segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Estupro, tráfico e escravidão sexual de crianças e mulheres na Amazônia real continuam banais

Ray Cunha e JAMBU: thriller policial e geopolítico que mostra a Amazônia
como ela é, sem romantismo ou a verborreia mentirosa dos idiotas úteis.
Na foto, capa da edição que será autografada, do Clube de Autores

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 26 DE FEVEREIRO DE 2024 – Neste sábado 2, estarei autografando o romance-reportagem JAMBU (Editoras Clube de Autores, amazon.com.br e Uiclap, 190 páginas) no restaurante Belém Belém Amazônia, templo da cozinha paraense no Rio de Janeiro, na Avenida Rainha Elisabeth da Bélgica 122, Loja A. Essa via liga as avenidas Atlântica, em Copacabana, na altura do Posto 6, à Vieira Souto, em Ipanema. 

Trata-se de um romance-reportagem porque mistura uma história inventada com reportagem. Durante o Festival Gastronômico do Pará e Amapá, o jornalista João do Bailique escreve as matérias que comporão uma edição especial da revista Trópico Úmido e investiga um traficante de crianças e de grude de gurijuba. Em segundo plano, a culinária paraense é esmiuçada e João do Bailique escreve sobre a Amazônia profunda, inclusive aquela que se assemelha à África no século XIX, a de Coração das Trevas, de Joseph Conrad. 

Além do mais, misturo em JAMBU personagens de ficção a pessoas de carne e osso, conhecidas, vivas ou mortas, e as matérias que João do Bailique vai escrevendo, no desenrolar da história, são reais, sobre a Questão Amazônica. Uma dessas questões é o tráfico e escravidão sexual de crianças. Assim, segue um trecho do livro, meio longo, sobre esse assunto, que voltou à tona na mídia séria, novamente, devido ao que acontece desde sempre na ilha de Marajó, no Pará, que é o estupro, tráfico e escravidão de crianças, inferno sobre o qual até os jacarés tomaram conhecimento. 

O tráfico humano perpassa toda a Amazônia. Já foram identificadas 76 rotas de tráfico de mulheres, adolescentes e crianças, pela Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins Sexuais, coordenada pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Exploração Sexual, do Congresso Nacional. Naquela edição da Trópico Úmido, João do Bailique pinçou alguns casos.

Madrugada de 16 de setembro de 2004, marina da Ponta Negra, Manaus, capital do estado do Amazonas e maior cidade da Amazônia. Empresários de Brasília e de São Paulo aguardam, à bordo do iate Amazonian, de 25 metros de comprimento, 15 políticos e um carregamento para zarpar rio Negro acima, aparentemente para uma pescaria em Barcelos, a 450 quilômetros de Manaus, em passeio organizado pelo dentista paulista Flávio Talmelli. Era o terceiro ano que o grupo de políticos e empresários candango-paulistas se reunia. Finalmente o carregamento chega. São peixes servidos antes mesmo da pescaria: 17 meninas, a maioria delas menor, aliciadas em casas noturnas de Manaus. O programa de dois dias e duas noites renderia 400 reais a cada uma, fora gorjetas. As garotas foram conduzidas ao iate pela cafetina Dilcilane de Albuquerque Amorim, conhecida como Dil, então com 33 anos, e que ganharia 100 reais por garota. Domingo 19. As meninas se dividiram em dois grupos para o retorno a Manaus. O Amazonian, com os políticos e empresários, seguiu rio Negro acima, com destino a um hotel na selva. Doze meninas retornaram a Manaus. No fim do dia, as cinco meninas restantes retornaram também, no barco Princesa Laura, que naufragou naquele mesmo domingo, entre Manaus e Barcelos, com 100 passageiros. Morreram 13 pessoas, entre as quais as cinco garotas que participaram da orgia: Amanda Ferreira Silva, 20 anos; Marlene Cristina dos Santos Reis, 19; Suzie Nogueira Araújo, 18; Taiane Barros, 17; Hingridy Florêncio Viana, 16. Dois dias antes do acidente, alguns pais queixaram-se à polícia sobre o desaparecimento de suas filhas. Agentes da Delegacia Especializada de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente de Manaus (Deapca) descobriram que as meninas mortas haviam participado de uma bacanal e eram as mesmas que estavam sendo procuradas pelos pais. Depois, localizaram algumas meninas que retornaram do Amazonian a Manaus e descobriram que três homens que estavam no Amazonian deixaram a embarcação em Barcelos e, dia 23 de setembro, retornaram a Manaus, em avião da Apuí Táxi Aéreo. Foi aí que identificaram o então presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal, deputado distrital Benício Tavares da Cunha Melo, do PMDB; Sérgio Randal Mendes, cunhado de Benício Tavares e chefe de gabinete da presidência da Câmara Legislativa do DF; e o advogado brasiliense Marco Antônio Attié. Uma das menores ouvidas pela polícia disse que Benício Tavares manteve relações sexuais com pelo menos duas menores, uma das quais Taiane Barros, 17 anos, mãe de um bebê de sete meses, e que morreu afogada no Princesa Laura. Outra garota afirmou, em depoimento à polícia, que manteve relações sexuais com Benício, que teria pago 500 reais a ela. Uma menor disse que Benício lhe ofereceu 500 reais para manterem relações sexuais, mas ela recusou. Seis das moças que estiveram a bordo do Amazonian garantem que Benício chegou a pagar valores entre 200 e 1 mil reais para manterem relações sexuais com ele, inclusive com as menores de idade. Das 17 meninas contratadas para a bacanal, seis afirmaram, em depoimento à delegada Maria das Graças Silva, titular da Delegacia Especializada de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente, que Benício Tavares esteve no iate nos dias 17, 18 e 19 de setembro, e que manteve relações sexuais com várias garotas, entre as quais pelo menos duas menores. A delegada garante que coletou elementos suficientes para provar a participação de Benício Tavares em turismo sexual. Maria das Graças Silva mostrou, dia 27 de setembro, fotografias de Benício Tavares a três meninas que participaram da orgia. Elas identificaram imediatamente o parlamentar, que é paraplégico. Três meninas ouvidas pela polícia garantem que no iate Amazonian havia bebida alcoólica e drogas, e que foram realizados desfiles de garotas nuas e sorteio de brindes aos participantes. Em depoimento à polícia, a cafetina Dil declarou que a bacanal foi contratada pelo dentista paulista Flávio Talmelli. “Ele disse que o passeio seria muito divertido e que todas as despesas, desde hospedagem à alimentação, seriam pagas por seus amigos. Somente convidei algumas amigas” – defendeu-se Dil. As garotas disseram à polícia que foram enganadas por Dil. O combinado é que receberiam 400 reais mais gorjetas, mas, a bordo, receberam somente 200 reais. Em nota oficial, divulgada no dia 27 de setembro de 2004, Benício Tavares confirmou a viagem a Manaus, de 16 a 22 de setembro, para pescar no rio Negro, hobby até então insuspeito. Confirmou também o voo Barcelos-Manaus. Negou relacionamentos sexuais com garotas menores de idade. Para fazer a viagem turística, Benício se licenciou da Câmara, da qual era presidente, por 10 dias, embora a casa estivesse votando uma pilha de matérias e sua presença fosse importante. Foi confirmada também a presença, no iate, do chefe de gabinete da presidência da Câmara, Randal Mendes, o cunhado de Benício Tavares, e do advogado brasiliense Marco Antônio Attié. Em 2004, em Brasília, o plenário da Câmara Legislativa do DF fechou os olhos e arquivou processo contra o então deputado Benício Tavares, que respondia na Justiça por turismo sexual no estado do Amazonas. Benício foi liberado por 14 votos favoráveis e 10 abstenções. Em 2007, o então governador de Brasília, José Roberto Arruda, deu a Benício Tavares a Administração Regional de Ceilândia, o maior colégio eleitoral da cidade-estado. O povo se revoltou, pois, além da acusação de corruptor de menor, Benício Tavares era acusado de desvio de dinheiro. Arruda teve de tirá-lo do cargo. Em 2009, o Conselho Especial do Tribunal de Justiça do DF (TJDF) instaurou processo penal contra Benício, em ação movida pelo Ministério Público, e o absolveu. Benício Tavares foi reeleito deputado distrital.  Em 2010, o governador José Roberto Arruda foi preso, acusado de comandar esquema de corrupção que flagrou até corrupto recebendo e escondendo pilhas de dinheiro na cueca. Em novembro de 2011, Benício Tavares perdeu o mandato de distrital no exercício da sexta legislatura, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que considerou, por unanimidade, que o deputado coagiu eleitores e praticou abuso de poder econômico.

Janeiro de 2005, Jornal Nacional, TV Globo. Uma série de reportagens, intitulada Povos das Águas, focaliza o trânsito de balsas em Breves, na ilha do Marajó, Pará. Nessas balsas, na cabine de carros, crianças marajoaras eram estupradas durante o cruzamento do rio. De um modo geral, os municípios marajoaras são miseráveis, apesar da natureza pujante da maior ilha flúvio-marítima do mundo. O Marajó é do tamanho da Suíça. A ilha é banhada pelos rios Amazonas, Pará e Tocantins, e pelo Oceano Atlântico.

