quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Jornada Brasília adentro

De manhã, em torno das 8 horas, cruzo o Setor Comercial Sul mergulhado no perfume de mulheres tão lindas que parecem nuas. Algumas andam como modelos no voo pelo tapete vermelho, como Gisele Bündchen. Falar em Gisele, comecei a ler pesos pesados como Ernest Hemingway lá por 1968, aos 14 anos, nas minhas incursões diárias à biblioteca do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, o primeiro grande leitor que conheci. A biblioteca dele foi meu primeiro laboratório, depois de iniciado pela sua também volumosa coleção de gibis. Um dia, creio que em 1971, indo a Belém (foi a primeira vez que saí de Macapá; Belém me hipnotizou até hoje), fui, com o pintor genial Olivar Cunha, visitar o Paulo no hotel onde morava; na época, ele era gerente na Brasilit. Entrar no seu quarto e ver as estantes e pilhas de livros que pareciam tomar conta de todo o espaço causou em mim o mesmo maravilhamento que a caverna dos 40 ladrões (não os do Mensalão) deve ter causado em Ali Babá. A terceira etapa do meu aprendizado foi com Isnard Brandão Lima Filho, e também foi tão fantástica como os espelhos de Jorge Luis Borges. Voltando à Gisele, essa loira que fascina também meu amigo Carlos Honorato, evoca-me Giselle Montfort, a espiã nua que abalou Paris, membro da resistência francesa na Segunda Grande Guerra, sob o codinome ZZ7. Era linda e tudo o que me convinha naquela época. Giselle Monftorf foi criada pelo jornalista David Nasser, em 1948, e a novela foi publicada em 56 capítulos no Diário da Noite, e depois em quatro volumes, em 1952. Dos anos 1960 aos 1990, o escritor espanhol Antônio Vera Ramirez, sob o pseudônimo de Lou Carrigan, deu prosseguimento à ideia original de David Nasser criando Brigitte Montfort, filha de Giselle; a Editora Monterrey, do Rio de Janeiro, publicou 500 histórias de Brigitte. Lembro-me que lia um Giselle, ou Brigitte, inteiro, em poucas horas. Foi assim que, aos 14 anos, numa cidade ribeirinha perdida na Amazônia, andei pela Paris ocupada, a mesma que Ernest Hemingway libertou, sobretudo porque a amava. Mas, como ia dizendo, cruzar o Setor Comercial Sul numa quarta-feira de inverno tropical dá a mesma sensação de participarmos, como espectador, de um desfile de moda.

Sempre que posso, almoço no Sabor Brasília, na praça de alimentação do Conjunto Nacional, um shopping no coração da cidade, ao lado da rodoviária do Plano Piloto, por onde passa meio milhão de pessoas por dia. Trata-se de um labirinto prenhe de mulheres nuas, de tão lindas, num passa-passa infinito. A comida no Sabor Brasília é saborosa, e lá é um dos raros locais da cidade onde como peixe, pois sou do Mundo das Águas, a região mais piscosa do planeta. Cheguei a tal requinte na degustação de peixe que o menor pitiú (do tupi, cheiro forte de maresia) me faz desistir de comê-lo. Descrevo no conto Inferno Verde o preparo de um caldo de filhote. Quem o ensinou a mim foi o radialista macapaense, que vive em Belém, desde sempre, José Maria Trindade, querido amigo meu. Ele me convidou para tomar caldo de filhote no Remada, seu restaurante. Filhote é um dos mais saborosos peixes da Hileia. Segundo A Fauna da Amazônia (Cejup, Belém, 1992, 217 páginas), de Roberto M. Rodrigues, filhote é a piraíba pequena. Piraíba é o maior peixe de couro do Brasil, atingindo 3 metros de comprimento por 1,40 de diâmetro e pesando 150 quilos. Trindade comprou filhote fresquinho, limpou-o, lavou-o com escovinha e o pôs algum tempo de molho no limão. Depois é só pôr água para ferver, acrescentar os temperos de praxe e depositar o peixe na panela. O caldo é mais saboroso do que qualquer prato francês. Da mesma forma que tamuatá no tucupi e jambu, com farinha d'água, é capaz de fazer qualquer chefe francês se ajoelhar.
Às 13 horas, a praça de alimentação do Conjunto Nacional, como em qualquer grande shopping numa grande cidade deste continente tropical, regurgita de mulheres, lindas como um grande jato comercial pousando. Uma das coisas que mais gosto de fazer é ver e conversar com mulheres. Perscruto suas almas e percebo nelas uma luz como se Deus ainda continuasse junto a elas, como o pintor junto à tela, aperfeiçoando-a, como o pai carinhoso que vela pela criança. Assim era minha mãe, e assim foram todas as mulheres que me amaram, embora, às vezes, as magoassem imperdoavelmente. Busco, nas mulheres, luz, e elas nunca se recusam a dá-la. Sei, hoje, que as mulheres, que, nos dando à luz, e nos iluminando, nos transformam em poetas, porque, então, compreendemos a rosa.
Há dois lugares estratégicos na praça de alimentação: defronte para as escadas, de onde jorram beldades, e defronte ao Torre de Pisa, restaurante e cafeteria, de onde também podemos descortinar, numa posição discreta, o harém. De lá, costumo tomar um espresso na Kopenhagen, defronte à Saraiva. Degusto um blend curto, confortavelmente sentado numa cadeira de palinha (que é como chamamos em Macapá para móveis de vime, ou cipó), e depois bato perna nas três livrarias do shopping. Creio que foi em 2006 que meu querido amigo, mestre, padrinho, o jornalista Walmir Botelho, um dos leitores mais vorazes que conheço, sugeriu a mim, numa visita que fiz a ele, em Belém, que lesse A Festa do Bode, de Mario Vargas Llosa. O livro esteve fora do mercado até Vargas Llosa ganhar o Nobel, este ano. Dia 24 de dezembro estava eu cumprindo o presente ritual quando me deparei, na Saraiva, com um monte de A Festa do Bode. Só mesmo Vargas Llosa para escrever um romance desses. Ele romanceou a história do general Rafael Leonidas Trujillo Molina, o Bode, que, durante 31 anos, governou a República Dominicana com a crueldade demente de todo e qualquer ditador, praticando as maldades mais impossíveis, aquelas que só vicejam, na sua morte, nos pântanos do poder desesperado, a podridão exalada por hienas como Fidel Castro, Hugo Chávez, e sequazes, para só ficarmos na Ibero-América. Feras como essas jamais deterão o poder absoluto, por uma razão simples: a mentira, a corrupção, não detém qualquer poder. É, como o mundo físico, apenas ilusão.
Vargas Llosa construiu uma catedral gótica seguindo os passos do Bode. Merecia, há tempo, o Nobel. O primeiro livro que sugeri à minha esposa, Josiane, pouco depois que a conheci, cafuza de 19 anos, linda que só ela mesma, principalmente quando ficou grávida da Iasmim, foi Tia Júlia e o Escrevinhador, de Llosa. Ele é do tamanho de Gabriel García Márquez e de Ernest Hemingway, e de William Faulkner, é claro.
Às vezes, tenho a sorte de conhecer novos amigos. Foi assim que estive na mais recente exposição de Ralfe Braga, artista plástico macapaense, cosmopolita e que também vive, muito antes que eu, em Brasília. Ontem, encontramo-nos num bar na 107 Norte, tão cheio de mulheres monumentais que nem dava para acreditar. É bom permanecer num lugar cheio de mulheres lindas; é como estar num jardim vermelho de rosas. Ralfe Braga me apresentou ao poeta Marcelo Benini, num desses papos impagáveis, e inesgotáveis, como os que mantinha com Walmir Botelho.
O Natal, este ano, transcorreu, como sempre, em paz. Mas neste ano ele foi como um dia qualquer; eu o senti apenas na alma, como um nascer de novo, um renovar-se, a alegria de ouvir o riso das crianças e sentir o perfume do jardim que cultivamos nas nossas mais luminosas lembranças, as únicas que devemos guardar no relicário da memória. Meu Pai é poderoso e sempre concretiza meus pedidos, porque são verdadeiros. A Ele pedi que arrume 2012, Pessoalmente, para todos os meus familiares e meus amigos e amigas, com os tesouros mais preciosos do mundo, que se encontram numa urna de luz, no meu coração.


Brasília, 29 de dezembro de 2011

É fácil morrer à noite

Belém em dezembro, paradoxalmente desmoronando, sólida, sob
o chumbo aquoso do mundo das águas. Foto de Luiz Braga

De onde estava, podia ver os luminosos e os faróis dos carros sob a chuva torrencial. Bebeu um gole, grande, e voltou a olhar para a rua. O bar tinha portas largas e um toldo sobre o passeio público, onde Reinaldo se sentara, de modo que recebia o vento embebido de água. Era uma chuva de fim do inverno amazônico, que não demorou. Nem bem a chuva passou as pessoas que estiveram abrigadas voltaram para a calçada. Mas foi uma trégua curta, pois a chuva voltou mais forte.

