudo ficção.

Um dos maiores escritores policiais do mundo, o judeu-americano Harlan Coben, atualmente com 61 anos de idade, é conhecido como “o mestre das noites em claro”. Com efeito, devorei Apenas um Olhar (Arqueiro, Porto Alegre/RS, 2019, 425 páginas) em pouquíssimos dias, com tudo o que tenho para fazer e com algumas dezenas de páginas de linguiça. Mas até o embutido literário de Coben é digerível.

– Harlan Coben é mestre em prender a atenção do leitor e criar histórias surpreendentes. Ele vai seduzir você logo na primeira página só para chocá-lo na última – diz nada menos que Dan Brown, na quarta-capa do livro.

– O único motivo sensato para deixar este livro de lado é ir conferir se a porta de casa está bem trancada – registra a revista People.

– O livro tem uma premissa excelente e Coben faz um ótimo trabalho em deixar o leitor fascinado – segue-lhe The New York Times.

Coben já ganhou o Edgar Award, o Shamus Award e o Anthony Award, três dos principais prêmios literários americanos, e já vendeu mais de 70 milhões de livros em 44 idiomas. 

Cursou Ciências Políticas e trabalhou com turismo, na empresa do avô. É um sujeito grandão, 1,93 – 10 centímetros mais alto do que Ernest Hemingway. Não jogou boxe, como Hemingway; jogava basquete. Em 1990, aos 28 anos de idade, último ano na faculdade, percebeu que queria ser escritor, e estreia com o romance Play Dead (528 páginas). Em 2001, após a série Myron Bolitar, lança Não Conte a Ninguém, que virou filme e carro-chefe nas vendas. 

Em seguida a Não Conte a Ninguém escreveu mais nove romances. Confie em Mim, lançado em 15 de abril de 2008, o colocou em primeiro lugar nos mais vendidos do New York Times Best Seller. 

A personagem central de Apenas um Olhar é uma pintora conhecida, dona de casa, mãe de um casal de crianças, esposa de um pai amoroso e responsável: Grace Lawson. No passado, um estouro em um show de rock a deixou em estado crítico e do qual fica uma sequela física: ela é manca. 

Um dia, Grace vai buscar um filme que mandara revelar e encontra, entre as fotos da família, uma que não deveria estar ali. Trata-se de uma foto antiga, retratando cinco pessoas, entre as quais um homem que se parece muito com seu marido, Jack Lawson. 

Ela fica intrigada com aquilo e decide mostrar a foto ao marido. Ele nega que seja o jovem ali naquela foto. Depois, faz uma ligação, de mais ou menos 9 minutos e desaparece, levando a foto. Grace entra em contato com a polícia, mas vê que dali não sairá coelho e então resolve investigar. Ela ama o marido, o quer de volta e intui que ele está correndo sério perigo. O ponto de partida é descobrir quem são as pessoas na foto. 

A partir daí, Coben apresenta linha e agulha para costurar uma misteriosa colcha de retalhos. A trama só é entendida nas últimas páginas do livro. Para chegar à última página, o leitor faz qualquer negócio, inclusive digerir as páginas dos embutidos. Também as personagens são apagadas, com uma exceção: o assassino. Precisei de um pouco de paciência para ir até mais da metade do livro, quando começa uma ladeira, com alguns trechos de terra, rumo ao final. 

Harlan Coben é um autor bom para os dias que correm no Brasil, rotineiros, quando tudo é previsível. Um punhado de senadores e deputados luta bravamente no Congresso Nacional para restaurar a democracia, seriamente lesionada por uma fauna cada vez mais vampiresca. Hienas, dragões-de-komodo, jacarés-açus e até dinossauro estão empenhados à caça de um homem. 

