Capitu metia chifre em Bentinho? Se metia, e daí? |
RAY CUNHA
Machado também é emblemático porque nasceu no morro; era pobre, é claro. Estudou em escolas públicas, jamais frequentou universidade e foi funcionário público a vida toda. Mas, mesmo assim, fundou a Academia Brasileira de Letras. Os brasileiros gostam de academias. Acho que em cada uma das 5.570 cidades brasileiras há uma academia de letras; e seus membros se sentem tão importantes quanto Machado.
Não sei o que os portugueses, que são os criadores do Brasil, acham de Machado; talvez achem que é mais um negro tentando dizer alguma coisa da senzala. Só não é conhecido mundialmente porque era brasileiro e escrevia em português. Se tivesse nascido, hoje, estaria ferrado. Entre os brasileiros de hoje, e não sei se sempre foi assim, fazer sucesso é uma ofensa pessoal. Não sei de onde vem essa inveja, mas é assim. Jorge Amado só fez sucesso porque foi ajudado pelo Partido Comunista, que é uma espécie de igreja: de um lado, os cardeais; do outro lado, a miudeza dos corruptos e a multidão de ingênuos. Amado era cardeal.
Creio que o ponto mais alto de Machado é Dom Casmurro, romance que tem como sinopse o ciúme. Ou fofoca? Ciúme é um elemento muito forte na cultura brasileira. O que é ciúme? É possessividade, uma pessoa dona do outro; e é assim que é, todo mundo é dono do outro, aqui no Brasil.
Contudo, Machado cria, em Dom Casmurro, senão a personagem feminina mais sensual de toda a literatura brasileira, o que eu identifico como a mulher carioca. O fato é que Capitu é uma personagem deliciosa, o embrião da carioca moderna, que mora ou frequenta Copacabana, Ipanema e o Baixo Leblon, é malemolente e tem olhos de ressaca do mar.
Para muitos, Capitu simplesmente metia chifre no marido, com o melhor amigo dele, ou amigo da onça, como se dizia nos anos 1960. Para outros tantos, Capitu era apenas objeto de fofoca, e seu marido, Bentinho, paranoico. A questão é que o brasileiro, como de resto o machão ibero-americano, se pela de medo de imaginar sua santa esposa sendo trabalhada por terceiros.
Na Amazônia, temos um escritor tão denso quanto Machado de Assis, mas com outro estilo: Dalcídio Jurandir. Ele é pouco conhecido porque os paraenses não são bons para aplaudir e vender seus próprios escritores, pelo que já observei. Aliás, isso acontece na Amazônia toda.
No livro mais emblemático de Dalcídio, Chove Nos Campos de Cachoeira, publicado em 1941, ele cria personagens de carne, osso e alma, como Capitu. Enquanto Capitu cheira uma mistura de maresia com Chanel 5, o personagem central de Chove Nos Campos de Cachoeira é o menino Alfredo, que sonha sair do Marajó e morar em Belém, sonho que ele reparte com um caroço de tucumã, que é um coquinho da Amazônia. Esse moleque deve feder a pitiú.
Em contraste com Alfredo, seu irmão, Eutanázio, de 40 anos, é destituído de sonhos; não tem sequer um objetivo, nem sentido na própria vida. Vive em um mundo absurdo. Para completar sua miséria, a jovem Irene o despreza. As personagens de ficção de Dalcídio povoam seus livros como fantasmas, ora em um, ora em outro, em épocas diferentes, às vezes com o mesmo nome.
Dacídio lembra Faulkner. Enquanto Faulkner recria o sul dos Estados Unidos, mergulhado em sangue coagulado, espirrado da negrura do preconceito, Dalcídio apresenta uma Amazônia suja de lama, cabocos com a alma amortecida por cachaça, da mesma forma que seu doce linguajar silencia no amortecimento da língua pelo espilantol, o princípio ativo do jambu, a emblemática erva do tacacá, que é uma comida de origem indígena.
Como nunca entraram no mercado para valer, os livros de Dalcídio são raros, e desconhecidos, é claro. Ele é o tipo de escritor que deveria ser editado e distribuído em edições comentadas, mas, como eu disse, os paraenses não são bons para vender arte. Creio que haja vários trabalhos acadêmicos sobre Dalcídio, mas não chegam às livrarias. Aliás, pouco da produção acadêmica do Brasil, quanto mais da Amazônia, chega ao mercado.