Pediu outro gim-tônica, que Muhammad Ali preparava bem forte para ele, e voltou a prestar atenção para a rua. Gostava de ir ao Castelo de Ouro e ficar apreciando o movimento e ficar apreciando o movimento da rua; isso o entretinha, e hoje havia aquela chuva, com luzes sob ela como pinceladas impressionistas, e as pessoas que corriam, lembrando soldados que pretendessem tomar uma trincheira. Pensou nas chuvas que duram três dias. As grandes chuvas começam chuviscando, mas sempre são anunciadas por trovoadas e duram três dias. As manhãs são desoladas e crepusculares. À tarde, começa a rescender a cheiro de água, e as crianças se divertem na chuva até ficarem roxas. A cor de barro do céu metamorfoseia-se de negro, se desfaz lentamente e encobre a cidade. A noite é fria, e o frio, um túnel negro e pastoso. A porta de um bar fosforesce na noite, como a boca do inferno. Lá dentro é quente e úmido, e fumacento e ácido. Bêbedos ordinários estão atentos como lobos. Entrou no bar e pediu uma Antarctica. Alguns bêbedos o assediaram. Pagou uma dose de cachaça para cada um e foi se refugir no outro lado do balcão. Os bêbedos ficaram olhando-o, matutando um meio de se aproximar dele, com suas caras de vira-lata sob o efeito de uma cadela no cio. Pediu para si uma dose de Pitú. A aguardente desceu-lhe garganta adentro, aquecendo-o, enxugando-o e molhando seus nervos. Havia um papa-defunto perto da porta. Viu quando o garçom se dirigiu para a mesa do papa-defunto e limpou-a. O garçom assentiu com a cabeça e foi, manquejando, preparar uma bebida. O papa-defunto ergueu os olhos para Reinaldo. Era um olhar desconfortável. Reinaldo tomou outro gole, mas dessa vez a bebida quis voltar. O papa-defunto levou a mão ao bolso interno do casaco. Havia ali um volume. Era um maço de cigarros. Pediu mais um gim-tônica. Tomou um gole e a bebida refrescou seus nervos e o livrou mometaneamente dos bares infernais da paranoia.

Parara de chover. Consultou o relógio: onze horas. Sentiu fome. Saiu a caminhar. Não queria ir para casa. Sua mulher, que estava grávida, haveria de se enroscar nele, lamurienta.

- Eu ia ter o neném sozinha – diria. Ouviria os passos da governanta no corredor e o som dos nós dos dedos dela na porta. Quereria saber se madame estava bem. O médico estaria pronto para uma emergência. Tudo preparado como uma Luger.

Apanhou um táxi.

- Hotel Ver-O-Peso – disse. O motorista era jovem e queria ser agradável, portanto aumentou o volume do alto-falante atrás da nuca de Reinaldo. Um berro em inglês se fez ouvir. – Desligue o rádio, por favor! – pediu.

- Não é rádio – disse o jovem. – Mas vou desligar...

Lá em cima, no restaurante do hotel, havia aquela atmosfera suburbana de hotel três estrelas. Pediu, sem consultar o cardápio, filé com fritas e uma Antarctica. O garçom andava apressado e parecia onipresente em todas as mesas, mas, na verdade, demorava-se muito para atender efetivamente os fregueses. Reinaldo queria ir embora quando ele apareceu com o filé e batata frita.

- O senhor quer arroz também?

- Sim! – disse Reinaldo, e pôs-se a comer. Estava faminto. Se quisessem acertá-lo que fosse de barriga cheia. Não o pegariam como daquela vez no calçadão da Avenida Braz de Aguiar. Era o fim da tarde e a noite insinuava-se como doce música. Sentiu alguém tocá-lo no ombro e encostar-lhe algo nos rins. Um tapa de vento fez a rua desaparecer e caiu no vazio, exceto pelo medo concreto, de gelo, que o paralisou.  

- Arria tudo.

Então o pistoleiro era ladrão também? Voltou-se e viu um louco e o grande pente verde que ele, agora, afrouxava das suas costas.

- Filho da puta! – disse, sentindo aquela paralisia evaporar-se. Aspirou gulosamente o ar, confiante, e foi embora, deixando o louco a olhá-lo, desolado.

O Ver-O-Peso cochilava. Atravessou o Boulevard Castilhos França e caminhou devagar, na esperança de encontrar um vendedor de amendoim. Duas mulheres cruzaram com ele e o olharam cobiçosas. Pensou em Celina. Pegou um táxi e foi para casa.

Naquela hora, a casa dormia, como toda a rua. Apenas as mangueiras estavam acordadas, ainda molhadas, como mulher que sai do banho. Sentiu que poderia ser morto ali e se revoltou contra a facilidade com que se pode ser assassinado. Talvez, desde cedo, o matador estivesse ali, a esperá-lo. Abriu o cadeado do portão e entrou. O robusto fila veio lamber-lhe a mão. Reinaldo afagou-lhe a cabeça e se agachou para beijá-lo. “Talvez o tiro venho agora” – pensou. “Ou talvez ele tenha se cansado e ido embora” – disse em voz alta. “Mas um pistoleiro nunca abandona seu esconderijo à espera da presa.” O cão o ouvia atentamente e mordeu levemente a mão de Reinaldo.

Celina dormia a sono solto, nua. Reinaldo se despiu, foi ao banheiro e limpou os dentes com fio dental, nas não estava disposto a escová-los. Lavou o rosto e foi deitar-se. Nem bem se acomodou e ela se voltou para ele, sem acordar, e o abraçou e murmurou alguma coisa. Era cheirosa e seus cabelos, curtos, permaneciam bem escovados. Reinaldo encostou seus lábios na boca de Celina, depois beijou seu nariz arrebitado. Ela abriu os olhos. Eram grandes e castanhos, quase verdes. Ele lhe disse algo no ouvido.

- Não! – ela disse, num longo miado. Mas se virou de costas para ele. A gravidez selara-lhe mais as costas, e vista assim, à luz do abajur, era roliça e macia, as coxas grossas e brancas, e os seios volumosos e delicados. Reinaldo gostava de pegá-los por trás dela, de mergulhar a mão no seu púbis e ouvir seu ronronar. Não era decente, agora que teria seu primeiro bebê, que o matassem. Queria comprar as bonecas mais graciosas para o bebê, se fosse menina, ou então, se fosse menino, pensava que seriam grandes amigos, e quando ele crescesse sairiam juntos para bater papo e beber, empoleirados no balcão do Café Cosa Nostra. Manteriam grandes papos, ele, tomando gin fizz, ou daiquiri, ou qualquer outra bebida preparada pelo Filgueiras, e seu grande amigo tomando um grande sorvete. “Haveria sorvete no Cosa Nostra?” Era algo sobre o que não tinha pensado ainda. Fora um dia puxado no jornal. Precisava se afastar da Editoria de Polícia. Haveria de sair da cidade logo que o bebê nascesse. Firmemente  seguro ao corpo redondo de Celina todos os bandidos da cidade se puseram em debandada e uma lassidão adveio ao jorro com que inundou a mulher, que se virou para ele e se pôs a lamber-lhe o rosto, ronronando, mais gemendo, agora, que ronronando.

A manhã veio vermelha para a janela, e um sabiá cantou durante muito tempo, até Reinaldo sonhar com as manhãs encobertas de neblina em Pedra de Guaratiba.


Do livro A Grande Farra, edição do autor, Brasília, 1992, 153 páginas, esgotado

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O Pará não dorme mais em berço esplêndido

Brasília, 20 de dezembro de 2011 – O plebiscito da divisão do Pará em três (mais Tapajós e Carajás), dia 11, aprovou o não, mas mostrou que os paraenses querem manter o estado com 1.247.689,515 quilômetros quadrados, do tamanho da Colômbia, e 7,6 milhões de habitantes, apenas por bairrismo; e os políticos pró-Pará, para não terem suas tetas reduzidas. Dos 4,8 milhões de eleitores, 67,93% rejeitaram a criação de Carajás, contra 32,07% que apoiaram o nascimento do novo estado; 67,36% rejeitaram a criação de Tapajós e 32,64% apoiaram a divisão. A abstenção chegou a 25,45%.

Um erro do Supremo Tribunal Federal (STF) foi ter incluído os moradores do Pará remanescente, a maioria da população, no plebiscito. Foi o mesmo que consultar Portugal sobre a independência do Brasil. Cerca de 98% dos moradores do Tapajós, por exemplo, querem se separar do Pará. Também, caso o plebiscito fosse pelo sim, creio que o Congresso Nacional barraria a divisão, ou Dilma Rousseff (PTMDB), pois seria uma sangria nas tetas da Esplanada dos Ministérios.

Carajás, se fosse criado, deteria a maior província mineral do planeta, atualmente explorada pela gigantesca Vale. Como exportação de commodities extraídas do sub-solo não rende praticamente nada para os estados, mas apenas para o império, isto é, para a União, restaria aos carajaenses a industrialização metalúrgica, embora houvesse implícito na criação de Carajás grande interesse de fazendeiros, principalmente do Sul e do Centro-Oeste.

Quanto a Tapajós, culturalmente um estado autônomo, detém Belo Monte, que será a terceira maior hidrelétrica do mundo e que tem sido palco de tanto besteirol.

O Pará, mesmo, ficaria reduzido a 218 mil quilômetros quadrados, 17% do seu território.

Logo depois da apuração do plebiscito, o governador do Pará, o tucano Simão Jatene, botou a culpa do atraso do estado no pacto federativo. Em outras palavras, ele se reconheceu incompetente como gestor. Será que Simão está investindo direito em educação, em pesquisa, em industrialização? Ou está enchendo os bolsos da mídia e inchando o governo com cabide de emprego e em nepotismo?, como fez no seu governo anterior e que foi levado ao paroxismo com a deslumbrada e inacreditavelmente incompetente Ana Júlia Carepa, do PTMDB, e que está prestes a botar a boca numa tetinha no governo Dilma Rousseff?

"Existe uma distância e ausência, mas não é do governo do estado, mas do estado brasileiro. É genuíno o sentimento das pessoas, mas acho que o caminho foi equivocado. A sociedade paraense sai mais madura, mas precisamos de um pacto que nos reposicione” - disse Jatene, com o jeitão sociológico dos tucanos.