Se ele for preso, sob uma acusação qualquer, mesmo que seja falsa, será um homem morto. É tão fácil matar um homem preso! Lembram o caso do espião russo fugitivo de Putin, Alexander Valterovich Litvinenko, em 2006, em Londres? Ele agonizou durante três semanas, envenenado com chá contendo polônio-210, em 1 de novembro de 2006, no luxuoso Millennium Hotel, no distrito londrino de Mayfair. 

A agonia dele começou com dores no estômago. Nos dias seguintes, perdeu todo o cabelo e, em 23 de novembro, aos 43 anos de idade, morreu por falência múltipla de órgãos, no University College Hospital, em Londres. As investigações concluíram que o autor do assassinato de Litvinenko foi o ex-espião russo Andrei Lugovoy, a mando do governo russo. 

Litvinenko dissera à polícia que o presidente russo, Vladimir Putin, ordenara pessoalmente sua morte. Litvinenko teria provas de ligações do Kremlin com a máfia russa. Ex-oficial russo naturalizado britânico, especializado no combate ao crime organizado, autor da frase “Estado mafioso”, em novembro de 1998, Litvinenko e vários outros oficiais do Serviço Federal de Segurança da Federação Russa (SFS), órgão de contraespionagem, contraterrorismo, controle aduaneiro, segurança interna, combate ao crime organizado e espionagem em países estrangeiros, acusaram superiores seus de ordenar o assassinato do oligarca russo Boris Berezovsky. 

Litvinenko foi preso, mas conseguiu fugir com sua família para Londres, onde recebeu asilo político e começou a trabalhar como jornalista, escritor e consultor do MI6. Escreveu dois livros: Blowing Up Russia: Terror from Within e Lubyanka Criminal Group, nos quais denuncia atos de terrorismo e assassinatos para levar Vladimir Putin ao poder.

O Brasil está parecido com isso. O cão chupando manga verde no despautério do mundo.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Perto do Coração Selvagem. A mulher ante a violência, a covardia e a loucura dos homens

Clarice Lispector em óleo de Giorgio Chirico. Jessica Rabbit

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 19 DE OUTUBRO DE 2023 – Existem escritores icônicos que amamos só pelo o que eles são, por declarações suas, seu modo de vida e até pela sua sensualidade, neste caso, feminina. Clarice Lispector é uma delas. É a Jessica Rabit da literatura universal. Giorgio de Chirico a pintou em Roma. O óleo retratando Clarisse é toda Jessica, personagem de desenho animado criada por Robert Zemeckis, que se inspirou nas atrizes Veronica Lake e Rita Hayworth. Léa Seydoux também lembra Jessica. 

Clarice escrevia em português, mas nasceu na Ucrânia, em 10 de dezembro de 1920. 

– Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo – disse, sobre a Ucrânia. 

Morreu no Rio de Janeiro, na véspera de completar 57 anos, em 9 de dezembro de 1977, de câncer de ovário. Deixou dois filhos. Romancista, contista, ensaísta, jornalista, frequenta, hoje, um clube exclusivo: a prateleira dos monstros sagrados da literatura universal. 

Era judia. Sua família migrou fugindo de extermínio em massa. Foi educada no Recife/PE, onde chegou com dois anos de idade. Aos oito anos, sua mãe faleceu. Aos 14, transferiu-se, com o pai e as duas irmãs para o Rio de Janeiro, onde seu pai faleceu, em 1940. Graduou-se em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, então Universidade do Brasil, mas paralelamente começou a trabalhar como tradutora, escritora e jornalista. 

Estreou como romancista aos 24 anos, com Perto do Coração Selvagem, que contém a sinopse dos seus futuros romances: a mulher diante da violência, da covardia e da loucura dos homens. 

Em 23 de janeiro de 1943, casa-se com Maury Gurgel Valente e um ano depois muda-se, com o marido, então vice-cônsul, para Belém do Pará, onde se hospedam no Central Hotel, ao lado do Teatro da Paz, durante seis meses, após os quais Maury assume o consulado brasileiro em Nápoles, Itália. O casal passa alguns dias no Rio de Janeiro, de onde parte para Nápoles, onde morou de 1944 a 1946, e Clarisse ajudou soldados feridos na guerra no hospital norte-americano, como voluntária do Serviço de Saúde da FEB – Força Expedicionária Brasileira. 