De qualquer forma, Dalcídio está naquele grupo de escritores clássicos, como William Shakespeare, Miguel de Cervantes Saavedra, Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, e todo esse pessoal que escreve em vernáculo; esse pessoal que deve ser lido em edições comentadas, a menos que o leitor os conheça muito, ou se identifique muito com eles.
Falar em Faulkner, ele usava a técnica do fluxo de consciência, também utilizada por James Joyce, Marcel Proust, Thomas Mann, Virginia Woolf. Foi ele que narrou, como nenhum outro escritor, a decadência do sul dos Estados Unidos, criando inclusive um condado imaginário, Yoknapatawpha. Ele também criava múltiplos pontos de vista simultaneamente e utilizava mudanças bruscas de tempo narrativo.
Hoje, os Estados Unidos são muito diferentes do país de Faulkner, que nasceu trinta anos após o Sul ter sido derrotado pelo Norte. O Sul, então, vivia sob a supremacia dos brancos de origem inglesa, protestantes, puritanos e coloniais. Antes de se tornar um dos maiores escritores de todos os tempos, Faulkner foi um faz-tudo.
Como era baixinho para os padrões americanos, media 1,65 metro, foi recusado pelo serviço militar americano, e, assim, se alistou na Força Aérea canadense. Depois, passou um ano na Universidade do Mississippi, em Oxford, onde estudou inglês, francês e espanhol. De lá, foi trabalhar em uma livraria em Nova York, foi demitido porque lia em serviço e retornou para Oxford, onde trabalhou como carpinteiro, pintor de parede e agente dos Correios.
Seu primeiro livro foi de poemas, The Marble Faun, publicado em 1924. No ano seguinte, foi para Nova Orleans, onde conheceu e foi influenciado por Sherwood Anderson, escreveu artigos para jornais e revistas e publicou seu primeiro romance, Paga de Soldado, em 1926.
Deixou Nova Orleans em 1929 e se estabeleceu em Oxford, onde se casou com Estela Oldham e publicou Sartoris, o primeiro romance passado em Yoknapatawpha. Aí, vieram alguns livros que granjeariam respeito da crítica, mas só começou mesmo a vender bem com Santuário, de 1931; porém, quando estava precisando muito de dinheiro conseguia grana em Hollywood, como roteirista.
Acho que ele chegou ao seu maior apuro com O Som e a Fúria, de 1929, a história dos Compson, decadente família do Mississippi. Faulkner disse que esse romance surgiu a partir da imagem de uma garotinha, Candance, Caddy, com a calcinha suja de lama, trepada numa árvore, descrevendo para seus irmãos pequenos e para os empregados domésticos negros o funeral da sua avó.
A trajetória de Caddy é contada por meio do ponto de vista de seus irmãos, como Benjamin, Ben ou Benjy, que é idiota. “Uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria”, do monólogo de Macbeth, de William Shakespeare, em um fluxo contínuo de passado e presente, com o ar gasto de tanto carregar sons.
Quanto à fúria, é a da derrocada. O próprio cansaço. Quando a personagem Dilsey assume a narrativa ela diz que os brancos se cansam facilmente, enquanto ela tinha que fazer todo o trabalho pesado e envelhecia. Mas ela sabia que todos são iguais. Ela diz, abrir aspas: “Os brancos morrem também. A tua avó morreu que nem qualquer negro”. Fechar aspas.
Porém o que mais me impressiona na obra de Faulkner é a transcrição para o papel do fluxo de pensamento. Ele faz isso em longos parágrafos, longos períodos, com pontuação irregular. É o tal fluxo de consciência de Proust e Joyce, o que exige, no mínimo, cumplicidade do leitor, além de muita concentração e mais ainda interesse, se não o leitor não irá adiante.
Gosto do fluxo
de consciência. Acho que todo mundo gosta. O romance em que melhor usei o fluxo
de consciência foi em A CASA AMARELA, o zeitgeist de Macapá/AP, minha cidade
natal, durante os 21 anos de regime militar. A CASA AMARELA foi selecionado
pelo UOL como o romance mais emblemático do Amapá, embora quase ninguém, lá, me
conheça. Talvez me ignorem porque sou conservador.
A CASA AMARELA, edição do Clube de Autores: o zeitgeist de Macapá |