Governadores da Amazônia dormem em berço esplêndido. Têm a cultura do colonizado e não sabem entrar na mídia nacional por meio do que é bom nos seus estados. Quando se avistam com Dilma Rousseff parecem vassalos diante de uma imperatriz. Já suas bancadas no Congresso Nacional geralmente tratam dos seus próprios negócios. O povão é empurrado com cesta básica, política de “estado” que Lula alçou à estratosfera.

Novos lances nos movimentos de emancipação vão surgir, mas agora a insatisfação começou a focar a posição da capital, Belém, para onde vai boa parte da grana dos paraenses, uma fatia dela para apaniguados do governador. Já há um movimento querendo tirar de Belém a sede dos três poderes e jogá-la para perto da Terra do Meio, como foi feito com o Rio de Janeiro e Brasília.

Para um país continental como o Brasil, a vocação é a divisão política. O Pará era do tamanho da Amazônia e foi dividido aos poucos. A última porção que perdeu, em 1943, foi o atual estado do Amapá. Se o Amapá ainda fosse paraense, é provável que sua capital, Macapá, seria semelhante à cidade de Afuá, no arquipélago de Marajó, região paraense paradisíaca, mas onde crianças morrem de fome, comidas por vermes, ameba, giárdia, malária e estupradas.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O banquete dos que eu amo

O tarde é feita de mulheres que passam batom na boca
De crianças que riem
De sabiás que amam
De rosas nuas,
De silêncios.
A tarde é prenhe da solidão da madrugada
E, ao mesmo tempo, de um grande aeroporto numa sexta-feira à noite.
A tarde é o agora e o agora, numa temperatura de 21 graus centígrados,
Sombra tropical, cadeira de palinha e café espresso arábica.
A tarde é prenúncio de estrelas e do rastro de mulheres tão lindas
Que vivem nuas.
A tarde é uma mulher grávida de amor,
E que tem sabor de vinho europeu.
A tarde evoca sons de diamantes,
Excitante como beijo de língua
E sabor de ostra e Bohemia enevoada.
A tarde é o riso das virgens ruivas
E, da luz, o triunfo.
A tarde é tudo o que tenho para dar neste Natal,
E, no Ano Novo, darei minha alma, que é toda a minha luz.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Soneto para Josiane

Ela estava deitada de lado. Não se mexia. Ouvi sua respiração e a madrugada. Fiquei hipnotizado, pois sempre fico hipnotizado à visão da sua nudez. Sua pele cafuza é clara como cetim rosa. Observei-a do alto das costas e desci o olhar até a cintura, no encontro com as nádegas, e me perdi no labirinto de segredos que sumiam em curvas sinuosas. Os seios, repousados na lânguida posição, lhe davam a beleza de um grande jato no momento do pouso. Deitada assim, ela me lembra Marilyn Monroe no ensaio da primeira Playboy. Assim, deitada, mergulhada em sono profundo, ela é como uma grande rosa vermelha, tão linda que causa sofrimento, porque não podemos possuir as rosas, pois as rosas não são de ninguém, existem apenas para sabermos que existe Deus. Tirei a roupa e me deitei, e fiquei olhando a escultura ao meu lado, o mais perto possível. Sua epiderme é como o mar ao anoitecer. Assim, de perto, as ancas lembram os sonhos, que eu sempre tenho, voando sobre o roseiral e as zínias da minha infância. Cheirei-a, e senti perfume de maresia, Chanel Número 5, jasmineiros chorando em noites tórridas, leite da mulher amada e o sabor de lágrimas de virgens ruivas no acme. Cheirei seus cabelos. Ela tem os cabelos como a juba negra de um leão e a feminilidade de uma rosa ao sol em manhã de primavera. Moveu-se e disse: “Te amo, querido!”, e voltou às profundezas do seu sono de gata. Eu também te amo, como a eternidade. Ao se mover, ela se encostou em mim. Seu contato era como estrelas caindo em algum ponto da galáxia, numa festa inesquecível, numa idade em que ainda somos fisicamente imortais. Eu me sinto, então, como nervo exposto à descarga elétrica, mas sob absoluto domínio, intenso como são as rosas. Beijei suas costas, e senti sabor de Dom Pérignon, safra de 1954. No meu delírio, cavalgo-a, como dançarinos domam um tango de Astor Piazzolla, e arranco da sua boca vermelha música de Wolfgang Amadeus Mozart. Ela se moveu novamente, num giro de 180 graus, e buscou refúgio nos meus braços. Seu rosto é sereno, de mulher que se sente amada. Amanhã, eu lhe darei a grande rosa colombiana, vermelha, que depositei no vasinho do altar, no nosso quarto. Creio que não há oferta mais esplendorosa do que uma rosa, grande e vermelha, à mulher amada, pois as rosas são a própria poesia que emana do corpo de uma mulher nua.

Brasília, 10 de dezembro de 2011

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

No topo da montanha brilha o verão

Atormentado pela fome, às 5 horas estava de pé. Não conseguira dormir nada. Sentia-se tonto e com a náusea que a fome prolongada causa. A última vez que comera algo sólido fora há dois dias. Só pensava no café. A casa de estudante dividia-se em três prédios. O maior e mais novo, que era onde ele morava, tinha uma fileira de quartos, de onde se podia ver o Hilton Internacional Belém. Lavou o rosto e desceu. Passou pela frente da vila, entre os dois grandes prédios, e subiu para o restaurante, que ficava no prédio velho. Às 7, o servente serviu a refeição, que consistia em café com leite e pão com margarina. Sentiu as costas macias do gato nos seus tornozelos nus, e pensou na sua cidade natal. Foi um momento de felicidade curto, pois se lembrou da carta que recebera no dia anterior. “Estou com sífilis” – dizia a carta. “No segundo estágio. Não há mais cura. Devo enlouquecer em dez anos. E morrer em quinze. Uma geração de filha-da-puta, a minha.” Sim, uma geração de filha-da-puta. Um, sifilítico; outro, louco; outro, apodrecendo, com fraqueza pulmonar, num povoado aurífero na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa; outro, dipsomaníaco; outro, decapitado e castrado pelo seu próprio irmão. “Se eu não tomar cuidado viro mendigo” – pensou.

Ainda faltava muito para acabar o inverno. Dois anos. Era quanto faltava para sair da universidade. Deprimia-se a pensar nisso e mudou de pensamento, enquanto caminhava para o campus universitário do Guamá. No começo, quase não suportou a falta de mulheres. Não fazia nenhum esforço para tê-las. Era a economia de guerra, como dizia. Também sentia grande desejo de beber, mas resolvera que tanto bebida quanto mulher só teria quando pudesse tê-las com qualidade, com dignidade, e não como vira-lata. Ademais, tinha Julieta. Conhecera-a na universidade. Linda. Viu-a pela primeira vez no semestre passado. Estava a ler um livro no corredor de um dos pavilhões do básico quando ela passou ladeada por dois rapazes. Devia ter 21 anos. Sua pele era maravilhosa. Lembrou-o a pele de sua mãe quando jovem: um branco quase leitoso, acetinado. As pernas eram roliças, firmes. As ancas, equinas, e os cabelos negros e sedosos. Tinha lábios sensuais, e um defeito na língua, de modo que falava de uma maneira especial, como uma criança. Ao cerrar os olhos, notava-se um quase imperceptível esforço, e isso, de algum modo, acentuava-lhe o ar de criança. No semestre seguinte João descobriu que eram colegas de curso e que tinham várias disciplinas juntos. Não sabe como foi, mas se tornaram amigos. Para ele era muito que tivesse Julieta. Sua presença de mulher bonita lhe fazia um bem profundo.

Sentou-se, as pernas a tremer, suado e fraco da fome e da caminhada. Sentia premente necessidade de morder algo sólido. Tentou prestar atenção na aula, mas não conseguia reter as informações do professor. E foi assim até meio-dia. Chegara àquele estágio em que não há mais fome, mas uma dormência no estômago, uma contagem regressiva para o desfalecimento. Ir a pé da Cidade Velha para a universidade, de manhã cedo, após o café, era até agradável, mas tinha de pedir carona para voltar. Era a parte humilhante do seu dia. No caminho ia pensando que seria bom encontrar uma carta, um recado, qualquer coisa, mas a carta mensal que recebia de casa ainda ia demorar uma quinzena. O suco gástrico agitou-se. Pelo menos havia a mangueira. Sempre encontrava duas, três mangas. E à noite iria até a padaria e pediria ao Ogro – que é como apelidava o padeiro – um pão, e o Ogro lhe daria um pão massa fina do dia anterior. Depois de comê-lo, beberia um copo d’água e iria deitar-se.

À noite, sentindo um pouco de náusea, não teve disposição para ir à padaria e se deitou. Estava tonto, e com aquele sono que é um desmaio, que vem e vai.

- Ei! – escutou que lhe diziam. Abriu os olhos. Julieta estava em pé, ao lado da cama, com um leque de dinheiro na mão. Pouco depois estavam no bar do Hilton. Mas João continuava sentindo um vazio na barriga, cada vez mais sentia o vazio, até que o vazio se tornou um entorpecimento. Julieta se deitou a seu lado e o aqueceu com seu corpo macio e branco, como a epiderme de sua mãe. E então aquela dança louca deu lugar a um zumbido vago, como um avião lento, muito alto no céu.


Do livro A Grande Farra, edição do autor, Brasília, 1992, contos, esgotado

sábado, 3 de dezembro de 2011

No mundo pós-moderno não há mais condições para estados como o Pará

Brasília, 3 de dezembro de 2011 – Todo o poder político emana do povo. Assim, serão os paraenses que determinarão, dia 11, se o Pará será ou não dividido em três. Mas eu, que sou paraense de Macapá, tenho minha opinião sobre isso. Os colonos portugueses dividiram o Brasil em dois: o Brasil, abarcando as regiões Sudeste, Nordeste menos o Maranhão, Sul e Centro-Oeste; e Grão Pará, abrangendo a Amazônia Clássica e o Maranhão. O Grão Pará foi dividido em Pará, Amazonas e Maranhão e, posteriormente, em Pará e Território Federal do Amapá (hoje, estado). É sua vocação.