“Isso aqui é lindo. É uma cidade suja e desordenada, como se o principal fosse o mar, as pessoas, as coisas. As pessoas parecem morar provisoriamente. E tudo aqui tem uma cor esmaecida, mas não como se tivesse um véu por cima; são as verdadeiras cores. Um edifício novo aqui tem um ar brutal. Às vezes eu me sinto ótima; às vezes simplesmente não vejo nada, não sinto nada. Estou lendo em italiano porque é o jeito. A palavra mais bonita da língua italiana é gioia, embora alegria também seja bonito. Estamos num apartamento grande, com todos do consulado que são ótimas pessoas; mas nunca precisei de ótimas pessoas. Mas, enfim, por enquanto nada há a fazer” – narra, em carta. 

“Estou trabalhando no hospital americano, com os brasileiros. Visito diariamente todos os doentes, dou o que eles precisam, converso, discuto com a administração pedindo coisas, enfim sou formidável. Vou lá todas as manhãs e quando sou obrigada a faltar fico aborrecida, tanto os doentes já me esperam, tanto eu mesma tenho saudade deles.” 

Clarice era bela. Explosivamente bela. “Eu estava em Nápoles andando pela rua com meu marido. E um homem disse bem alto para outro, ele queria que eu ouvisse: “É com mulheres como esta que contamos para reconstruir a Itália”. Não reconstruí a Itália. Tentei reconstruir minha casa, reconstruir meus filhos e a mim. Não consegui. No entanto o italiano não estava fazendo galanteio, falava sério. Deus, fazei-me reconstruir pelo menos uma flor. Nem mesmo uma orquídea, uma flor que se apanha no campo. Sim, mas tenho um segredo: preciso reconstruir com urgência das mais urgentes, hoje mesmo, agora mesmo. Nesse instante. Não posso dizer o que é”. 

Na França, chamaram-na de “princesa da língua portuguesa”. 

Vivia viajando, por conta da profissão do seu marido, mas adorava o Brasil: “Não sinto nenhum prazer em viajar. O mundo inteiro é levemente tedioso, eu acho. O que importa na vida é estar perto de quem amamos. Essa é a grande verdade do mundo. E, se existe um lugar especialmente simpático, é o Brasil”. 

Em 1959, Clarice separa-se de Maury, que fica na Europa, e se fixa permanentemente, com seus filhos, no Rio de Janeiro, no Leme, onde, na praia, há uma estátua sua de bronze. Em 14 de setembro de 1966, Clarice dorme, deixando seu cigarro aceso. O incêndio quase a mata. 

Em 1975, participa do I Congresso Mundial de Bruxaria, em Bogotá, Colômbia, no qual apresenta o conto O ovo e a galinha. Retorna ao Rio com a aura de “a grande bruxa da literatura brasileira”. Declara seu amigo Otto Lara Resende sobre sua obra: “Não se trata de literatura, mas de bruxaria”. 

Clarice dominava sete idiomas: português, inglês, francês, espanhol, hebraico, iídiche e russo, mas fez traduções somente do inglês, francês e espanhol. Contudo, a obra de Clarice foi muito mais traduzida: mais de 200 traduções para mais de 10 idiomas. Só A Hora da Estrela e A Paixão segundo G. H. tiveram 22 traduções, cada; Perto do Coração Selvagem, 18, Laços de Família, 16, e Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, 15. A partir da década de 1980, Clarice tem nova tradução praticamente todo ano.