2006, Altamira, Pará. Adolescentes caem nas garras de uma quadrilha de exploração sexual, a denunciam e são ameaçadas de morte se dessem com a língua nos dentes perante a Justiça. A polícia paraense, despreparada, não pôde dar segurança às vítimas e só conseguiu provas contra três dos 15 acusados. A ação da quadrilha envolvia políticos e empresários. “É uma rede complexa de exploração sexual, com várias vítimas e vários adultos envolvidos; é preciso que haja vontade política para que se chegue aos outros envolvidos” – disse, à época, Ana Lins, advogada da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH). Em março daquele ano, a polícia de Altamira localizou várias adolescentes, algumas dadas como desaparecidas por suas famílias, em uma chácara, onde eram embebedadas e servidas em banquetes sexuais fotografados. As fotos eram divulgadas na internet. As orgias ocorriam também em motéis da cidade e em imóveis de um dos acusados, além de chácaras e balneários no município, onde as bacanais duravam dias. Ameaçadas de morte, vítimas e suas famílias, e testemunhas, desdisseram nos depoimentos à Justiça as declarações prestadas no inquérito policial. Uma das vítimas contou que foi ameaçada na porta da escola onde estudava, e sua família recebeu bilhetes com ameaças de morte. A jornalista Iolanda Lopes, que denunciou a quadrilha em várias reportagens, disse que recebeu três telefonemas ameaçadores. As adolescentes foram, ainda, humilhadas na Câmara de Vereadores de Altamira, onde tiveram seus nomes divulgados durante sessão plenária. “A vergonha, a humilhação, o sentimento de desesperança e a depressão são alguns sintomas encontrados em várias das vítimas desse tipo de crime” – comentou a advogada Ana Lins. “A revitimização é o calvário de ter que reviver os momentos do crime ao ter que relatá-los várias vezes. Esse calvário vai desde não ser atendida dignamente na delegacia, às vezes esperando horas e horas, até conseguir registrar a ocorrência policial, a realização de exames periciais sem a devida humanização do servidor responsável, e ver os algozes soltos livremente e voltando a delinquir em alguns casos.”

Novembro de 2007, Abaetetuba, no quintal de Belém. Delegados da Polícia Civil do Pará, com a conivência de gente do Judiciário, atiraram uma menina a dezenas de criminosos na cadeia da cidade. Essa criança foi currada dia após dia, durante um mês. Assassinos, estupradores, espancadores de mulheres e crianças, ladrões, arrombadores, batedores de bolsa de velhinhas, psicopatas, drogados, caíram em cima da garotinha como hienas, e os policiais, ali perto, ouvindo e vendo tudo. Os berros de terror eram ouvidos pelos delegados e pelos moradores da cidade, já que a delegacia era um prédio velho praticamente aberto para a rua, e ninguém moveu uma palha pela menina. “Minha filha tinha cabelos lindos e encaracolados que iam até o meio das costas” – disse a mãe. “Cortaram o cabelo dela com um terçado para disfarçar que se tratava de uma menina. Cortaram é modo de dizer, escalpelaram a minha filha.” O tempo todo, L ficou com as roupas que usava ao ser presa, uma saia curta e blusinha, cobrindo seios adolescentes. Ela media 1,40 m. “Aqui, no Pará, colocar homem e mulher na mesma cela é mais comum do que se imagina” – disse, na época, frei Flávio Giovenale, bispo de Abaetetuba. Há registro de caso de atirarem uma mulher a 70 presos. “Era um show isso daqui. Todo mundo sabia que a menina estava lá no meio daqueles homens todos, mas ninguém falava nada” – disse uma mulher na delegacia a jornalistas. “Antes de comer, os presos se serviam dela” – afirmou outra mulher, explicando que a menina só comia se não dificultasse a curra. “Ela gritava e pedia comida para quem passava, chamava a atenção para si, e, como ela era conhecida por aqui, não dava para ignorar” – afirmou outra mulher, explicando que era possível ver e ouvir da rua muito do que se passava na delegacia. Seis delegados estiveram na delegacia durante o suplício da garota. A delegada plantonista responsável pelo flagrante foi Flávia Verônica Monteiro e o delegado titular de Polícia de Abaetetuba, Celso Viana. “Embora ela estivesse misturada com os homens, o setor onde ela estava é aberto e permite uma ampla visão de qualquer policial” – declarou o delegado Celso Viana. Flávia Verônica Pereira e três policiais tinham conhecimento dos estupros. Nada fizeram. E policiais ameaçaram a menina de morte se não participasse de fraude em cartório para lhe alterar a idade na certidão de nascimento. O delegado Celso Viana alegou em depoimento que a adolescente disse ser maior de idade e afirmou que a responsabilidade da prisão da menor seria do sistema penal, e a delegada Flávia Verônica Monteiro afirmou que foi enganada ao ver o documento falso da jovem, indicando que ela tinha 20 anos. Flávia disse ainda que não transferiu a adolescente da delegacia para outra instituição porque esse procedimento só poderia ser feito com ordem judicial. Em 27 de novembro de 2007, durante audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, o então delegado-geral do estado do Pará, Raimundo Benassuly Maués Júnior, insinuou que a jovem é que foi responsável pelo episódio e que devia ter “alguma debilidade mental” por não ter dito que era menor de idade. “Não sou médico legista nem tenho formação na área, mas essa moça tem certamente algum problema, alguma debilidade mental. Ela, em nenhum momento, declarou sua menoridade penal” – afirmou o gênio. No dia 3 de outubro de 2013, João do Bailique leu na mídia que a juíza Clarice Maria de Andrade Rocha, que atuava em Abaetetuba quando a adolescente esteve presa, fora promovida, em 2 de outubro daquele ano, pelo Tribunal de Justiça do Pará, a titular da Vara de Crimes contra Crianças e Adolescentes de Belém. Segundo portaria da desembargadora Luzia Nadja Guimarães Nascimento, o critério para a promoção de Clarice foi por merecimento. Clarice foi considerada omissa pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) durante o período em que a jovem paraense foi supliciada, e recebeu a punição de aposentadoria compulsória, em 2010. Mas a Associação dos Magistrados do Pará (Amepa) recorreu da decisão e a aposentadoria foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que entendeu que a punição foi exagerada, já que a magistrada não teria como saber da situação da carceragem da delegacia de Abaetetuba. Quando o caso estourou na mídia, em novembro de 2007, a então governadora do Pará, Ana Júlia Carepa, do Partido dos Trabalhadores (PT), tratou-o com habitual alienação, e tudo mergulhou no esquecimento.

O rio Jari divide o Amapá do Pará desde a Serra do Tumucumaque, na fronteira com o Suriname, até desaguar no rio Amazonas, no sul do Amapá. O Beiradão, no município amapaense de Laranjal do Jari, é apenas uma das zonas nas quais a escravidão sexual infantil é crime banalizado e recorrente. O comércio de crianças amapaenses e paraenses é também intenso na Guiana Francesa, principalmente em cidades como Kourou, onde fica a base francesa de lançamento de satélites, e também no balneário de Montjoly e em Saint Laurent. Moças amapaenses e paraenses são bastante apreciadas em bacanais, corrompidas por promessas de casamento com franceses ou a fantasia de ir para a Europa e faturar até 100 euros por programa, escapando, assim, da miséria. Dos 200 mil habitantes da Guiana Francesa, 50 mil são brasileiros ilegais, amapaenses em sua maioria, que fogem do Amapá, estado assolado pela miséria social, roubalheira de colarinho branco, nepotismo, corrupção endêmica e imigração insuportável, inclusive de gente importante, como o maranhense José Sarney.

Macapá é uma fotografia dessa tragédia; sem rede de esgoto, cheia de ruas esburacadas, com fornecimento precário de energia elétrica e água encanada, apesar de se situar na margem do maior rio do mundo, torna-se, a cada dia, mais inchada e violenta.

Próximo de Caiena, localiza-se a cidade amapaense de Oiapoque, uma das portas de entrada para a prostituição internacional na Amazônia. Antes de as crianças, adolescentes e mulheres adultas seguirem para as três Guianas, passam, geralmente, por um estágio em Oiapoque. Boates locais são o internato que prepara meninas e meninos para o horror. Guianenses que atravessam o rio Oiapoque atraídos por sexo são recebidos na cidade de braços abertos – inúmeros bares nos quais o lenocínio prospera 24 horas por dia. No Amapá, cidades como Laranjal do Jari, Tartarugalzinho, Calçoene e Santana, são, como Oiapoque, vitrines de uma tragédia.

O holandês Kunathi, um dos maiores traficantes de pessoas, em atividade na Amazônia, já foi preso em flagrante no Pará, mas a Justiça o soltou para responder ao processo em liberdade. Não deu outra, Kunathi fugiu para o Suriname, onde é dono de boate na qual só trabalham brasileiras, muitas delas do Pará e do Amapá.

Danielle contou a João do Bailique o que lhe acontecera em Sucuriju.