Na Terra pós-moderna (a era da tecnologia de ponta) não há mais condições para impérios, territórios continentais. Os estados são cada vez mais enxutos. Os governadores do Pará não dão conta nem do quintal deles, quanto mais de uma área de 1.247.689,515 quilômetros quadrados, maior do que Angola, dividido em 144 municípios, entre os quais Altamira, com 159.695,938 quilômetros quadrados, o maior município do Brasil e o segundo do mundo, menor apenas do que Qaasuitsup, município gronelandês (da ilha dinamarquesa da Groelândia, na América do Norte, criado em 1 de janeiro de 2009). Se Altamira fosse um país, seria o nonagésimo primeiro mais extenso do mundo, maior que a Grécia ou o Nepal. Se fosse um estado brasileiro, seria o décimo sexto, maior que o Acre ou o Ceará. Em Altamira, vive-se na Idade Média.
Os moradores do estado do Amapá, desmembrado em 1943 do Pará, seriam hoje tribos meio brasileiras, meio francesas, pois procurariam trabalho na colônia francesa da Guiana, e Macapá, a capital, seria provavelmente uma cidade ribeirinha como as do vizinho arquipélago do Marajó, uma das regiões mais atrasadas (e belas) do Pará, no quintal de Belém.
Talvez os paraenses do que sobrará do Pará, em caso de aprovação da divisão, manifestem apenas o apego à ideia de ter nascido num verdadeiro país em área territorial, e os governadores estejam de olho, desde sempre, nas matérias-primas e nos impostos, e não pensem na situação dos caboclos, dos ribeirinhos e dos índios. Creio que os governadores do Pará deveriam ser obrigados por lei a viver pelo menos um mês na região mais inóspita do estado, antes de tomar posse, assim como o governador do Distrito Federal deveria andar de ônibus em toda a cidade-estado durante o mesmo tempo, e o presidente da República a passar uma semana em cada uma das quatro regiões mais miseráveis (porque atrasadas) do país, entre as quais o interior do Pará, campeão em escravidão.
Argumenta-se, em contrário à divisão do Pará, que os dois novos estados consumiriam, na sua criação, dezenas de bilhões de reais. Sobre esse quesito, analiso a questão com o mesmo ponto de vista que tenho sobre a Copa do Mundo de 2014. Diz-se que o dinheiro a ser investido no Mundial poderia, por exemplo, pôr a saúde pública nos trilhos. Dinheiro não é problema, na verdade. O Brasil tem condições de fazer uma Copa do Mundo por ano. Quanto à saúde, posta nos trilhos, voltaria a descarrilar. Sem a criação de novos estados e sem Copa do Mundo o governo federal de plantão jamais investiria em infraestrutura e urbanização nesse nível, pois, normalmente, esse dinheiro vai para o bolso de figurões carimbados, gordos como porcos, e tão criminosos como estupradores de crianças.
E esse negócio de dizer que vai aumentar a quantidade de bandidos de colarinho branco é um argumento também suíno, com meu pedido de desculpa aos porcos mesmo.
Se a questão é consertar o Brasil, basta que se faça uma revolução branca: a reforma política. Não aquela comandada pelo notório maranhense Zé Sarney (PTMDB), o que afogou o Senado da República na lama, o maior patrimonialista brasileiro desde Dom João VI (este, legítimo). A propósito, a culpa por Zé Sarney continuar agindo não é dos maranhenses, mas dos tucujus, os índios de Macapá, de quem o autor de Marimbondos de Fogo recebeu o cargo vitalício de senador. Na época, os cupinchas de Zé Sarney colocaram na cabeça dos tucujus que ter um ex-presidente da República como senador seria o mesmo que Dom João VI fugir de Napoleão diretamente para Macapá e dirigir pessoalmente a construção da Fortaleza de São José. A indiarada ficou babando. Agora, os que não levam nada babam, mas de raiva.
Voltando ao Pará, se o plebiscito definir o não à divisão, de qualquer modo as coisas não ficarão por isso mesmo. O governador de plantão terá que prestar mais atenção. Incompetências inacreditáveis como Ana Júlia Carepa, se conseguirem se eleger, não conseguirão aguentar quatro anos, e “quadros magníficos do PSDB”, como o pescador Simão Jatene, terão que enxugar sua adiposa corte.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Tu és minha

A noite caíra mais cedo. Úmida. Chovera à tarde. A chuva prolongava-se interminável, fininha, quase como névoa, despencando em gotas frias das folhas das mangueiras. Era fim de novembro e o outono apoderara-se de Belém, dos carros, das ruas, que pulsavam nas luzes vermelhas dos letreiros e nas traseiras dos automóveis nas esquinas. A vida manifestava-se na noite, nos bares, nos copos de bebida.

- Mais um! – Jorge pediu ao garçom. Tinha sempre de ir ali, a cada noite, quando estava na cidade, para tomar um ou dois Johnnie Walker. Havia três moças bonitas. “Nenhuma é tão bonita quanto Cátia” – pensou. “Não, nenhuma.”
- E as caçadas, como vão? – perguntou-lhe o garçom, que se chamava Julinho.
- Nesta época, agora, é ruim – disse Jorge.
- Ruim mesmo. Só chuva...
- Muita chuva até o começo de junho.
- Cruz, credo! – disse Julinho, que era novato na região.
- Pois sim! Mas em julho volta o sol e as praias ficam lotadas.
- E há praias por aqui?
- Há Salinas.
- Um momento... – disse Julinho, indo atender o pessoal do extremo do balcão. Quando voltou, Jorge já estava se retirando.
A chuva parara de vez e só quando o vento agitava as mangueiras é que se sentia pingos da água retida nas folhas. Gostava de andar e de ver a cidade quando voltava da selva. As luzes, as pessoas, os automóveis significavam a volta à civilização. Passou pela frente de um restaurante, uma dessas churrascarias apropriadas para receber famílias inteiras, e sentiu o aroma gostoso de iguarias gaúchas. Deu-lhe vontade de tomar chimarrão. Tomaria na casa de Cátia. Olhou para o relógio. Era cedo ainda. Mas não via a hora de rever Cátia. Pegou um táxi.
- Braz de Aguiar, por favor – disse ao motorista.
Gostava da Braz de Aguiar. Lembrava-lhe Copacabana, e Copacabana era um dos lugares que amava. Saltou a poucos metros do prédio onde Cátia morava. Era um prédio muito chique e ele se sentia mal ao cruzar o vestíbulo. O porteiro lançou-lhe um olhar desconfiado ao anuncia-lo pelo interfone. Ela subiu.
Cátia estava de camisola, linda, linda. Era uma camisola de seda branca, que se confundia com a pele da mulher. Seus cabelos caíam negros numa revolução sobre os ombros, em espasmos infinitos. Tinha olhos verdes, nariz arrebitado, lábios cheios, quase indecentes, e longos dedos. Tocava-a e deixava-lhe, a cada toque rude, um vergão vermelho, que lentamente desaparecia na alva pele acetinada. Ela estava ali, em pé, à sua espera, com seus olhos quase estrábicos, tornando-se insuportável sua ameaçadora sensualidade.
Lá fora, os rumores da noite viviam em outra dimensão e apenas um som indistinto, como que vindo do mar, de muito longe, chegava até eles, e diluía-se antes de tocá-los.
Jorge herdara de seu pai, que também fora caçador profissional, um sexto sentido quase feminino, e sentia a aproximação do perigo pelas narinas. Sentia literalmente o cheiro do perigo. O perigo fedia a frio e à falta de ar. Já estava com sua arma em punho quando viu o outro fazendo pontaria na sua cabeça. O disparo explodiu a delicadeza e a languidez do amo, e a tragédia entrou como gritos na sala. Lá estava o marido de Cátia, olhando pateticamente para nada, como se o olhar tivesse feito um esforço para ver o buraco de bala na própria testa. Cátia estava sentava num sofá. Chorava. Seus ombros se sacudiam de vez em quando. “Logo isto estará um inferno” – Jorge pensou, correndo ao quarto e trazendo um sobretudo, que jogou sobre Cátia. Era um apartamento que ocupava todo um pavimento e eles desceram pelas escadas. “Felizmente fica no terceiro andar” – Jorge pensou. Saíram diretamente da garagem para a rua. Ela estava descalça e tropeçou na calçada. Passou um táxi. Eles o pegaram.
- Vá! – disse ele ao motorista.
- Para onde?
- Vá! Vá para qualquer lugar! Vá!
Pouco adiante, Jorge mandou o motorista parar. Pagou-o. Logo passou outro táxi. Pegaram-no e desta vez Jorge disse a direção. Saltaram no Porto do Sal, onde os bêbedos riram ao ver a mulher descalça e manquejando. “A maré está cheia” – disse Jorge, baixinho.
O barco era confortável e rápido. Em poucos minutos estariam do outro lado do rio Guamá. A noite úmida abraçava o barco e o empurrava, espremendo-o na sua umidade e negrura. As chamas de um palito de fósforo iluminaram por pouco tempo a si mesmas, deixando uma brasa tênue no piche da noite. Às vezes, os gemidos de Cátia venciam estranhamente o barulho do motor, numa orquestração que só o vento dominava. Depois o vento apagava tudo e novamente, como que de propósito, ordenava aos metais que se imobilizassem subitamente; então, num crescendo, as cordas avançavam e avançavam, até que novamente a orquestra toda, enlouquecida, castigasse os ouvidos. Depois, quando aportaram, o vento morreu. Dentro da casa, agora, a noite era um som pianíssimo, murmúrios de Cátia, seus gemidos.
Atento, na varanda, de modo que pudesse ver pela janela a mulher no quarto, Jorge fumava. “É bom que ela chore bastante. Foi melhor assim” – pensava. E pensava também na próxima temporada de caça, na exibição aos turistas e também no longo inverno que ainda teriam de atravessar. “Por mais que viajemos para um país do sul, Cátia ainda terá seu inverno” – pensou. Entrou na casa e ficou parado a poucos passos da mulher, fumando. Cátia era uma mancha leitosa, evanescente, na penumbra. Às vezes, ele ouvia um gemido mais forte, mas logo o silêncio de antes voltava mais cavo, até que tudo imergiu na noite.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O estupro

A luz amarela do sol esvaía-se. Isaías levantou-se e foi à janela; ficou observando, por algum tempo, o trânsito lá embaixo. Tinha dormido doze horas e sentia-se muito bem. Foi ao banheiro, sentou-se no vaso e lá ficou durante um bom tempo. “Posso ir à casa de Babí” – pensou. Levantou-se. Saiu do banheiro e foi até o telefone. Ligou para Babí. Ninguém atendia. Voltou ao banheiro. “Porra!” – disse. A água estava boa.