Pouco tempo após a publicação do romance A Hora da Estrela, Clarice é hospitalizada com câncer de ovário em metástase e não resiste. É sepultada no Cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro, no dia 11 de dezembro de 1977. A judia ucraniana, nordestina e carioca, engrandeceu a língua portuguesa como nenhuma outra mulher, pois a voz das suas personagens continua ecoando, solitária, mas destemida como as rosas.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Haverá O Protetor 4? A máfia no Brasil

Lula na Lava Jato. Sergio Moro o prendeu e o STF o soltou

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 9 DE OUTUBRO DE 2013 – O diretor Antoine Fuqua declarou que está disposto a dirigir O Protetor 4, desde que o ator Denzel Washington também esteja também disposto. O Protetor: Capítulo Final, ora em cartaz nos cinemas, é o terceiro filme da franquia. Fuqua dirigiu os três; o primeiro, em 2014. 

– Acredito que o terceiro filme é o fim. Nós dois conversamos sobre isso dessa maneira. Mas nunca se sabe. Denzel está em forma. Ele está treinando todos os dias. Se você o visse agora, você ficaria surpreso. Ele está realmente saudável. Sim, depende dele. Obviamente, se ele queria fazer outro, eu também faria – Fuqua declarou à Entertainment Weekly. 

– Não quero dizer que ele encontrou a felicidade e não quero entregar tudo, mas ele conhece alguém adorável, está em uma cidade adorável e parece estar em paz. Esse parece ser um bom lugar para parar. Eu não sabia que haveria três (filmes). Definitivamente não sabia disso quando fizemos o primeiro. Eu não sabia como isso terminaria – disse Denzel Washington à Empire, dando a entender que Robert McCall vai se aposentar realmente, desta vez. 

No Capítulo Final, Robert McCall vai ao sul da Itália em uma missão pessoal e, levado pelas circunstâncias, acaba se afeiçoando à pequena cidade onde se encontra, quando descobre que ali todos estão sob o controle da máfia. Não dá outra. Não sobra um mafioso para contar a história. 

Na trilogia, Denzel Washington encarna o agente secreto aposentado Robert McCall, que se torna justiceiro. Como tal, é uma máquina de matar. Os enredos dos três filmes nada têm de extraordinário. O deste último é do trio Richard Wenk, Michael Sloan e Richard Lindheim. Meio arrastado. Mas Denzel Washington é um dos melhores atores de Hollywood. Isso, aliado à cuidadosa produção da trilogia, fez de O Protetor um sucesso. E só. 

Não é como, por exemplo, John Wick. Nos quatro filmes da franquia, a partir do universo do assassino aposentado e da própria personagem, fascinante, encarnada por Keanu Reeves, dá para criar um mundo de histórias. 

Certa vez comecei a fazer um curso de italiano e a professora, uma senhora espirituosa e viajada, me perguntou por que eu queria aprender italiano. Talvez ela tenha feito essa pergunta a mim porque a turma tinha mais adolescentes e eu era um dos poucos velhotes em sala. Ela completou a pergunta comentando que a Itália, apesar de ser uma botinha no Mediterrâneo, tinha seis máfias, além do que o italiano tem mais grego do que latim. 

Concordei com ela, mas lhe disse que ninguém deveria morrer sem antes conhecer a Itália. Ela entendeu. Os roteiristas e Fuqua exploraram isso. 

As máfias italianas são: Ndrangheta, Camorra, Cosa Nostra, Stidda, Sacra Corona Unita, Bando della Magliana e uma sétima, Máfia Capital. A Ndrangheta, um verdadeiro sindicato do crime organizado, remonta ao século XVIII. É considerada a mais poderosa do mundo. McCall se mete com a Camorra, que fatura 5 bilhões de dólares por ano, principalmente com o tráfico de drogas. 

Contando com cerca de 110 famílias operacionais e 7 mil afiliados, também opera com agiotagem, extorsão, contrabando de cigarros e de carne, fraude, jogo clandestino, prostituição, tráfico de pessoas e taxa de proteção. Já estaria operando no Brasil? 