– Acho que sei quem está por trás disso, e tu também sabes quem é, pois quando ele vem a Macapá se hospeda no Caranã: o nome dele é Jules Adolphe Lunier, da Cunani Exportações, um francês que passa bastante tempo na Vila Progresso, em Bailique; tem um iate grande, e costuma costear o Amapá e as Guianas, e tem também uma lancha, que, às vezes, enche de mulheres. Gosta também de pescar marlin azul na altura de Sucuriju e da ilha de Maracá. O delegado Malafaia, da Polícia Federal, me informou que ele vem sendo monitorado, e já se encontrou com Kunathi, em Paramaribo. É impressionante como as coisas acontecem. Te acomodas bem para não caíres! Descobri, hoje de manhã, cedo, que foi Jules Adolphe Lunier que emprenhou a Patrícia – disse João do Bailique, pondo de volta no mostruário o uirapuru. Era uma das joias da coleção. “Quando ele canta, toda a floresta se cala para ouvi-lo. Por isso, os cabocos acreditam que levar consigo um uirapuru empalhado é garantia de fortuna financeira e amorosa, razão pela qual o uirapuru é caçado sem trégua” – pensou. Era capaz de sopesar um uirapuru mentalmente. Sabia tudo sobre aquele pássaro, e os amava por isso também. O uirapuru-verdadeiro (Cyphorhinus aradus) mede cerca de 12,5 centímetros de comprimento e pesa entre 18 e 24 gramas. Apresenta a garganta e a região superior do peito castanhas, o ventre e os flancos cinza pálido, e o dorso é marrom. A cauda é curta e as patas, grandes. Nativo da América do Sul, vive em quase toda a Amazônia brasileira – exceto no alto rio Negro e na região oriental do Rio Tapajós –, nas Guianas, Venezuela, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Para João do Bailique, o canto do uirapuru era, de longe, o mais melodioso de todos os pássaros canoros. Costumam cantar ao amanhecer, enquanto constroem o ninho, para atrair a fêmea, durante apenas 15 ou 20 dias do ano, entre meados de setembro a outubro. Bailique se lembrou da letra do Uirapuru, do maestro Waldemar Henrique: “Certa vez de montaria/Eu descia um paraná/O caboclo que remava/Não parava de falar, ah, ah/Não parava de falar, ah, ah/Que caboclo falador!/Me contou do lobisomem/Da mãe-d'água, do tajá/Disse do juratahy/Que se ri pro luar, ah, ah/Que se ri pro luar, ah, ah/Que caboclo falador!/Que mangava de visagem/Que matou surucucu/E jurou com pavulagem/Que pegou uirapuru, ah, ah/Que caboclo tentador/Caboclinho, meu amor/Arranja um pra mim/Ando roxo pra pegar/Unzinho assim.../O diabo foi-se embora/Não quis me dar/Vou juntar meu dinheirinho/Pra poder comprar/Mas no dia que eu comprar/O caboclo vai sofrer/Eu vou desassossegar/O seu bem querer, ah, ah/Ora deixa ele pra lá...” Também Heitor Villa-Lobos imortalizou o uirapuru em poema sinfônico homônimo, utilizando solos de violino, flauta, oboé e clarinete.

– O que? Como tu descobriste isso? – Danielle perguntou, estupefata.

– Ela finalmente contou para o Maurício e ele me contou.

– Meu Deus! Ela vai parir este mês e o filho dela vai ser também nosso afilhado! Nunca quis dizer quem era o pai e agora descubro que o dito cujo mandou me apagar. Só pode ter sido ele; quem mais teria interesse em me apagar? – ela disse.

– Sim! Ele é o principal atravessador de grude, embora não apareça – disse João do Bailique.

Patrícia, que nascera na Vila Progresso e ia sempre que podia lá, estava com 17 anos quando engravidou. De rosto absolutamente simétrico, olhos imensos, gateados, lábios de rosa vermelha, colombiana, pele de jambo novo, 60 quilos de peso distribuídos em 1,70 metro de altura, seios fartos, quadris enlouquecedores, pernas longas e bem torneadas, riso de cristais, e no primeiro ano do nível médio no Colégio Amapaense, enlouquecia professores e colegas. Praticamente morava no Hotel Caranã, pois era tratada como uma filha por Danielle.

– Era para tu teres me avisado do perigo que corrias!

– Tu sabes que todo último sábado do mês eu preciso ir lá; mesmo com o festival eu precisava ir lá, pois o sujeito que tentou me matar vinha ameaçando todo mundo na cooperativa, e havia prometido que iria lá, ontem, para receber uma resposta, a de que todo o grude conseguido pelos pescadores da vila teria de ser vendido para ele, e pelo preço que ele determinasse. Eu confesso que não imaginei que ia acontecer o que aconteceu. Pensei que não seria difícil pôr tudo em pratos limpos. E depois tu estás assoberbado de trabalho, fechando a edição especial da Trópico Úmido.

Ele a olhou, sério.

Danielle casara-se com João do Bailique no verão anterior, mas moravam separadamente, embora houvesse se tornado companheiros desde a faculdade de Oceanografia. Queriam um filho, mas ambos concordavam que Bailique estava com idade avançada demais para gerar filho, o que, em si, não seria problema; o problema era que Danielle sabia que, segundo a Medicina Tradicional Chinesa, gerar filhos com idade avançada era garantia de falta de energia e problemas renais para a criança. Assim, esperavam adotar, embora como afilhado, o bebê de Patrícia, que seria menina.

– Agora que sabemos que Jules Adolphe Lunier é o pai, e que ele estuprou a Patrícia, que é menor de idade, podemos pegá-lo – disse Bailique. – Mas teremos que pegá-lo, ou seja, a Polícia Federal, pelo tráfico de grude. O delegado Malafaia descobriu que ele tem um navio que leva grude clandestino para a China, especialmente para Hong Kong, e isso tu poderás confirmar com teus contatos em Hong Kong. Quanto a Patrícia, seis meses depois de ter a menina, passará uma temporada em Paris, que é o que ela quer, e poderá inclusive fazer curso de modelo e de arte cênica. Ela já está bem adiantada no francês e no inglês, e tem facilidade para decorar textos. O mais importante de tudo é que ela já conseguiu superar o trauma do sequestro. O tratamento a que a submeteste foi realmente maravilhoso.

Abraçaram-se.

Naquela já distante manhã, na Vila Progresso, Patrícia Valente Melo, 11 anos e seis meses, se levantou da rede e foi ao banheiro, olhou-se ao espelho e apreciou seu rosto, simétrico, olhos imensos, gateados, lábios de rosa vermelha, pele de jambo novo. Era extraordinariamente bonita, e sensual, embora tivesse apenas 11 anos de idade. Tudo aconteceu muito rápido. Um homem peludo entrou na casa, colocou algo no seu nariz e ela acordou num barco, que, soube mais tarde, se chamava Virgem de Nazaré; levava crianças para a boate Senzala, especializada em servir europeus que atravessavam o rio Oiapoque, oriundos de Caiena. O carregamento, meninas sequestradas no Amapá e Pará, seria leiloado com lance inicial de mil euros para usufruto de uma semana, após o que seriam transportadas para Paramaribo.

– Aquele francês louco, mas que paga muito bem, o tal de Humbert Humbert, já reservou a Patrícia. Ele vem exigindo uma menina assim igual a ela faz tempo. Ele vai pagar nada menos do que 6 mil euros para passar uma semana com ela na propriedade dele na Guiana Francesa, aí então a devolverá para o Caixinha de Pose, que é o dono da boate Senzala, em Oiapoque. Aí a pegarei de volta e a levarei para o Kunathi, por mais mil euros – contabilizou Jules Adolphe Lunier a Tota, capitão do barco.

A manhã imobilizou-se, tensa como tumor maduro. Um raio chicoteou o céu quase noturno, seguido de trovoada. A tempestade desabou com toda a fúria. Cerca de 40 minutos depois passou completamente e o mar voltou a ficar calmo. Giselle e João do Bailique estavam pescando marlim azul na altura do Cabo Caciporé quando avistaram o ponto flutuando. Aproximaram-se e viram uma menina com salva-vidas, agarrada a um grande banco de madeira. Era Patrícia.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

JAMBU, de Ray Cunha, será autografado dia 2 de março no Belém Belém Amazônia, no Rio

JAMBU (Clube de Autores, 190 páginas, 50 reais) é um thriller policial ambientado na Amazônia real. Durante o Festival Gastronômico do Pará e Amapá, o jornalista João do Bailique trabalha em uma edição especial da revista Trópico Úmido sobre a Questão Amazônica e investiga o tráfico de crianças para escravidão sexual e grude de gurijuba. No romance, personagens de ficção se cruzam com pessoas reais, vivas ou mortas, como a cantora lírica Carmen Monarcha, os compositores Heitor Villa Lobos e Waldemar Henrique, o pintor Olivar Cunha e o poeta Isnard Brandão Lima Filho.

Ray Cunha estará autografando JAMBU, sábado, 2 de março, no templo da culinária paraense no Rio de Janeiro, o restaurante Belém Belém Amazônia, em um dos endereços mais incensados da Cidade Maravilhosa, na Avenida Rainha Elizabeth da Bélgica 122, Loja A. Essa via liga as avenidas Atlântica, no Posto 6 de Copacabana, à Vieira Souto, em Ipanema.

Abaixo, na foto 1, capa da edição que será autografada, mostrando uma cuia de tacacá; na foto 2, capa da edição atual, exibindo a Fortaleza de São José de Macapá, ambas do Clube de Autores. Você pode adquirir JAMBU também na amazon.com.br e na Uiclap.
 

O que acontece na ilha de Marajó é de arrepiar os cabelos. É de deixar os pedófilos malucos

Compre o romance-reportagem O CLUBE DOS ONIPOTENTES no
Clube de Autores ou na amazon.com.br: um perfil do Brasil real
 
RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 24 DE FEVEREIRO DE 2024 – Há décadas que Dom José Luís Azcona Hermoso, bispo emérito prelado de Marajó, no estado do Pará, denuncia a exploração sexual de crianças no arquipélago. Desde 12 de abril de 1987, vive em Soure, na ilha de Marajó, e vem denunciando a situação miserável da população do arquipélago, a devastação ambiental, a pesca predatória e a exploração de crianças na prostituição e escravidão sexual, e tráfico de crianças e mulheres para a Guiana Francesa e a Europa. 

A senadora Damares Alves (Republicanos/DF) também já denunciou o crime horrendo que se passa no Marajó, e que é do conhecimento de todos, até dos jacarés. Durante seu exercício como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, de 2019 a 2022, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, Damares Alves, que é advogada e pastora evangélica, pôs a boca no trombone. O resultado é que líderes e artistas da esquerda mugiram que Damares estava mentindo; fake news, como se diz. 