Pouco depois, no balcão do La Bodega, batia papo com Tio. Vestira-se de branco, exceto os sapatos e as meias. Pusera seu melhor sapato. As meias eram cor da pele. As calças, de linho, eram folgadas, tanto quando a camisa de seda.
A noite, através da vidraça, caía mais lenta. Era fim de maio, e lá fora o sol ainda agonizava, entrando, finalmente, nos espasmos do crepúsculo. Mas de dentro do bar era como se víssemos de óculos escuros a tarde. Estava agradável. Tanto lá fora a tarde, quando dentro, no bar. O ar refrigerado batia na pele recém-lavada e produzia uma sensação de prazer, que aumentava com o silêncio envolto a fragmentos de conversas das poucas pessoas que se encontravam, àquela hora, ali. O som da buzina de um automóvel atravessou a porta do bar e foi morrer na penumbra, ao som de Thender Is the Night. Isaías olhou para fora, através da vidraça, e viu que era noite. Automóveis cruzavam as ruas, na esquina, e de vez em quando estacionavam em frente ao bar, com suas luzes vermelhas pigmentando a noite.
O bar, às sextas, lotava sempre. Às oito, o burburinho aumentara. Havia muitas mulheres bonitas, mas nenhuma como Babí. Viu aquela moça promíscua, que estudava medicina e que bebia muito e fumava também. Ali estava o tipo que uma vez saíra sem pagar, mas voltar – certamente não podia passar sem ir ali. Do outro lado, havia um pai e uma rechonchuda garotinha, ocupada ora em espetar com um garfo o sanduíche que o pai cortara, num prato, ora a fazer-lhe perguntas, que o pai ia respondendo sem tirar os olhos do Jornal do Brasil. Havia também três moças tão lindas que causavam sofrimento em quem as visse e nada pudesse fazer, além disso. Havia ainda um negro e um mongoloide, que agora estavam saindo. Quando chegaram, o negro ofereceu cachaça ao garoto, e ele riu muito da piada. Serviram-lhe meio abacaxi recheado de sorvete e frutas. Ele olhou maravilhado para aquilo e pôs-se a comer como quem desmonta, cuidadosamente, uma casa. O negro, ao seu lado, bebia chopp, satisfeito com a felicidade do garoto. As mesas, nos fundos, também estavam ocupadas. Isaías reconheceu, numa delas, um radialista em companhia de uma ninfeta, avistou um plantador de urucu e notou as presenças de um político, de um editor de jornal e de um piloto de avião, que conhecera no Aeroclube de Belém.
“Bem que o João podia estar aqui” – pensou. Só havia um problema, que era a dipsomania do João. Mas poderiam falar de Curzio Malaparte, Fiódor Dostoiévski e Fraz Scott Fitizgerald.
- Quem sabe ela já não chegou? – disse Tio, servindo-o de mais um gim-tônica duplo. Tio já estava ao telefone ligando para Babí. Desta vez ela atendeu.
- É o Isaías!
- Meu Deus! – disse ela, sem crer.
- Vem para o La Bodega – convidou-a. Mas ela não queria acreditar que fosse ele mesmo.
- Meu Deus! – voltou a dizer.
- Cheguei ontem.
- Ontem? E por que você não me ligou ontem? Só agora é que você me ligou?
- Vem logo. Estou à tua espera.
- Vou tomar banho e em uma hora estarei aí.
- Está certo.
Pôs-se a beber, devagar, mergulhado em fantasias. Babí, com seus olhos verdes, que pareciam soltar estrelinhas, o rosto ovalado, lábios carnudos, cabelos crespos e longos, olhando-o nos olhos, sorrindo, beijando-o, gozando, beijando-o quase com violência, tirando, inutilmente, os cabelos que lhe caíam no rosto e entravam na boca, debruçada sobre ele, a comê-lo.
Uma chuva fina e passageira caiu e molhou o asfalto, a calçada em frente ao bar e a capota dos carros estacionados no meio-fio.
Sentia-se bêbedo. “Cadela” – disse para si. “Devemos deixar que as mulheres nos escolham; assim, serão nossas sem reservas” – pensou, lembrando-se do quanto insistiu cortejando Babí. Viu, pelo espelho, quando ela entrou no bar.
- Deus! – disse para Tio. Ela estava muito linda mesmo. As três beldades tiveram de olhar para ela. Babí atravessou o salão completamente indiferente, os olhos verdes em Isaías. Eram os olhos verdes mais bonitos que pudesse haver. Grandes, grandes. Sentou-se, no tamborete, ao lado de Isaías.
- Muito bem! – disse. – Aqui está nosso caçador. Para a caça – disse, voltando-se para Tio -, um dry Martini.
Isaías beijou-a.
- Assim não! – ela protestou. – Está violento demais. – E beijou-o. Babí beijava e a sensação que se tinha era de que ela se esvaía, evanescente, nos nossos lábios, mas sabia-se que ela estava ali, nas nossas mãos.
- Deste vez quantos troféus trouxe o meu caçador?
- Meu grande troféu és tu.
- Você porá minha cabeça na sala?
- Vivo em quartos sórdidos de pequenos hotéis.
- Então case-se comigo.
Ele ficou um pouco triste.
- Ora, tu não viverias naqueles buracos miseráveis, na selva.
- Eu o aguardaria sempre na cidade.
- Traindo-me... Eu te amo, Babí, mas o mato é minha vida. Não saberia ganhar dinheiro senão levando esses alemães ricos para matar jacaré. Às vezes, ganho um bom dinheiro quando me exibo, matando onças.
- Receio que o IBDF o flagre.
Ele riu.
- Isto aqui é Cuba antes de Fidel Castro.
Os olhos de Babí estavam da cor do dry Martini. Ele  olhou-a suplicante.
- Vamos! – pediu-lhe. Quase ordenou.
O motel estava imerso no recolhimento. Motéis despertavam um sentimento ambíguo nele, um sentimento de recolhimento, mas, ao mesmo tempo, de vulgaridade. A ssíte era silenciosa e limpa, mas a penumbra sempre o afetava. Se não estava na selva, gostava de muita claridade. Pegou o aparelho de TV e o tirou do quarto. Depois, foi à cama e experimentou-a. O desgosto aflorou no seu rosto. O colchão d’água parecia-lhe demasiadamente vulgar. De qualquer modo já estava infeliz mesmo. Relembrou o que houvera. Misturara profissão com prazer. E de um modo imperdoável. Se ao menos tivesse apenas tido um caso com a alemã, estaria quase bem. Mas apaixonara-se por ela. E ela, agora, uma condesinha, devia estar se divertindo por aí.
Despiu-se e foi para o banheiro. Babí estava lá, nua, linda, sob a ducha. Ele entrou e beijou-a.
- Não, aqui não – Babí protestou.
- Aqui – disse-lhe.
Ela olhou-o. Estranhara-lhe a voz.
- Não, Isaías, aqui não!
- Aqui sim, e já!
- Você está me machucando, Isaías!
- Vamos, vaquinha!
Ela estava perplexa e pôs-se a chorar enquanto ele a tinha. Quando ele saiu do banheiro, deixou-se sentar no chão, e seus olhos verdes choravam; eram tudo quanto se podia ver naquele quarto.
Ele se deitou e dormiu.

Do livro de contos A grande farra, edição do autor, Brasília, 1992, 153 páginas, edição esgotada

sábado, 22 de outubro de 2011

O prazer de ser lido

Este blog completa um ano, hoje, 22 de outubro de 2011. Foi criado graças à insistência do artista plástico brasiliense André Cerino, um dos que, em todo o planeta, melhor utilizam os recursos da Web. Antes de 22 de outubro de 2010, eu já havia publicado sete livros, de poesia e ficção, e, desde 1975, venho assinando artigos, crônicas e contos em jornais impressos da Amazônia e de Brasília, mas nunca fui tão lido como nesse último ano.