Máfia é um sindicato do crime organizado, secreto, regido pelo silêncio e extrema violência. É raro identificar um chefão. Procuram se infiltrar nas instituições do Estado, principalmente nos meios políticos, mas, às vezes, seus chefes são os próprios. 

De acordo com o acadêmico Diego Gambetta , a palavra “máfia” é oriunda do siciliano “mafiusu”, por sua vez do árabe “mahyas”, que significa “orgulho”, ou “marfud”,  “rejeitado”. No século XIX, significava uma pessoa orgulhosa e destemida. O etnógrafo siciliano Giuseppe Pitrè afirma que a associação da palavra máfia com o crime ocorreu em 1863, na peça I mafiusi di la Vicaria (O Belo Povo da Vicaria), de Giuseppe Rizzotto e Gaetano Mosca, que trata sobre gangs na prisão de Palermo. A palavra “máfia” foi utilizada pela primeira vez, oficialmente, em 1865, em um relatório do prefeito de Palermo, Filippo Antonio Gualterio. 

Esse tipo de organização surgiu no sul da Itália, na Idade Média, quando pequenos proprietários de terras eram explorados por senhores feudais. Assim, criaram um sistema de cotização para se armarem e sabotarem as terras dos senhores feudais. Quem não pagasse tinha o próprio gado e as plantações arrasados. Era a proteção forçada, método que se espalhou para todo o planeta. 

De modo que foi da Itália que o termo máfia passou a caracterizar o crime organizado, como a máfia russa, a máfia japonesa (Yakuza), o Primeiro Comando da Capital etc. 

A trilogia O Poderoso Chefão, dirigido por Francis Ford Coppola, baseada no livro homônimo de Mario Puzo, mostra o crescimento da máfia, a Cosa Nostra, nos Estados Unidos. A trama do último filme da série se passa em torno da lavagem de dinheiro por meio da associação com uma imobiliária, envolvendo injeção de centenas de milhões de dólares no Banco do Vaticano. 

Em meados dos anos 1980, a máfia italiana conseguiu aparelhar o poder público. Aí o Estado criou a Operação Mãos Limpas e centenas de mafiosos foram presos e condenados, apesar dos 24 juízes e promotores assassinados durante o processo. 

No Brasil, que tem 53 facções, como são chamadas as máfias locais, o então juiz Sergio Moro, hoje senador, fez uma Operação Mãos Limpas, a Lava Jato, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) soltou todo mundo e Moro quase é assassinado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), sediado em São Paulo/SP e presente em 24 estados e no Distrito Federal.

O Amapá, meu estado natal, está nas mãos do PCC, Comando Vermelho, Família Terror do Amapá e União do Crime do Amapá. O Setentrião se tornou um corredor do narcotráfico.

sábado, 7 de outubro de 2023

A Amazônia exporta energia elétrica, mas os consumidores da região pagam a luz mais cara do país ou iluminam suas casas com lamparina

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 7 DE OUTUBRO DE 2023 – Realismo mágico, ou realismo fantástico, é uma corrente artística ibero-americana oriunda da literatura fantástica europeia. Sua característica fundamental é que a realidade material se entrelaça com o plano espiritual no cotidiano. No meu romance A CASA AMARELA há uma dependência onde mortos, como Ernest Hemingway e Antoine de Saint-Exupéry, se encontram para bater papo, e uma seringueira manifesta sentimentos humanos, como quando o herói da história é assassinado e a árvore se agita sem vento algum e chora látex. 

No Brasil, se falarmos de celebridades que se utilizaram do realismo mágico, temos os baianos Jorge Amado e Dias Gomes. Na Ibero-América, destacam-se o mexicano Juan Rulfo e o colombiano Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de Literatura, em 1982. O romance Cem anos de solidão, de Gabo, publicado em 1967, é emblemático. Entre escritores amigos meus cito dois: o amazonense Isaías Oliveira, autor de A Dimensão dos Encantados, e o amapaense Fernando Canto, autor dos contos Mama Guga, O Bálsamo e Os Tempos Insanos (ou My friend Mundico). 