A artista de televisão Xuxa Meneghel queria a cassação de Damares e o Ministério Público Federal cobrou dela uma indenização de 5 milhões de reais por fake News. Mas os ecos do coração das trevas no Marajó é tão indecente que é como água represada que se avoluma e transborda. 

Agora, o assunto volta, como pedrada na cara dos coronéis paraenses. A cantora gospel Aymeê Rocha divulgou uma canção-denúncia, Evangelho de Fariseus, que mexe no inferno da Ilha de Marajó: abuso sexual e tráfico de órgãos. “Marajó é uma ilha a alguns minutos de Belém, minha terra. E lá tem muito tráfico de órgãos. Lá é normal isso. Tem pedofilia em nível hard. As crianças de 5 anos, quando veem um barco vindo de fora com turistas... Marajó é muito turístico e as famílias lá são muito carentes. As criancinhas de 6 e 7 anos saem numa canoa e se prostituem no barco por 5 reais”. 

No meu livro-reportagem O CLUBE DOS ONIPOTENTES, que traça um perfil do Brasil de agora, eu abordo a questão marajoara: “A ilha de Marajó é maior do que a Jamaica, Porto Rico ou Trinidad e Tobago, no Caribe, ou do que a Córsega, na França mediterrânea, ou a ilha de Creta, no mesmo mar europeu-africano, e o arquipélago é rico: suas praias atlânticas são deslumbrantes; seus açaizais, imensos; seu rebanho bubalino é o maior do Brasil; sua cerâmica é exportada para o mundo inteiro, via Icoaraci, ou Vila Sorriso, bairro de Belém; e sua produção de pescados contribui para que o Pará seja um grande produtor de peixes. 

“Mas neste arquipélago ratos d’água atacam casas de ribeirinhos, roubam e estupram as mulheres; curumins morrem devorados por verme, ameba, giárdia, malária, ou são estuprados dentro de carros enquanto balsas cruzam os rios, e no interior de embarcações, silenciadas, no seu sofrimento, por comida; nas balsas que cruzam os rios do arquipélago crianças são empurradas aos mais torpes atos, às vezes a troco de querosene, para acender lamparinas. 

“Quando as embarcações se aproximam, meninas partem em grupo em canoas e remam em direção a balsas, barcos e navios. É lançada uma corda para ajudar as “balseiras”, como são chamadas, a subir às embarcações, onde tentam vender produtos agrícolas. Mas os homens geralmente estão interessados em outra coisa, e as estupram a troco de pacotes de biscoito, leite em pó ou condensado, ou óleo diesel. 

“Em declaração ao jornal Beira Rio, da Universidade Federal do Pará (UFPA), a pesquisadora Monique Loma explicou que as famílias não veem isso como exploração sexual, mas como “uma oportunidade para eles; além de gerar renda, os pais olham para a prática como uma chance de as meninas se casarem com algum marinheiro e terem uma chance melhor na cidade”. 

“E revela: “Quando contamos à família o que está acontecendo, o que essa atitude gera, percebemos que eles não tinham noção sobre a legislação ou sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. Jamais poderiam fazer uma ocorrência, pelo simples fato de aquilo ser o cotidiano deles, não um crime”. 

“E o choque: “Foi uma surpresa ver que, para elas, aquilo era brincadeira. Algumas afirmaram estar procurando o príncipe encantado. A naturalidade com que elas falavam de tudo foi um choque. Como eu poderia falar de violência sexual, de exploração, se elas nunca tinham ouvido esses termos?” 

Se houvesse vontade política, o Marajó sozinho faria do Pará um dos mais ricos estado da União, mas aí os coronéis não ficariam bilionários. O CLUBE DOS ONIPOTENTES: “Ana Sá estava sondando a instalação de uma base de lançamento de foguete no cabo Maguari, município de Soure, ilha de Marajó, Pará, onde possuía um mundo de terras e de búfalos. 

“O cabo Maguari é talvez o melhor ponto do planeta para o lançamento de foguetes. Situado praticamente na Linha Imaginária do Equador, afastado de aglomerações humanas e defronte para o Oceano Atlântico, área de escape por excelência em caso de acidente, localiza-se no maior arquipélago marítimo-fluvial do mundo, o Marajó, formado por cerca de 2.500 ilhas, mas que, na verdade, ninguém sabe quantas são, pois algumas surgem de repente, ou somem. 

“A maior delas, homônima, mede 42 mil quilômetros quadrados, quase do tamanho da Suíça, constituindo-se na maior ilha na costa do Brasil e a maior ilha marítimo-fluvial do planeta. O arquipélago é banhado ao norte e a oeste pelo delta do Amazonas, o maior rio do mundo; ao sul, pelo rio Pará, que é um canal formado pelas águas de inúmeros rios, principalmente o Amazonas e o Tocantins, e que desemboca, a sudeste, na baía de Marajó; e, a leste, o arquipélago é banhado pelo Oceano Atlântico. A cidade de Soure fica a 80 quilômetros de Belém, a capital do Pará, o estado mais emblemático da Amazônia, pois encerra nele amostras de todo o Trópico Úmido. 

“Ana pretendia fabricar foguetes, satélites e componentes no Distrito Industrial de Barcarena, com energia hidroelétrica da usina de Tucuruí, transportá-los de balsa do Porto de Vila do Conde, o maior do Pará, para Soure, e lançá-los do cabo Maguari. A primeira série de foguetes já tinha até nome: Jacuraru. 

“O topônimo do município de Soure tem origem na vila homônima no distrito de Coimbra, em Portugal, a qual os romanos chamavam de Saurium, “lagarto”. Os marajoaras apreciam, na panela, jacuraru, uma espécie de camaleão comum nas ilhas. Agora, começariam a enviar jacuraru para o espaço. 

“Como a Linha do Equador é o local de rotação mais veloz da Terra, o Jacuraru teria tudo para ampliar a fortuna dos Sá Dourado, assim como o PIB francês é ampliado por três foguetes lançados na base espacial em Kourou, no meio da selva, no Departamento Ultramarino francês, a Guiana Francesa: Ariane, Soyuz e Vega. O maior deles, o Ariane 5, foi criado em 1996, levando para o espaço alguns dos maiores satélites de telecomunicações e meteorologia do planeta. 

“O projeto do Ariane 6, foguete de 62 metros de altura, desenvolvido para lançar espaçonaves ainda maiores do que as transportadas pelo Ariane 5, tem orçamento de 2,4 bilhões de euros, dinheiro dos países da Agência Espacial Europeia (ESA); mais barato e eficiente do que o Ariane 5. Cada lançamento do Ariane custa em torno de 100 milhões de dólares. 

“Mas uma nova geração de foguetes reduziu os custos. A SpaceX, Space Exploration Technologies, do bilionário Elon Musk, pode fazer a mesma coisa que o Ariane 5 dezenas de milhões de dólares mais barato. Os dois primeiros foguetes da empresa são os Falcon 1 e Falcon 9, homenagem à Millennium Falcon, de Star Wars, e sua primeira nave espacial é a Dragon, em homenagem ao filme Puff the Magic Dragon, tudo isso concretizado em apenas sete anos”. 

O maior romancista da Amazônia, Dalcídio Jurandir, é de Marajó, de Ponta de Pedras. Do tamanho de Machado de Assis e de João Guimarães Rosa, Dalcídio só é um ilustre desconhecido porque, na Amazônia, o sucesso leva a banimento. Eu morava em Manaus quando Márcio Souza começou a fazer sucesso com Galvez, o Imperador do Acre. Aí, correu nos meios literário que os originais de Galvez, apócrifos, chegaram às mãos de Márcio por acaso, e ele os teria publicado como autor. Fake. Ou boato invejoso. 

Dalcídio aparece também em O CLUBE DOS ONIPOTENTES: “Alex olhava para a fauna que desfilava à sua frente quando foi apresentado a Bob Herman, assessor de William Popp. Acabaram engatando uma conversa em inglês. Formado em Literatura Americana e especializado em Literatura Ibero-Americana, Herman era surpreendente. Lembrava um Baby Herman negro, nascido na Louisiana. E Alex era leitor voraz; tomou gosto por literatura com seu avô, Dorinato Kubitschek Dourado, que tinha na figura de João Guimarães Rosa o escritor máximo brasileiro. 

“Com efeito, Guimarães Rosa criou uma das personagens femininas de ficção mais extraordinárias de toda a literatura brasileira, e mundial: Reinaldo, ou Diadorim, ou Maria Deodorina da Fé Bittencourt Marins, mulher travestida de homem, capaz de fazer quase qualquer coisa que um homem faz. Quando a TV Globo transpôs Grande Sertão: Veredas para a telinha, quem encarnou Diadorim foi Bruna Lombardi, uma das mais belas atrizes brasileiras, entre tantas e tantas beldades. Porém, quando se tratava de mulher, Alex estava mais para Capitu do que para mulheres ambíguas. 

“– Gosto muito de Machado de Assis – disse Bob, puxando papo exatamente para um terreno familiar a Alex. 

“– Trata-se do escritor mais emblemático do Brasil, por ser muito conhecido e mulato. Na escola, tanto no ensino fundamental como no médio, os professores costumam apresentar uma foto dele feita talvez com o propósito de disfarçá-lo, de maquiá-lo como branco, uma tentativa de esconder que a mestiçagem é base da etnia brasileira; somos um caldeirão étnico misturando três elementos: o europeu, o ameríndio e o africano. O resultado é o povo mais maravilhoso que há na face da Terra, um povo que não discrimina a cor da pele nem religiões – disse Alex. 

“Bob ouvia atentamente. Pensou um pouco. 

“– Machado de Assis é o meu escritor brasileiro favorito – disse Bob. 