Creio que isso aconteceu por dois motivos: meus livros sempre tiveram edições não comerciais, pequenas tiragens, e contaram com distribuição rarefeita; também os jornais em que trabalhei eram de circulação local, sendo que os mais expressivos foram A Crítica, de Manaus; O Liberal, de Belém do Pará; e Correio Braziliense, de Brasília. Assim, meus trabalhos de criação e jornalísticos jamais saíram de um pequeno círculo.
A segunda razão é a Web. A Wikipédia explica didaticamente o que é a Web: “World Wide Web (que em português significa Rede de Alcance Mundial; também conhecida como Web e www), é um sistema de documentos em hipermídia que são interligados e executados na internet. Os documentos podem estar na forma de vídeos, sons, hipertextos e figuras. Para visualizar a informação, pode-se usar um programa de computador chamado navegador para descarregar informações (chamadas "documentos" ou "páginas") de servidores web (ou "sítios") e mostrá-los na tela do usuário. O usuário pode então seguir as hiperligações na página para outros documentos ou mesmo enviar informações de volta para o servidor para interagir com ele. O ato de seguir hiperligações é, comumente, chamado de "navegar" ou "surfar" na Web”.
Pois bem, desde que inaugurei meu blog, até as 9h30 de hoje, já fui lido 8.553 vezes, o que equivale à média de mais de 23 leituras por dia, em países da América do Sul, América do Norte, Europa, Ásia e África. Os dez países onde tive mais leitores são: Brasil, 7.381; Estados Unidos, 472; Alemanha, 135; Portugal, 102; Espanha, 91; França, 67; Reino Unido, 38; Rússia, 21; Cingapura, 19; e Paraguai, 18.
Meus trabalhos mais lidos são: a crônica Terno de linho, publicada em 11 de dezembro de 2010, com 254 leituras (creio que devido ao fato de que a poeta e jornalista Alcinéa Cavalcante publicou-a no seu site - www.alcinea.com -, o mais lido do estado do Amapá, aquele que Zé Sarney anexou ao Maranhão); o artigo Jovem espetada num gancho de açougue, nua, estuprada e ainda viva, publicado em 16 de abril de 2011, sobre exposição, em Brasília, do genial Fernando Botero, com 102 leituras; o poema Belém do Pará vista da janela do sétimo andar de um hotel, no início da madrugada, publicado em 15 de agosto de 2011, um buquê de rosas colombianas vermelhas que oferto a um dos meus grandes amores: Belém do Pará, com 79 leituras; e a crônica Mulher no chuveiro, que escrevi para minha esposa, em 15 de outubro de 2009 e publiquei no blog em 1 de dezembro de 2010, com 68 leituras.
O maior prazer do escritor é ser lido. Mesmo que um escritor crie e engavete sua criação, paira sempre no ar tênue corrente nervosa - a perspectiva de ser lido. É como o prazer do pintor em que suas telas sejam objetos de longo olhar; quase como a caminhada dos amantes no infindável labirinto do sexo. Assim, oferto aos meus leitores estes átomos acelerados de vida, esta Declaração de amor:
Ela nasceu para o esplendor, povoa um mundo em que só há perfume das virgens ruivas, o Concerto Para Piano e Orquestra, em Ré Menor, de Mozart, e azul, tão azul que sangra.
Namoro com ela em todas as oportunidades, quando saio e quando chego em casa. Desde que ela nasceu, acompanho seu embelezamento, seus banhos de sol e sua nudez, cada vez mais esplendorosa, entregue aos carinhos da brisa, das borboletas e dos beija-flores.
Nasceu sozinha, sobre longo caule, que escorei firmemente para que o vento não a perturbe. Consciente de que as rosas não vivem muito tempo, procuro apreciá-la em todos os momentos que posso, namorando-a intensamente. Ela não me dá importância, é claro, pois as rosas só se importam com o sol, mas deixa que a olhe e que cuide do caule que a sustenta. E depois, desconfio que ela saiba dos meus sentimentos, pois, quando a olho, se torna ainda mais bela.
Já comecei a me preparar para quando ela se for. Procuro me convencer de que as roseiras do meu jardim ainda me proporcionarão um sem número de emoções. Mas ela é tão esplendorosa! Na sua juventude, era amarela. Gabriel García Márquez ficaria apaixonado se a visse. Agora, madura, se vestiu completamente de rosa.
Sempre que a vejo é como se fosse pela primeira vez, por isso, ela nunca murchará na minha lembrança, já que os sentimentos verdadeiros não murcham, nunca, e só eu sei o quanto a amo, como amo tudo o que é das rosas. Acredito, com fé, que as rosas são portais para a dimensão de Deus. São, misteriosamente, inexpugnáveis na sua fragilidade, e eternas na sua fugacidade.
Quando penso que essas criaturas nascem no meu jardim vibro de alegria, pois sinto como se o Universo pousasse ao meu lado, me deixando montá-lo, como se monta no dorso de uma libélula, voando sem fim.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Santuários corrompidos

Os santuários da Amazônia são as regiões da Hileia onde o colono europeu não ousou pôr suas botas, desembainhar suas espadas, lançar pestes e a Inquisição. O Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque é uma delas. “Estive onde o homem jamais pisara” – comentou o taxidermista do Instituto de Pesquisas Científicas do Amapá (Iepa), João Cunha, depois de participar, juntamente com o taxidermista Manoel Santa-Brígida, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), de expedição levada ao ar pelo Globo Repórter em 11 de fevereiro de 2005.

Pesquisadores e jornalistas estiveram no extremo oeste do parque, próximo à tríplice fronteira entre Brasil, Suriname e a colônia francesa da Guiana, a 450 quilômetros de Macapá, acessível somente por helicóptero. A expedição recebeu apoio do Primeiro Comando Militar da Aeronáutica (Comar) e dos Segundo e Trigésimo Quarto batalhões de Infantaria de Selva (BIS).
Com 38.821,20 quilômetros quadrados, 26,5% do estado do Amapá, o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, administrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), é a maior unidade de conservação do país e a mais extensa área protegida de floresta tropical do planeta. É integrado pelos municípios de Calçoene, Laranjal do Jari, Oiapoque, Pedra Branca e Serra do Navio.
O Amapá é uma das regiões mais belas da Terra. Com 142.814,585 quilômetros quadrados, desmembrados do estado do Pará, debruça-se, no setentrião brasileiro, para o Atlântico, na boca que se abre para o Caribe, limitando-se ao norte com a colônia francesa da Guiana; ao sul com o maior rio do mundo, o Amazonas; a oeste com o Pará; a noroeste com o Suriname; e a leste com o mar. Cortado na altura de Macapá, sua capital, pela Linha Imaginária do Equador, esquina com o Amazonas, longitudinalmente, é atravessado pela sua única rodovia federal, a BR-156, que já enriqueceu muita gente, em todos os governos, desde 1943, numa farra permanente, e que nunca foi concluída.
A França já construiu uma ponte ligando sua colônia a Oiapoque, no Amapá, de modo que, ao ser, algum dia, concluída, a BR-156 ligará Macapá ao Canadá, via América Central. Por enquanto, Oiapoque só aparece na mídia nacional como vitrine de carne infantil, que europeus ávidos por crianças atravessam o rio Oiapoque para degustar na segurança da corrupção tupiniquim.
Estado potencialmente rico, sua costa é a mais piscosa do planeta, infestada de piratas e ignorada pela Marinha de Guerra do Brasil. Com vocação para a indústria de navios, seus governadores jamais incentivaram a instalação de estaleiros e a criação de cursos de engenharia naval e de oceanografia na sua universidade federal. O Amapá conta com a doca mais estratégica da Amazônia, o Porto de Santana, o mais próximo simultaneamente dos mercados americano, europeu e asiático, mas que precisa ser federalizado, pois está sob jurisdição da Prefeitura de Santana, na zona metropolitana de Macapá, operando como porto de uma pequena cidade ribeirinha, quando pode ser o destino de produtos de toda a Amazônia e do Centro-Oeste para exportação.
Em Macapá, na margem esquerda do Amazonas, falta água encanada e a cidade não tem esgoto. Também falta energia elétrica na capital amapaense - imagine-se no restante do Amapá -, apesar de Tucuruí.
Agora, a tragédia: além de Zé Sarney, o potentado do Maranhão, ter anexado o Amapá, que o ungiu senador vitalício, o padrinho de Lula agora divide o estado com a família Capiberibe: o governador, Camilo Capiberibe; o pai do governador, ex-governador João Capiberibe; e a deputada federal Janete Capiberibe, todos do PSB.
A roubalheira no Amapá é bilionária.
A Amazônia precisa de santuários, mas se as máfias que a estão comendo, não mais a ferro e fogo, e sim com a caneta, não foram varridas para o esgoto, ela se tornará apenas o continente da escravidão sexual de crianças.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

As rosas falam

Chove na minha memória
Barcos deslizam na boca do rio Amazonas e despencam no Atlântico
Na latitude da Linha Imaginária
Espero as chuvas com a mesma sofreguidão com que aguardo
O outono, o inverno e a primavera
O verão, como ocorre em todas as estações da vida,
Inunda o continente do meu coração
De rosas tão azuis que sangram
E mangas doces como seios de mulheres de olhos verdes como esmeraldas
E, se é madrugada, a chuva se confunde ao som ininterrupto do mar
E o atrito da Terra no espaço invade minha alma
E se mistura ao perfume das virgens ruivas, misterioso como mulher nua
Como a luz, como o éter, como o triunfo das rosas