A principal característica dos povos amazônicos é sua alma de colonizado, a subserviência aos políticos e empresários, sua superstição. O amazônida é uma espécie de escravo. A Amazônia é o coração das trevas, a África do século XIX, onde as potências hegemônicas perpetram todo tipo de pilhagem, por meio de ONGs, e Brasília também participa do butim, mas legalmente. Para sobreviver ao saque, ao tráfico de mulheres e crianças para escravidão sexual e venda de órgãos, à falta energia elétrica, uma tecnologia básica para o desenvolvimento, o amazônida é a personagem central do realismo mágico. 

Pouca gente sabe que a Amazônia gera 26% da energia elétrica do país, mas pelo menos 1 milhão de amazônidas vivem no escuro e outros 3 milhões estão fora do Sistema Interligado Nacional (SIN), que conecta usinas e consumidores, porque a Amazônia exporta energia elétrica para outras regiões. Populações que vivem próximas de usinas hidrelétricas da região usam lamparina, enquanto a energia gerada vai para o Sudeste. 

E de onde vem o dinheiro para incentivar a instalação de usinas solares e aquelas torres, inúteis, de geração de energia eólica? É o consumir brasileiro, que paga uma das maiores cargas de impostos do planeta e ainda tem que sustentar a vida luxuosa dos donos das empresas de energia elétrica, com aval do Congresso Nacional.  

O marco regulatório da produção e distribuição de energia elétrica no Brasil é diabólico. O governo propagandeia que está fazendo isso e aquilo para baratear a energia elétrica, que está lançando um novo programa de subsídio para a indústria etc. etc., que está levando energia elétrica para aqui e acolá, e envia a conta, todo mês, para o consumidor doméstico, que já paga, religiosamente, Imposto de Renda e praticamente o oxigênio que respira.

O Pará é o segundo maior produtor de energia elétrica do país, atrás apenas de São Paulo. Produz 12,24% da energia nacional e exporta 11% dela, ficando, para os paraenses, 1,24%. É fantástico! 

Mas é o Amapá o estado mais simbólico da desgraceira energética da Amazônia. Os amapaenses vivem o pesadelo do apagão o tempo todo. Haja coração! Só com muito açaí! O Amapá vive no apagão, mas exporta energia, porque a legislação brasileira determina que é assim mesmo. 

Das quatro hidrelétricas no estado somente Coaracy Nunes, do Sistema Eletrobras, fornece energia para a população local. As outras três, Cachoeira Caldeirão, Santo Antônio do Jari e Ferreira Gomes, exportam sua produção para outras regiões do país, porque são concessões privadas integradas ao Sistema Interligado Nacional, que exporta energia.

Então, o Linhão não é para levar energia elétrica para o Amapá, mas para escoar a energia produzida lá. Os amapaenses que se ralem. 

Em novembro de 2020, em plena pandemia do vírus chinês, um incêndio em uma subestação de Macapá mergulhou 13 dos 16 municípios amapaenses, 90% do estado, 700 mil pessoas, nas trevas, durante 22 dias. Muita gente morreu por falta de oxigênio nos hospitais, de calor e em latrocínio, empresários faliram e os hospitais fediam a defunto se deteriorando. Mas o amapaense paga luz mais cara do que um morador de Ipanema ou Leblon, no Rio, ou do Sudoeste, em Brasília. 

Recentemente, em entrevista a um pool de emissoras de rádio do norte do país, o presidente Lula foi informado pelo jornalista Luiz Melo, do Sistema Diário de Comunicação, de Macapá, que o consumidor amapaense paga a maior tarifa energética do país. Ficou com aquela cara de quem não sabe de nada, mas comunicou que está em elaboração um novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), para a produção de energia eólica, solar e de etanol. Porém o marco regulatório manda a conta de qualquer investimento no setor para o consumidor doméstico. 