“– Machado é o escritor que melhor representa o Brasil, que, por sua vez, tem uma importância fundamental no concerto das nações. O Brasil é fundamental para o resto do mundo porque o nosso potencial em produzir alimentos, o nosso continente tropical, o nosso sincretismo, nos fazem o coração do mundo, a pátria do Evangelho, a potencial pátria de uma nova humanidade. Machado é emblemático porque nasceu no morro; era pobre, é claro. Estudou em escolas públicas, jamais frequentou universidade e foi funcionário público a vida toda. Mas, mesmo assim, fundou a Academia Brasileira de Letras. Os brasileiros gostam de academias. Acho que em cada uma das 5.570 cidades brasileiras há uma academia de letras; e seus membros se sentem tão importantes quanto Machado. Não sei o que os portugueses, que são os criadores do Brasil, acham de Machado; talvez achem que é mais um negro tentando dizer alguma coisa da senzala. Só não é conhecido mundialmente porque era brasileiro e escrevia em português. Se tivesse nascido, hoje, estaria ferrado. Brasileiro, e não sei se sempre foi assim, fazer sucesso é uma ofensa pessoal. Não sei de onde vem essa inveja, mas é assim. Jorge Amado só fez sucesso porque foi ajudado pelo Partido Comunista, que é uma espécie de igreja: de um lado, os cardeais; do outro lado, a miudeza dos corruptos e a multidão de ingênuos. Amado era cardeal. Creio que o ponto mais alto de Machado é Dom Casmurro, romance que tem como sinopse o ciúme. Ou fofoca? Ciúme é um elemento muito forte na cultura brasileira. O que é ciúme? É possessividade, uma pessoa dona do outro; e é assim que é, todo mundo é dono do outro, aqui no Brasil. Contudo, Machado cria, em Dom Casmurro, senão a personagem feminina mais sensual de toda a literatura brasileira, o que eu identifico como a mulher carioca. O fato é que Capitu é uma personagem deliciosa, o embrião da carioca moderna, que mora ou frequenta Copacabana, Ipanema e o Baixo Leblon, é malemolente e tem olhos de ressaca do mar. Para muitos, Capitu simplesmente metia chifre no marido, com o melhor amigo dele, ou amigo da onça, como se dizia nos anos sessenta do século passado. Para outros tantos, Capitu era apenas objeto de fofoca, e seu marido, Bentinho, paranoico. A questão é que o brasileiro, como de resto o machão ibero-americano, se pela de medo de imaginar sua santa esposa sendo trabalhada por terceiros. Mas fale-me de Faulkner, o grande escritor americano – Alex pediu. 

“– William Faulkner usava a técnica do fluxo de consciência, também utilizada por James Joyce, Marcel Proust, Thomas Mann, Virginia Woolf. Foi ele que narrou, como nenhum outro escritor, a decadência do sul dos Estados Unidos, criando inclusive um condado imaginário, Yoknapatawpha. Ele também criava múltiplos pontos de vista simultaneamente e utilizava mudanças bruscas de tempo narrativo. Foi genial, genial! Hoje, meu país é muito diferente do país de Faulkner, que nasceu trinta anos após o Sul ter sido derrotado pelo Norte. O Sul, então, vivia sob a supremacia dos brancos de origem inglesa, protestantes, puritanos e coloniais. Antes de se tornar um dos maiores escritores de todos os tempos, foi um faz-tudo. Como era baixinho, media 1,65 metro, foi recusado pelo serviço militar americano, e, assim, se alistou na Força Aérea canadense. Depois, passou um ano na Universidade do Mississippi, em Oxford, onde estudou inglês, francês e espanhol. De lá, foi trabalhar em uma livraria em Nova York, onde, em vez de vender livros, os lia. Foi demitido e voltou para Oxford, onde trabalhou como carpinteiro, pintor de parede e agente dos Correios. Seu primeiro livro foi de poemas, The Marble Faun, publicado em 1924. No ano seguinte, foi para Nova Orleans, onde conheceu e foi influenciado por Sherwood Anderson, escreveu artigos para jornais e revistas e publicou seu primeiro romance, Paga de Soldado, em 1926. Deixou Nova Orleans em 1929 e se estabeleceu em Oxford, onde se casou com Estela Oldham e publicou Sartoris, o primeiro romance passado em Yoknapatawpha. Aí, vieram alguns livros que granjeariam respeito da crítica, mas só começou mesmo a vender bem com Santuário, de 1931; porém, quando estava precisando muito de dinheiro conseguia grana em Hollywood, como roteirista. Acho que ele chegou ao seu maior apuro com O Som e a Fúria, de 1929, a história dos Compson, decadente família do Mississippi. Faulkner disse que esse romance surgiu a partir da imagem de uma garotinha, Candance, Caddy, com a calcinha suja de lama, trepada numa árvore, descrevendo para seus irmãos pequenos e para os empregados domésticos negros o funeral da sua avó. A trajetória de Caddy é contada por meio do ponto de vista de seus irmãos, como Benjamin, Ben ou Benjy, que é idiota. “Uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria”, do monólogo de Macbeth, de William Shakespeare, em um fluxo contínuo de passado e presente, com o ar gasto de tanto carregar sons. Quanto à fúria, é a da derrocada. O próprio cansaço. Quando a personagem Dilsey assume a narrativa ela diz que os brancos se cansam facilmente, enquanto ela tinha que fazer todo o trabalho pesado e envelhecia. Mas ela sabia que todos são iguais. Ela diz, abrir aspas: “Os brancos morrem também. A tua avó morreu que nem qualquer negro”. Fechar aspas. Porém o que mais me impressiona na obra de Faulkner é a transcrição para o papel do fluxo de pensamento. Ele faz isso em longos parágrafos, longos períodos, com pontuação irregular. É o tal fluxo de consciência de Proust e Joyce, o que exige, no mínimo, cumplicidade do leitor, além de muita concentração e mais ainda interesse, se não o leitor não irá adiante – disse Bob, ao longo de uma dose dupla de bourbon. 

“– No Brasil, temos um escritor que me lembra Faulkner, um Faulkner amazônida, Dalcídio Jurandir, que, por acaso, e não existe acaso, nasceu em Ponta de Pedras, na ilha de Marajó. Ele é pouco conhecido, porque os paraenses, que é também o povo da ilha de Marajó, não são bons para aplaudir e vender seus próprios escritores, pelo que já observei. No seu livro mais emblemático, Chove Nos Campos de Cachoeira, publicado em 1941, Dalcídio cria personagens de carne, osso e alma. O personagem central do romance, o menino Alfredo, sonha em sair do Marajó e morar em Belém, sonho que ele reparte com um caroço de tucumã, que é um coquinho da Amazônia. Em contraste com Alfredo, seu irmão, Eutanázio, de 40 anos, é destituído de sonhos; não tem sequer um objetivo, nem sentido na própria vida. Vive em um mundo absurdo. Para completar sua miséria, a jovem Irene o despreza. E assim como fazia Faulkner, as personagens de ficção de Dalcídio povoam seus livros como fantasmas, ora em um, ora em outro, em épocas diferentes, às vezes com o mesmo nome. Enquanto Faulkner recria o sul dos Estados Unidos mergulhado em sangue coagulado, espirrado da negrura do preconceito, Dalcídio apresenta uma Amazônia suja de lama, caboclos, ou cabocos, com a alma amortecida por cachaça, da mesma forma que seu doce linguajar silencia no amortecimento da língua pelo espilantol, o princípio ativo do jambu, a emblemática erva do tacacá, que é uma comida de origem indígena. Mas a lama pode surpreender, pois dela pode sair o Saurium. 

“Ficaram em silêncio durante alguns segundos. Bob tomou mais um gole de bourbon. Parecia empolgado com o conhecimento literário de Alex. 

“– Preciso ler esse Dalcídio – disse. 

“– Foram publicados 15 romances dele; creio que conseguirei pelo menos metade, em Belém, onde uma editora, Cejup, deve ter acervo dele em estoque, pois editou a obra de Dalcídio, senão toda, mas quase toda. 

“– Maravilha! 

“– Como nunca entraram no mercado para valer, os livros de Dalcídio são raros, e desconhecidos, é claro. Ele é o tipo de escritor que deveria ser editado e distribuído em edições comentadas, mas, como eu disse, os paraenses não são bons para vender arte. Creio que haja vários trabalhos acadêmicos sobre Dalcídio, mas não chegam às livrarias. Aliás, pouco da produção acadêmica do Brasil, quanto mais da Amazônia, chega ao mercado. Dalcídio está naquele grupo de escritores clássicos, como William Shakespeare, Miguel de Cervantes Saavedra, Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, e todo esse pessoal que escreve em vernáculo, e que deve ser lido em edições comentadas, a menos que o leitor os conheça muito, ou se identifique muito com eles. 

“A conversa acabou bruscamente, pois William Popp chamou Bob. 

“– Vou providenciar para que os livros cheguem às suas mãos – disse Alex, meio gritando, enquanto Bob se afastava, e se preparando para dar o fora também. Ele ia dar o fora porque aquela segunda-feira começara atípica, fazendo-o voltar a pensar em um assunto que surgiu na sua vida devido a uma adolescente georgiana escravizada pela máfia russa.” 

Em entrevista a este repórter, em 2008, o deputado federal Nilson Pinto (PSDB/PA), doutor em geofísica, ex-reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA), afirmou: “A Hidrovia do Marajó é uma obra de infraestrutura fundamental para o estado do Pará, promovendo a ligação mais eficiente entre Belém e Macapá, passando pelo centro da ilha do Marajó e economizando horas de viagem. Essa obra, que é simplíssima, enfrenta percalços por falta de conhecimento, pelo excesso de zelo gerado pelo desconhecimento de algumas autoridades. 