Brasília, 11 de outubro de 2011

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Fim de semana

RAY CUNHA

A embarcação mergulhava a proa e dava a sensação de um dorso de cavalo a galope. Durante toda a manhã foi assim. À tarde, o sol amarelava a baía; não havia vento e o calor estava sufocante. E assim passou-se o dia até a noite, quando chegaram à ilha ao largo de Marajó.
Cedo, no dia seguinte, contornaram a ilha, desembarcaram e se internaram no mato em busca de porcos, que tinham sido vistos naquele ponto. Os rapazes avistaram uma clareira, onde erguia-se um taperebazeiro, e ouviram os porcos. Jiparaná se abaixou para ver as pegadas e um porco passou desembestado por eles. Isaías engatilhou a doze, mas o porco sumira no mato. Jiparaná pediu a doze e quando pegou a arma ela disparou para o ar.
- Bando de filhos da puta! Como é, seu sacana, que tu me dás esta porra engatilhada, em, seu filho da puta?
- Lá está ele! – gritou um dos caboclos, apontado para o porco, que estacionara adiante e procurava orientar-se. Entraram no mato atrás dele e conseguiram-no encurralar numa capoeira impenetrável. Jiparaná disparou. O animal deu um grunhido e caiu. Fora atingido na cabeça.
À tarde, a ilha pareceu inflar. Surgiram praias até onde alcançavam os olhos.
- Vamos levantar, cambada de vagabundos – disse Jiparaná, sob o protesto dos rapazes. Jiparaná ergueu Carlos da rede e foi atirá-lo no rio, do extremo do trapiche. – Vou fazer uma operação daqui a pouco – disse, enquanto tomava um gole de café. – Alguém quer ir comigo?
Só João quis ir e Jiparaná largou-se com ele e um caboclo.
- Outro dia peguei uma criança. Estava morta. Quase podre já.
- E agora, o que é?
- Gangrena.
A casa havia surgido ao longe. Na frente havia meia dúzia de crianças. Quando os avistaram as crianças entraram correndo.
O doente gemia numa rede atada na parte central da casa.
Jiparaná olhou a mão gangrenada e fez uma careta, e pediu que fervessem água.
- João, me dá a maleta. – Tirou um bisturi, Quelene e álcool. João guardou para si uma caixa de Quelene, sem que Jiparaná notasse.
Não havia muito o que fazer. O doente teria que ser removido para Macapá na madrugada seguinte. Jiparaná fez suas recomendações e disse que passaria, com a maré, para pegar o doente. De volta à ilha aproveitariam o que sobrava do dia para pescar.
- Vou dar uma cagada enquanto isso... – disse João, apanhando uma Bíblia. Então mostrou um frasco de Quelene para os outros rapazes. Tomaram um caminho que dava para o mato. Sentaram-se e puseram-se a cheirar Quelene. João sacou meia página da Bíblia e preparou um cigarro.
- Só falta agora Abbey Road e a Telma – disse Isaías.
- E vodca também – lembrou João.
- Com laranja – Carlos completou.
- A Telma é uma delícia...
- Ela deve estar banhadinha uma hora dessas, escutando os Beatles.
Jiparaná os chamou. Foram pescar nos poços ao longo da praia. Os peixes não morriam imediatamente, envenenados pelo timbó, e uma grande piramutaba saltou de dentro da rede, caindo no poço, para logo depois flutuar.
A noite caiu. E tudo pareceu imerso dentro da noite. A ilha era a casa. Quem se aproximasse da casa veria a brasa dos cigarros, que se alumiavam, de vez em quando, pousados no piche da noite.

Do livro de contos A grande farra (edição do autor, Brasília, 1992, 153 páginas, esgotado)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Cheiro de mulher nua

Estou sentado em um quiosque defronte ao Macapá Hotel,
Só, mas há muita luz e mulheres tão lindas que só as vemos em grandes aeroportos internacionais.
Estou só, mas o rio Amazonas, o maior do mundo, ruge como o mar em Copacabana, na maré cheia, e salpica meu rosto, escanhoado para esta noite.
Ouço merengue.
Estou aparentemente só, pois meu Pai enviou uma legião que me acompanha por todo o sempre, meus amigos logo chegarão e sinto o perfume das virgens ruivas.
Estou só com meu coração, relicário de pedras preciosas como acme da mulher amada e o choro dos jasmineiros nas noites tórridas da Linha Imaginária do Equador.
Estou só, mas estão comigo Belém, Manaus e Rio de Janeiro.
Minha solidão é como a dos pugilistas e dos escritores: quando começa o assalto, ninguém os pode socorrer e eles só contam com o talento, por isso nunca estão sós.
Nunca estou só, porque meu carisma é feito de pura luz
E minha lucidez é o Concerto para Piano e Orquestra, em ré Menor, de Mozart.
Estou só, mas o céu é tão azul que chove rosas colombianas vermelhas
E o ar é prenhe do cheiro de mulher nua.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O Círio de Nossa Senhora de Nazaré e a divisão do Pará

A Amazônia é a maior província biológica e mineral da Terra. É o trópico elevado ao quadrado. O cúmulo do realismo fantástico. Neste continente, onde o cadinho étnico e cultural brasileiro ferve, Belém do Pará é sua cidade mais importante (por diversas razões, que podem ser abordadas em outro artigo). E em Belém acontece a maior festa religiosa do planeta, o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, que faz 219 anos em 2011 e que tem seu momento culminante no segundo domingo de outubro, quando cerca de 2,2 milhões de romeiros seguem da Catedral à Basílica, numa procissão que se arrasta ao longo de 6 horas. O Círio Fluvial, na manhã do sábado que antecede a procissão, é outro espetáculo, com centenas de embarcações saindo da Vila Sorriso, Icoaraci, rumo ao porto de Belém.

Este ano, são esperados 73 mil turistas, principalmente dos Estados Unidos e França, que deverão gastar U$ 26 milhões, segundo cálculos da Companhia Paraense de Turismo (Paratur) e do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Como os paraenses gostam de pato no tucupi, na época do Círio importam toneladas da ave do Canadá, o maior produtor de pato do mundo. Entre inumeráveis paixões, os paraenses têm três irremediáveis: açaí, farinha de mandioca e o Círio. Mas não é o bastante para garantir que o território paraense siga incólume.
O Pará já foi Grão Pará, um país apartado do Brasil. A Província do Grão Pará abarcava toda a Amazônia Clássica. Hoje, o Grão Pará está dividido em Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima. Mesmo assim, o Pará atual é uma síntese da Amazônia, tão grande que será submetido a plebiscito, em dezembro, para se saber se será ou não dividido por três. É o segundo maior estado do país, atrás apenas do Amazonas, medindo 1.247.689,515 quilômetros quadrados, maior, por exemplo, do que Angola. Dividido em 144 municípios, é o mundo das águas, com alguns dos maiores rios do planeta, como Amazonas, Tapajós, Tocantins, Xingu, Jari e Pará, e o Atlântico. É o maior produtor de peixe, em quantidade e variedade, do país. É o mais rico e populoso estado (ou província?) da Região Norte, com 7.321.493 habitantes. O Congresso Nacional já aprovou o plebiscito que vai decidir pela criação dos estados de Carajás e Tapajós. Por que querem dividir esse colosso?
Por várias razões. A principal é que os governadores do Pará, todos eles, governam de costas para o interior. Até 1943, o Amapá pertencia ao Pará. Foi desmembrado e conseguiu algum desenvolvimento, embora esteja nas mãos das famílias Capiberibe e Sarney. Os Capiberibe são paraenses e os Sarney, que todos no Brasil conhecem como donos do Maranhão, resolveram expandir seus domínios e tomar conta também do Amapá. Deu certo, para os Sarney: os amapaenses garantiram a Zé Sarney emprego vitalício no Senado. Os Capiberibe e os Sarney não se cheiram, mas dividem fraternalmente o Amapá. Dá para todos. Voltemos ao Pará. É um dos maiores produtores de energia elétrica do país, mas nem metade dos seus municípios conta com energia elétrica firme. Na ilha do Marajó, por exemplo, que nem precisa de votação pela internet para ser uma das sete maravilhas do planeta, crianças são estupradas rotineiramente a troco de comida. É miséria só vista na ilha do carniceiro Fidel Castro.

Quanto a Santarém, há um século que uma elite santarena quer se separar do Pará. Eles já têm bandeira, hino, brasão, tudo. Em Carajás, há mais nordestinos, sulistas e nativos do Centro-Oeste, e certamente sudestinos, do que paraenses. Os belenenses não querem nem ouvir falar em separação.

Há quem diga que criar estados custa caro. Acho que é melhor investir na criação de novos estados do que cevar a máfia instalada em Brasília e os mamadores em Belém. Mas esse assunto é para paraense resolver. Sou apenas metade paraense - do Amapá.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O tempo do coração

Masaharu Taniguchi, no livro Mistérios da vida (Seicho-No-Ie do Brasil, São Paulo, 2003, 303 páginas), afirma que o tempo nada mais é que movimento. Ao declarar isso, o filósofo japonês confirma o que os artistas fazem desde sempre: viajar no tempo, por meio da mente. Woody Allen utiliza esse... truque?, com genialidade, em Meia-noite em Paris (Midnight in Paris, Espanha/Estados Unidos, 2011, 100 minutos).