O marco legal da produção, distribuição e custo para a população de energia elétrica no país é um emaranhado que só tributaristas entendem, feito para beneficiar meia dúzia de bilionários, que, por sua vez, enchem os bolsos de políticos, à custa do povo brasileiro, com aval dos representantes desse povo no Congresso Nacional. 

A deputada Silvia Waiãpi (PL/AP), uma das parlamentares mais atuantes da bancada amazônica no Congresso, se debruçou sobre a legislação do setor elétrico e, até novembro, entrará com um projeto para pôr um fim a essa tragédia, mudando radicalmente a legislação. Será uma queda de braço entre Davi e Golias, mas com a bancada da Amazônia imbuída de defender a Hileia pressionada de perto pelos povos amazônicos quem sabe a situação mude?

Macapá não é Macondo. Não precisa viver cem anos de solidão.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Silvia Waiãpi: a extração de petróleo na foz do Amazonas é inevitável. O país está num atoleiro

Para Silvia Waiãpi o petróleo amapaense pode ser a saída do atoleiro
em que o país foi enfiado (Pablo Valadares/Câmara dos Deputados)

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 5 DE OUTUBRO DE 2023 – A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, disse na Câmara dos Deputados que o veto do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) à extração de petróleo na foz do rio Amazonas, no litoral do Amapá, é técnico. 

A deputada Silvia Waiãpi (PL/AP), estudiosa do assunto, me disse ontem que o veto vai cair, porque o governo Lula cavou um atoleiro. Para ela, a liberação da extração de petróleo na foz do rio amazonas é inevitável. Quanto à Marina Silva, até dezembro Lula bolará uma retirada honrada da deputada acriana, mas eleita pelos paulistas, pela Rede. 

Em sete meses de governo, o presidente Lula e o gênio da economia o ministro Fernando Haddad já atolaram o país em um rombo de 100 bilhões de reais. Rombo nas contas públicas acontece quando o governo gasta mais do que arrecada. E Lula gasta com fúria, principalmente no jogo fisiológico com o Congresso Nacional. Porém o atoleiro é mais fundo. Chama-se inflação. 

O presidente Jair Messias Bolsonaro deixou um superávit de 58 bilhões de reais, embora tenha extinguido vários impostos. 

Só no primeiro semestre deste ano, 427.934 empresas fecharam as portas e os investidores estrangeiros estão ressabiados com a insegurança política no Brasil. Lula se alinhou com a China, Venezuela, Cuba e outras ditaduras, e partiu para o confronto ideológico com os Estados Unidos. 

A Margem Equatorial, a 60 quilômetros da costa do Amapá, contém cerca de 30 bilhões de barris de petróleo e a Petrobrás tem expertise em águas profundas. Enquanto isso, a vizinha Guiana, também nadando em petróleo, já está explorando seu quintal atlântico, de mais de 11 bilhões de barris. 

Quanto ao Amapá, é uma das unidades mais pobres da federação. Isolado do restante do país pelo maior rio do mundo, o Amazonas, ao sul, e pela Hileia e as Montanhas do Tumucumaque, a oeste, faz fronteira com a Guiana Francesa e com o Suriname ao norte. Além da carestia de produtos importados de outros estados, devido ao transporte, os amapaenses vivem assombrados por apagões. 

Macapá, a capital, é banhada pelo rio Amazonas, que despeja em média no Atlântico 200 mil metros cúbicos de água por segundo, mas é comum abrir-se a torneira e sair lama. Nos apagões, os prejuízos são incontáveis. A cidade também não conta com esgotamento sanitário. Inchada e violenta, tem escritório de todas as facções brasileiras cobrando pedágios caríssimos, como a vida.

De modo que boa parte dos tucujus (macapaenses) vê com esperança os royalties do petróleo.