O Ministério Público entende que a obra criaria problemas ambientais e tem procurado impedir de todas as formas que seja realizada, e tem conseguido isso, até agora. Há excesso de zelo de um lado e desconhecimento de causa por outro lado. Tem-se apenas de construir um canal de 32 quilômetros, numa região plana, desabitada, sem, absolutamente, nenhum tipo de problema que possa surgir com a construção do canal. A obra se resume, praticamente, na construção do canal. 

“Para quem acha que isso é algo portentoso e agressivo ao meio ambiente, eu recomendo que faça uma visita, in loco, ou pela internet, ao canal Reno-Danúbio, na Alemanha, concluído há várias décadas e que liga a bacia do rio Reno à bacia do rio Danúbio. O Reno deságua no Mar do Norte. O rio Danúbio deságua no Mar Negro. Assim, os alemães ligaram o Mar do Norte ao Mar Negro. Trata-se de um canal de 171 quilômetros de extensão, com 66 eclusas, com desníveis fantásticos, tudo em plena operação, no coração da Alemanha, avançando por terras que têm toda uma história pretérita, que vem do tempo do Império Romano, passando por preciosidades arqueológicas e pelo coração de um país que tem um amor pela questão ambiental fantástico. A obra foi feita no meio da Alemanha e não gerou absolutamente nenhuma reclamação, no país que mais cuida do meio ambiente no mundo. 

“Para fazer uma obra cinco vezes menor, de impacto ambiental mil vezes menor, na ilha do Marajó, nós temos um problema terrível com o Ministério Público. Eu não acredito que seja por conhecimento de causa, o que mostraria que essa obra não causará praticamente nenhum impacto ambiental. Acredito, sim, que é desconhecimento de quem acha que vai preservar a Amazônia impedindo que as pessoas que nela moram de ter melhores condições de sobrevivência. É um enorme equívoco do Ministério Público, que não tem competência técnica para opinar e está exorbitando da sua função. Deveriam se basear nos trabalhos dos órgãos técnicos competentes nessa área e não emitir pareceres apenas para defender uma posição aparentemente de defesa da Amazônia, do meio ambiente, mas que, na verdade, é uma posição absolutamente retrógrada, que nada tem a ver com desenvolvimento sustentável. 

“O Ministério Público se arvora o direito de defender uma causa que não é de ninguém, mas causa de um ou outro visionário que resolveu fazer de uma questão pequena algo grandioso, não sei com que finalidade. O caso está na Justiça, que tem de se basear naquilo que é correto do ponto de vista do aproveitamento das nossas hidrovias, dos rios, que são as vias naturais que temos para deslocamento na Amazônia; tem que se basear na verdade extraída da competência técnica das instituições amazônicas, para poder dar a decisão. Não podemos ficar com uma visão unilateral emperrando o desenvolvimento da região, a melhoria da qualidade de vida da população. O Ministério Público precisa se reciclar. A minha sugestão é que o pessoal do Ministério Público estude mais. Não basta trabalhar com a visão ideológica. Aliás, o Ministério Público não existe para trabalhar com visão ideológica. Ele tem de trabalhar pelo interesse da sociedade, dentro da visão legal. 

“Há um claro exagero por parte dos ambientalistas. É necessário para qualquer obra importante, em qualquer lugar e, principalmente, na Amazônia, que se tomem os cuidados para se evitar impactos ambientais de porte. Isso é necessário e existe conhecimento técnico em várias instâncias, neste país, para assessorar a realização de uma obra sempre que isso é necessário. O que nós não podemos aceitar é a visão da redoma. Somos frontalmente contra a visão preservacionista que vê apenas a floresta e esquece as pessoas que moram na floresta, uma posição absolutamente atrasada” – argumentou Nilson Pinto. 

Segundo o marajoara ex-senador Mário Couto (PSDB/PA), “o Ministério Público Federal já recebeu mais de 50 quilos de documentos da parte do governo do Pará, mostrando que os impactos ambientais da hidrovia serão mínimos, comparados aos impactos positivos que ela proporcionará; as medidas mitigadoras e ações compensatórias, já detalhadas em farta documentação, superam qualquer dano que a obra possa causar”. 

O projeto da Hidrovia do Marajó é fruto de convênio celebrado entre os governos estadual e federal, com contrapartida de 50%. Segundo relatório da Administração das Hidrovias da Amazônia Oriental (Ahimor), “já foram realizados todos os estudos técnicos e ambientais (EIA/Rima) para a dragagem de 32 quilômetros do canal destinado a perenizar a interligação das bacias dos rios Atuá e Anajás, interligação já existente pela própria natureza, mas durante somente seis meses de cheia”. 

A construção da hidrovia consiste na dragagem de 9 milhões de metros cúbicos de sedimentos entre os rios Atuá e Anajás, a fim de garantir a navegação na época da seca, de comboios com até 2.800 toneladas de capacidade de carga em quatro chatas, de Belém a Macapá, vice-versa. Segundo o projeto, a hidrovia atravessará pelo meio o arquipélago no sentido sudeste-noroeste, levando novas oportunidades de emprego e de renda para a população local e facilitando o escoamento da produção de todo o Marajó. Os 580 quilômetros que hoje separam Belém de Macapá, porque a ilha do Marajó tem de ser contornada, diminuirão para 432 quilômetros pelo meio da ilha. Haverá uma redução de 148 quilômetros entre a capital do Pará e a capital do Amapá.

A proximidade da hidrovia com o porto de Santana, na zona metropolitana de Macapá, possibilitará que produtos paraenses, como, por exemplo, açaí, piramutaba, cerâmica de Icoaraci e minérios cheguem aos Estados Unidos, Europa e Japão com redução de custo. 

“Além disso, a obra vai permitir acesso aos diversos recursos naturais da região marajoara, modernização do seu parque agropecuário e suprimento dos mercados consumidores de Belém e Macapá, viabilizando a criação de bacias leiteiras e estimulando a piscicultura” – observa ainda o relatório da Ahimor, alinhando. A hicrovia desenvolverá o turismo flúvio-ecológico e a integração nacional do Marajó e do Amapá, por meio da Hidrovia Araguaia-Tocantins, outra obra da maior importância para a Amazônia. 

A Secretaria Executiva de Transportes do Pará e a Ahimor cumpriram todas as exigências legais, tais como elaboração de EIA/Rima e realização de audiências públicas. Em setembro de 1998, a Secretaria Executiva de Ciência, Tecnologia e Meio-Ambiente do Pará concedeu a licença ambiental para instalação da obra, que foi renovada anualmente, até 2002. Acontece que, por força da ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, até hoje o projeto da hidrovia não conseguiu sair do papel e a consequência disso é que a população do Marajó sofre os efeitos devastadores de doenças infectocontagiosas, principalmente malária, de erradicação remota diante da dificuldade de ações necessárias para debelar a doença. 

O governo do estado e o Ministério dos Transportes chegaram a tomar todas as providências para o início das obras, inclusive a avaliação das terras localizadas nos municípios de Anajás e Muaná, feita por técnicos do Instituto de Terras do Pará (Iterpa). Procuradores do estado foram ao encontro dos comunitários para fazer o pagamento das indenizações no próprio local. Um convênio para distribuição do material lenhoso também foi celebrado com as prefeituras de Anajás e Muaná. Além disso, um plano de saúde foi elaborado para atender a área de influência da futura hidrovia. O plano envolve a construção de ambulatórios, proteção aos operários que trabalharão na obra e imunização contra doenças endêmicas. O fato é que está tudo pronto para que a obra seja realizada. Só depende do Ministério Público Federal. 

Mas a Hidrovia do Marajó sairá do papel se os parlamentares do Pará e do Amapá no Congresso Nacional e nas assembleias legislativas dos dois estados quiserem. No Congresso Nacional, quando uma bancada se une em torno de um projeto, pode qualquer coisa. Nem Alexandre de Moraes, nem os 11 supremos barram.

Na Amazônia, era Deus no céu e o Exército na Terra. Agora, a coisa está mudando. O crime organizado está cada vez mais organizado, e à vontade.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Para sempre, agora



RAY CUNHA

 

Onde vive Iasmim?

No Planalto Central

Onde jorra leite e mel

Terra da manga, do abacate, do morango

A irmã de Roma

Flor do Cerrado

Brasília, onde pulsa o Coração do Brasil

 

Onde estará Iasmim?

Na Península Ibérica, portal da História

Terra dos seus ancestrais

Nas cidades mediterrâneas

Bebendo vinho de deuses

Estará em Paris, Londres, Roma?

Está na Cidade do Porto, em Portugal

 

Vive no mundo todo

Na Velha Europa, na Ásia, na África, na Amazônia

No mar, nas montanhas

Escalando o Pico da Neblina e pousando em Copacabana, no Posto 6

Como elétron, porque ela ama

Sua missão é ser feliz, fazer felizes os outros

Como luz que se eterniza, agora

domingo, 18 de fevereiro de 2024

TRÓPICO: qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Em Brasília é assim mesmo

Edição do Clube de Autores: Tuiuiú Crucificado, de Olivar Cunha

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 18 DE FEVEREIRO DE 2024 – Desde 1987, acompanho o dia a dia da política em Brasília. Trabalhei nos maiores jornais da cidade e alguns portais, como repórter, redator e editor, bem como prestei assessoria de imprensa para vários congressistas, durante mais de meia década, o que me proporcionou um filão de personagens, situações e ambientes para meu trabalho de criação. 