O cineasta nova-iorquino faz um poema a Paris, exibindo-a sob todas as suas luzes, especialmente a da meia-noite, quando, na Paris de agora, um escritor, personagem central do filme, embarca no túnel do tempo rumo aos anos de 1920, e se encontra com Ernest Hemingway, de Paris é uma festa, Francis Scott Fitzgerald, de Suave é a noite, Pablo Picasso, e turma. De volta a 2011, descobre a intensidade do momento mesmo da vida, pois agora tem certeza de que a verdade está sob a chuva, à meia-noite, em Paris.
A verdade está dentro de nós mesmos. “Aonde quer que a gente vá, levamos sempre conosco nós mesmos” – disse o autor de O sol também se levanta. Com efeito, mudanças de ares não solucionam problema algum, pois se passa no plano físico, embora possam significar uma pista para a resolução do conflito, que ocorre na mente.
Lembro-me que, em 1971, aos 17 anos, em Macapá, minha cidade natal, uma cidadela ribeirinha, eu me sentia acossado pelo preconceito gratuito contra o ser artista. Escafedi-me. Fui de carona para o Rio de Janeiro. Já havia lido Paris é uma festa. Na casa do teatrólogo Paschoal Carlos Magno, em Santa Teresa, Rio, disse a ele que queria ir para Paris. Ele me perguntou para que. Disse-lhe que era para escrever um romance. “Mas você pode escrevê-lo aqui” – disse-me. “Se ao menos ainda estivéssemos no governo de Juscelino Kubitscheck.”
Nunca fui a Paris, nem escrevi romance algum no Rio de Janeiro, mas foi lá que eu renasci, da mesma forma que renasci em Buenos Aires, em Manaus, em Belém do Pará, em Brasília, em Goiânia, em Luziânia. Qualquer cidade é boa para renascermos, basta que descubramos, nela, o portal do tempo, que nos leva ao agora e o agora.
Assim como Woody Allen fez em Meia-noite em Paris, fiz em A Casa Amarela (Editora Cejup, Belém do Pará, 2004, 158 páginas). A turma toda está lá, em Macapá, sob o perfume dos jasmineiros que choram nas noites tórridas, que são todas as noites, exceto as muitas noites em que sentimos cheiro de água, de tanta chuva. Mas, em agosto, o céu de Macapá parece Paris à meia-noite, e a boca do rio Amazonas arranca o cheiro do Atlântico e o leva até os quiosques na frente do Macapá Hotel, misturando-se a Cerpinha enevoada e a boca de mulher.
O tempo cronológico é físico; o tempo mental, ou poético, não existe. Os artistas sabem disso. Por isso, não importa onde estiverem, estarão sempre viajando, às vezes, muito alto, num avião, batendo papo com Antoine de Saint-Exupéry.

domingo, 28 de agosto de 2011

Josiane, Tereza, Leila, Sílvia, Telma, Myrta, Graciete, Eliana, Tiana, Roberta, Mara, Célia, Bethania, Elijanete, Tharcilla...

Há dias que não sou visitado por ninguém na França, e na França tenho leitores, como o embaixador português Francisco Seixas da Costa, autor de Tanto Mar? Portugal, o Brasil e a Europa, e que representou seu país em Brasília e agora serve em Paris. Contudo, a maioria dos meus leitores na França é de mulheres, como a minha amiga Yara, cantora, ex-mulher do meu querido amigo, o compositor Luiz Tadeu Magalhães, ambos meus conterrâneos, naturais de Macapá, a cidade que se debruça para a boca do maior rio do mundo, o Amazonas, ao cruzar a Linha Imaginária do Equador. Também de Macapá tenho uma amiga da adolescência. Ela recebeu seu primeiro beijo de mim.

Naquela época, eu frequentava a casa da Leila e da Sílvia, no Igarapé das Mulheres. Eu tinha 14 anos. Era 1968. Os Beatles estavam no auge. Às vezes, na casa do poeta Isnard Lima Filho, eu o ouvia declamar Rosas para a madrugada. As noites, então, eram imortais e tresandavam a perfume. A casa da Leila e da Sílvia era o portal mágico para o jardim secreto da adolescência. As duas irmãs se transformaram, para sempre, em flores que guardo no relicário do meu coração.

Tereza era um santuário que desabrochava da infância quando ofereceu seus lábios virgens para o roçar da minha boca, e o beijo se fez, puro como luz. Se um terremoto me abalou, ela, que é uma flor, sentiu a velocidade vertiginosa da Terra no espaço sideral, e, por toda a eternidade, seguirá com a luz que acendi.

E é sempre com a pureza deste primeiro beijo que me aproximo das mulheres. Na verdade, elas é que me iluminam. Sempre estive cercado de mulheres. Além da minha mãe, que tinha o belo nome de Marina e que era linda como as manhãs de julho na Amazônia, há ainda minha irmã mais velha, Lindomar, a quem chamo de mãe. Minhas companheiras, todas elas, foram luzes que me orientaram em certos pontos obscuros da vinha vida, até eu emergir para as manhãs amazônicas de agosto. Todas as minhas companheiras se entregaram inteiras, sem reservas, ao meu bisturi de poeta, porque sabiam que, com minhas mãos de jardineiro, eu as fazia desabrochar como rosas colombianas, vermelhas, num mergulho conduzido por elas mesmo.

Sou para sempre grato às mulheres da minha vida, pois elas me conduziram ao que eu sou hoje, um espectador maravilhado, um mergulhador nos abismos mais profundos da natureza feminina. Se Deus tivesse sexo, Ele seria Mulher.

Tereza é, hoje, francesa. Bela sempre foi. É amada e tem as joias que Deus nos oferta: filhos. Ela é uma riqueza que vem da França, porque, para o escritor, ser lido gera uma alegria imensa, pois esta é a missão do escritor: escrever. E o texto só é vivificado quando lido. É também para ti que escrevo, Teresa, da mesma forma que escrevo sempre para a metade da minha alma, Josiane.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Octávio Ribeiro, Pena Branca

Em julho de 1978, eu trabalhava como repórter em O Liberal, no belo prédio assinado por Francisco Bolonha, antiga sede da Folha do Norte, na Rua Gaspar Viana, no centro de Belém do Pará, numa época em que o bas-fond ainda arquejava. Um dia, recebi pauta para entrevistar o lendário Octávio Ribeiro, conhecido como Pena Branca, que estava na cidade para autografar seu Barra Pesada, livro de reportagens. Ele e sua companheira - na época, uma jovem paulistana, herdeira de uma indústria de vidraça – estavam hospedados em um pequeno hotel no centro de Belém. Era uma manhã ensolarada, pois julho é o auge do verão amazônico. Diga-se que verão na Amazônia é estiagem, ou é quando chove menos, estação que vai de maio a outubro; pressupõe-se que chove mais de novembro a abril, o que chamamos (sou amazônida) de inverno. Pena Branca recebeu esse apelido porque tinha uma mexa branca de cabelo no alto da testa, mas, em 1978, seu cabelo começava a ficar grisalho. Ele era grandalhão, tinha a voz grossa e emanava vitalidade. Quando leu a entrevista, comentou que era a melhor da imprensa local.

Naquela época, eu frequentava a casa do Walmir Botelho, hoje diretor de redação de O Liberal. Ele se casara com minha amiga de infância, Deury Farias, de Macapá. O Walmir comandava, juntamente com Oliveira Bastos, O Estado do Pará, um dos melhores jornais já feitos em Belém, e o Oliveira acabara de convidar o Pena Branca para dar uma sacudida na editoria de polícia do jornal. Quando o Pena me viu na sala do Walmir me convidou na hora para eu assumir como redator, recebendo mais do que o dobro do que eu ganhava em O Liberal. Aceitei de pronto.

Trabalhei um mês e meio com Pena Branca. Aprendi muito com ele, como armar frases claras e curtas, usar as palavras com propriedade, rigor gramatical e criar um tom coloquial nos textos, além de desenvolver feeling para a notícia jornalística. Aprendi também que em jornalismo é preciso investigar, investigar, investigar, para não cometer injustiça. De madrugada, quase sempre saíamos juntos, Walmir, Pena e eu, além de outros colegas. Íamos para a noite belenense. Uma noite, ele me convidou para dormir no apartamento dele e da sua mulher, no prédio da Assembleia Paraense, na Avenida Presidente Vargas. Estávamos lá quando rebentou uma discussão entre os dois. Parecia que iam quebrar o apartamento todo. Depois ficaram mansos. Soube depois que aquilo era normal entre eles. De qualquer forma só não fui embora porque Pena me pôs em cárcere privado. Não queria que eu fosse embora. Era um sujeito que precisava de companhia e movimento o tempo todo.

Além de redigir a manchete e outras matérias importantes de polícia, eu escrevia contos engraçados que eram publicados no jornal, e ainda ajudava, às vezes, o Walmir na capa. O Pena me adorava, porque gostava do meu texto e, creio, porque lhe transmitisse serenidade. Eu também gostava bastante dele. Mas em pouco tempo fui me enchendo da editora de polícia. Comecei minha carreira de jornalista como repórter policial no Jornal do Comércio, de Manaus, em outubro de 1975, em plena ditadura militar. O Casarão, a central de polícia, fedia a urina, a sangue seco, a tortura, a sebo. Os dois meses que trabalhei como repórter policial foram a travessia de um pântano de baixezas humanas, onde a morte trágica era rotina. De lá, fui para a reportagem geral de A Notícia.

Em O Estado do Pará, comecei a me encher daquele mundo de horrores, que era o mundo policial na época da ditadura, e também da falta de preparo, de sensibilidade, dos repórteres policiais. Na verdade, eu sempre quis escrever literatura; apenas ganhava a vida como jornalista. Aliás, eu não tinha sequer o ensino básico completo, e só entrei na universidade depois de fazer o supletivo dos antigos cursos ginasial e segundo grau, em 1982, terminando o curso de Comunicação Social na Universidade Federal do Pará (UFPA), em 1987. Um mês e meio depois, pedi ao Pena para sair da polícia e ir para a editoria de cidade. A reação do Pena foi possessiva: disse ao Oliveira Bastos, que era dono do jornal, juntamente com Avertano Rocha, que se eu não fosse demitido ele sairia. O resultado é que eu me mandei.

Fui para Rio Branco, trabalhar com Elson Martins na Gazeta do Acre. De lá, voltei para Manaus e para Belém. Em 1987, vim para Brasília, e fui trabalhar novamente com o Walmir Botelho, então diretor de redação do Correio do Brasil. O Octávio Ribeiro andou também por Brasília, sempre brilhando. Daqui, foi para Manaus, onde morreu.

Em um mês e meio de convivência com ele foi como se o conhecesse há décadas, tal a intensidade com que vivia, e vivia intensamente a investigação, o deslindamento do mistério, a própria vida. Era também afetuoso, justo, e possessivo. Acho que se sentia só porque, como uma estrela cadente, se consumiu rapidamente num voo fulgurante. Resta a lenda.