Esse tipo de experiência que o jornalismo fornece ao escritor é usado por todos nós. Ernest Hemingway, por exemplo, usou esse recurso largamente. Seu mais ambicioso romance, Por Quem os Sinos Dobram, é ambientado no que Hemingway viveu durante a Guerra Civil da Espanha, como jornalista. 

Basta lermos um pouco sobre a imprensa brasileira durante a virada do século XIX para o XX para vermos escritores, como Machado de Assis, acompanhando a política com artigos e crônicas e usando também esse material no seu trabalho de criação. Aliás, é uma tradição mundial os escritores ganharam a vida como jornalistas. É claro que, quem pode, procura ficar longe das redações, principalmente, hoje, no Brasil, com uma imprensa tão podre que fede longe. 

Pois bem, conheço razoavelmente o Congresso Nacional, a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios. Atualmente, aparece, eventualmente, algum político encomendando um editorial, ou algum empresário da mídia me pedindo um artigo ou uma matéria. Desde que isso não signifique empurrar uma peixeira no ventre da verdade, escrevo-os, e isso me proporciona algum dinheiro. Mas procuro reservar meu tempo para escavar minha memória e alicerçar meu trabalho de invenção. 

TRÓPICO (Editoras Clube de Autores e amazon.com.br, 229 páginas) reúne 29 contos, a maioria ambientada na Brasília política. Porque existe a Brasília dos candangos, dos brasilienses, gente trabalhadora e honesta. A Brasília política abriga uma fauna enviada por todos os estados do Brasil; nenhum com marca na testa. 

Já teve até um deputado, Hildebrando Pascoal Nogueira Neto, do Acre, que matava pessoalmente seus desafetos com motosserra, cortando-os vivos, a partir dos membros. E tem deputado que já foi flagrado pela polícia com a cueca recheada de dinheiro roubado, assim como colarinho branco graduado com malas de dinheiro clandestino, compra de parlamentares, assalto a estatais, o cão chupando manga verde no despautério do mundo. 

Em TRÓPICO, há esse ambiente. Bandidos de alta periculosidade, matadores de aluguel, rede de prostituição, jornalistas canalhas, excrescências capazes de entregar até suas filhas aos mandachuvas. Mas, caro leitor, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A fauna que pulula em TRÓPICO são apenas personagens de ficção. 

Selecionei um conto de TRÓPICO para o distinto leitor. Boa leitura! 

O Deputado 

O deputado parecia uma égua prenha de tão barrigudo. Acabara de comer de uma marmita de um quilo a mesma comida gordurosa que seu chefe de gabinete, e soltava pequenos arrotos em sequência.

– É pegar ou largar – disse para seu assessor de imprensa.

O caso era o seguinte: o deputado fora eleito líder da Minoria e colocaria seu assessor de imprensa lá, desde que ele concordasse em lhe repassar um terço do seu salário.

– Eu lhe dou a resposta, amanhã, deputado – disse o assessor de imprensa.

O deputado pensou um pouco.

– Está bem – disse. – Amanhã!

A esposa do deputado, que estava presente, disfarçava lixando as unhas, mas estava atenta ao diálogo. Era uma dessas mulheres fúteis, que passava a vida participando de festas com o único objetivo de aparecer nas colunas mundanas.

“Liderança da Minoria, meu Deus, onde fui parar” – pensava o jornalista, ao deixar o gabinete do deputado. “E ainda ter que continuar a dar o suor do meu rosto a esse depravado...” Ele sabia o que é que o deputado fazia, de vez em quando. Enquanto uma assessora dirigia seu carro, ele comia a outra no banco traseiro. Depois, a que acabara de ser comida ia ao volante enquanto a outra era papada. O deputado parecia um porco reprodutor. A mulher dele devia saber de tudo, mas não se importava. Certamente tinha seu pé de pano. “Bom, de qualquer forma tenho que dar uma resposta a esse filho de uma égua.”

No dia seguinte, o assessor de imprensa se apresentou ao novo líder da Minoria, para dar a resposta.

– Consegui um salário de 10 mil reais, mas tu vais repassar 5 mil para o Machado (o chefe de gabinete) e vais ter que atender ao gabinete e à liderança. Outra coisa: para de replicar matéria falando mal do Presidente. Vamos publicar no site somente matérias positivas, mostrando o crescimento do país. Que mania, só ver o lado ruim das coisas! Quero que tu cries um blog para mim e também quero ter um Twitter – disse o deputado, igual uma metralhadora.

O soco pegou-o na boca e ele caiu igual Silvio Berlusconi quando tomou aquela porrada... Levantou-se grogue. O chefe de gabinete, que também estava na sala, ficou amarelo.

– Filho duma égua, eis teu Twitter, ladrão do caralho. Acho que vou fazer teu parto, mensaleiro buchudo. Mete esse ultraje, que é a liderança da minoria, na flor do teu jardim de trás – disse o assessor de imprensa.

– Você não pode fazer isso – balbuciou o chefe de gabinete e levou um tabefe na cara.

Estavam somente os três homens no gabinete e um gabinete ao lado passava por reforma, de modo que o barulho na sala era abafado pela barulheira ao lado.

– E mais, patife, tu vais me pagar 24 mil reais, agora, referentes aos 1 mil reais que repasso todo mês, há dois anos. Agora! Anda, assinas o cheque! Tenho todos os recibos bancários dos depósitos na conta desta anta corrupta, aqui – disse, apontando para o chefe de gabinete. – Vamos! Vamos! Não há sobre o que pensar. Se não, vou rebentar com vocês. Tenho alguém no jornal O Estado de S.Paulo que publicará minha história com prazer, pois tenho documentos também daqueles favores que tu fizeste para o Sarnento Filho. Anda! Anda!...

“Ai, que alívio deixar esse esgoto” – disse o assessor de imprensa, de si para si. Do zebrinha ele via a Esplanada dos Ministérios, “capital da corrupção”. Com os 24 mil reais iria respirar um pouco em Salinópolis.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Histórias nas grandes cidades da Amazônia

AMAZÔNIA: 28 contos ambientados nas cidades e na Hileia

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 17 DE FEVEREIRO DE 2024 – AMAZÔNIA (Editoras Clube de Autores e amazon.com.br, 29 contos, 363 páginas), deste escritor, acaba de ser publicado. A diferença de outros autores da região é que a maioria desses contos se desenrola nas grandes cidades da Hileia.

Ribeirinho nascido na Macapá/AP de 1954, repórter nos maiores jornais da Amazônia e leitor da literatura científica, histórica e de ficção do Trópico Úmido, posso trafegar com familiaridade pelas grandes cidades da região, como Belém e Manaus, bem como pela selva ínvia.

São contos prenhes de dramas urbanos e tragédias na selva, com personagens de ficção que sobrevivem nas cidades da grande floresta e, às vezes, se internam na selva, de onde somente alguns logram retornar. O contrário também ocorre; cabocos migram para a cidade grande e, sem compreendê-la, encurtam suas vidas.

Selecionei, aqui, um dos contos de Amazônia. Boa leitura!

MUITO ALÉM DE MIM

Tenho tentado escrever ficção. A gente não precisa de muito para produzir. Basta comer o suficiente para não adoecer. Vinha tendo bem mais que isso, mas tudo acabou como num passe de mágica. No mesmo dia, perdi emprego, mulher, casa, comida e roupa lavada. Conheci Celina Madeira Machado Silva e Silva no Bar do Parque, defronte ao Hotel Hilton Belém, na Praça da República. Ela estava na companhia de uma tipa grande como uma elefanta e de uma outra que era toda uma enguia. Naquela época, andei publicando umas resenhas sobre cinema em O Liberal e Celina era cinéfila. O papo foi longe. Ela me convidou para ir à sua casa no dia seguinte. Morava em um casarão em Nazaré. O pai, com o estômago estourando de câncer, vivia recluso esperando a hora de bater as botas. Para não me estender muito, o caso é o seguinte: Celina e eu nos casamos dias depois. Eu era seu quarto marido. Celina andara à procura de um pai camarada. A mãe de Celina, uma índia que seu pai comprara em Santarém, fora escravizada a vida toda, mas não morrera sem gerar a filha rebelde. Ao chegar de Portugal, o pai de Celina começou como padeiro em Belém. Anos de economia, comendo restos estragados de frutas e se vestindo com duas mudas de roupa, fizeram dele um magnata do pão. Celina vivia esbanjando a fortuna e batendo perna com suas amigas aliá e peixe-elétrico. Era a cadela no trio. Pôs-me um par de cornos de alce. Mas nosso jogo era tácito. Ela me tirara da sarjeta e me usava como atleta sexual. Naquela manhã, peguei o carro que Celina me dera e fui para o trabalho, uma revista picareta que só me pagava com vales, embora, antes de conhecer Celina, era lá que eu repousava a carcaça, em um quartinho decrépito, nos fundos do prédio. Cheguei a tempo de ver o pessoal da Justiça do Trabalho levando tudo. Depois soube que o editor tinha vencido uma causa trabalhista contra o dono da empresa. Voltei para casa. Flagrei minha mulher gemendo, empalada no vergalho do jardineiro em nossa santa cama. Não quis fazer drama. Sentia-me vulnerável e cansado. Fui à cozinha beber água. “A vida é um jogo perdido; o melhor que podemos fazer é jogar bem” – pensei. “A criação literária é minha igreja; e eu, o padre que oficia a missa. A razão da minha vida é escrever ficção. Se não escrevo, sinto-me vazio, despencando na fossa, no nada. Por isso, necessito criar. E quando estou no lugar ideal nada pode me atingir. Nada! Eu sempre soube que esse casamento é apenas uma passagem de chuva.” Passado algum tempo voltei ao quarto, peguei minhas coisas. Na sala, encontrei Celina.

         – Estou indo embora – disse-lhe. Quase não acreditei no que ela respondeu.

            – Tu pegaste a roupa na lavanderia? – eram uns casacos que ela usava quando viajava e que eu levara à lavanderia.

          Nessas alturas, tinha feito novas amizades e um amigo, um verdadeiro irmão, que me acolheu na casa dele. Minha passagem pela casa de Celina proporcionou-me a oportunidade de me preparar para o vestibular. Ela pagara o cursinho e eu consegui entrar na Universidade Federal do Pará, para fazer o curso de jornalismo. Foi desse modo que obtive uma vaga na Casa do Estudante Universitário do Pará (Ceup).

            Naquela manhã lamacenta de abril a Ceup dormia ainda, por trás do alto muro na Rua São Francisco, bairro da Campina. Era um conjunto de três prédios: a Casa Nova, já com sinais de decrepitude; a Vila Sapo, com quatro quartos lado a lado; e a Casa Velha, um casarão do século dezenove, em ruínas.

            – Gostaria de falar com o presidente – disse a um ancião escaveirado que surgiu no vão da porta, imaterial como um fantasma.

            Fui conduzido a um quarto no terceiro andar da Casa Nova. Bati na porta. Apareceram dois olhos negros, famintos. Pertencia a um camponês de cabeça excessivamente chata. Estendi-lhe a carta da reitoria da Universidade Federal do Pará. Ele a leu.

            – Meu nome é Ribamar – disse, e me convidou para entrar no quarto.

            O quarto fedia a mofo, roupa suja e gordura. Encostada à parede havia uma bicicleta toda enfeitada. “Parece chapéu de vaqueiro nordestino” – pensei.

            – Você vai para o quarto do Rei Momo – disse o presidente.

            O quarto do Rei Momo ficava na Vila Sapo. Era o primeiro de quem ia da Casa Nova para a Casa Velha. Estava fechado. Ribamar bateu na porta. Ouviu-se movimento lá dentro e depois a porta foi aberta. Vi uma aparição de olhos esbugalhados, um homem de meia idade, barrigudo e assustado.

            – Este aqui é o João. Ele vai morar aí – disse o presidente.

            – Aqui? – Rei Momo não acreditou no que ouviu. Desde que viera de Santarém, há dez anos, não dividia o quarto. Agora, o subversivo do Piauí vinha com aquela conversa. – Um momento – disse Rei Momo, fechando a porta. Daí a alguns minutos reapareceu. Vestira uma camisa e escovara os cabelos. – Podem entrar – convidou-nos.

            O fedor de mofo era sufocante. Em um dos lados do quarto havia uma cama com um bom colchão, com trapos espalhados sobre ele. No outro lado, encostada à parede, vi uma dessas camas de armar e desarmar. Na parede dos fundos erguia-se uma respeitável pilha de livros, ao lado de um guarda-roupa em ruínas, e no centro do quarto jazia uma mesinha atulhada de tudo quando se possa imaginar. Rei Momo sentara-se sobre a cama e o presidente e eu ficamos em pé.

            – Eu sempre morei sozinho – disse Rei Momo, zangado.

            – Isto aqui está precisando de uma limpeza. Vou convocar um mutirão para pôr em ordem este quarto – disse o presidente, que era recém-empossado. Eu soube mais tarde que o presidente anterior permanecera no cargo durante dez anos.

            Rei Momo olhou-o apavorado.

            – Não será preciso um mutirão. Nós dois nos daremos bem – eu disse, estendendo a mão para Rei Momo. Ele pareceu não ter visto meu gesto. – Parece-me que ambos gostamos de Fellini – apontei para uma lombada que se salientava na pilha de livros. – E não te preocupes com barulho; gosto também de silêncio.

            Nasci em 22 de abril de 1939. Estamos em 22 de abril de 1972. Tenho, portanto, 33 anos de idade. Sinto que já comecei a descer o morro da vida. Para um escritor permanecer no embalo dos 21 anos só com muita dedicação – dedicação religiosa – a tudo o que diz respeito à criação literária, como: disciplina espartana e trabalho duro como um assalto de boxe, sem trégua, contínuo, árduo e nunca desestimulado. E é assim que venho fazendo na Ceup, aproveitando essa oportunidade que Deus me deu. O fim do meu casamento serviu para que descobrisse o quanto realmente as coisas valem. A Ceup foi o gatilho que eu precisava disparar para me tornar escritor e, antes dela, Celina.

            As melhores horas eram as da madrugada, quando o silêncio se impunha à horda piolhenta que ali se escondia. Às vezes, deixava-me sentar em frente à televisão para ver um resto de filme, ou simplesmente ficava ali, no hall de entrada da Casa Nova, mais pela claridade das inúmeras lâmpadas fluorescentes. Nas férias, quando todos iam para suas cidades natais e a Ceup ficava quase abandonada, eu varava as noites escrevendo, absolutamente fiel a mim mesmo. Escrevia todos os dias, mesmo que fosse por alguns minutos apenas. Se não dava, tentava no dia seguinte. E dormia bastante. Lia tudo e atentamente. Rezava, meditava, via, ouvia, sentia, cheirava, degustava, bebia, comia, vagabundava, batia papo e escrevia cartas. Escrever não me saciava nunca. Atingia picos de concentração, lucidez e produção que pareciam a embriaguez do primeiro gim fizz. Vivia o agora e o agora, o momento mesmo da vida. Nada de nostalgia, nada de remorso, o passado era feito do que havia de melhor; nada de sonho, pois a realidade proporcionava prazer intenso; nada de preocupação, pois não havia futuro; nada de raivas, pois a raiva, acionada, só a morte pode detê-la, é tão devastadora que atinge tudo ao seu redor, incluindo objeto e sujeito; nada de reclamações; nada de se meter na vida dos outros, nem deixar que os outros se metessem na minha vida. Eu era, apenas, um mero observador da realidade, embora, sempre que achasse necessário, interviesse na realidade. Hoje, sei que não se pode intervir na realidade, pois a realidade é. Nossa vida é apenas o caminho que leva à realidade. Até as mulheres se tornaram para mim, naquela época, abstrações, e somente pensando nelas é que ousava sonhar. Sonhava com uma companheira, amiga, amante, o colo onde repousava minha cabeça, ainda dolorida devido aos cornos. A luz do seu amor me conduzindo naquelas encruzilhadas da vida mergulhadas nas trevas, guiando-me pela mão, com segurança, emergindo comigo na claridade e na trilha segura. Nos meus mergulhos interiores eu me via também como protetor das crianças, gentil e caridoso, senhor de mim, poderoso como um anjo, e frágil, pois me via pedindo perdão a todos quanto ofendi, ou causei mal.

            Geralmente me alimentava de pão dormido, que o padeiro da esquina me arranjava sempre. Fiz amizade também com o açougueiro, que me dava ossos ainda munidos de excelentes nacos de carne, que eu cozinhava e comia com a boa farinha d’água que minha família me mandava de Oiapoque, cidade do Território Federal do Amapá. Às vezes, eu faturava alguma coisa na mídia. Aí, almoçava no Ver-O-Peso. Meio litro de pirão de açaí com dourada, e adormecia nocauteado pela canícula, até o anoitecer, quando tomava banho, vestia a melhor muda de roupa de que dispunha e ia para o Cosa Nostra bater papo com o barman, meu amigo. Mas, a maior parte do tempo, vivia a minha vida de modo quase recluso, quase sem participar da agitação que era sempre a Ceup. Minha participação no dia a dia da casa era mais a de expectador. Os acontecimentos se sucediam como os bancos de uma roda-gigante em movimento. Embora eu não me importasse com eles. Simplesmente não influíam na minha vida. Eu estava ali com um objetivo e até alcançá-lo vivia intensamente minha vida interior. O dia a dia da Ceup não alterava o fluxo do meu rio interior. Mas eu dissecava os protagonistas desses episódios e, às vezes, tomava nota deles. Uma madrugada, acordei com gritos medonhos à porta do quarto. Abri-a e me deparei com uma mulher enrolada em um cobertor imundo, cheio de nódoas de gozos antigos, suplicando que a socorressem. Mão de Sucuri, um vaqueiro, nosso vizinho, havia levado aquela mulher para o quarto dele, onde morava com Punheteiro, que se masturbava a noite inteira enquanto Mão de Sucuri trabalhava nas putas que levava para lá. Naquela noite, Mão de Sucuri, que tinha esse apelido de tanto ordenhar vaca e ficara com uma força descomunal nas mãos, queria que a mulher desse uma chupada nele. Ela ficou com vergonha de fazer aquilo na frente de Punheteiro. Apesar de não se aguentar em pé de tão porre, Mão de Sucuri imobilizou-a na sua rede tão limpa quando o cobertor em que ela havia se envolvido na fuga e lhe ferroou uma dentada na bunda. Depois pô-la nua, a bofetadas, ao relento. Ela conseguira levar o cobertor e ao ver-se ao relento pôs-se a berrar. Mão de Sucuri caiu na rede em coma e Punheteiro batia uma feroz punheta para aquela égua nua que passou roçando seu nariz. Outra madrugada, na Casa Nova, o Doutor, conhecido também como Distribuidor de Esperma, começou a berrar. Ele queria ser cirurgião plástico. Logrou ingressar na universidade após doze vestibulares bem contados. Jamais tomava banho e lembrava um pedaço de sebo. Dizia a todos que vendia esperma para inseminação artificial. Recebia carne seca do Maranhão e guardava-a sobre uma sucata de geladeira. Todo dia tirava dali alguns pedaços, que cozinhava e comia com farinha d’água. Um dia, ratos começaram a brigar sobre a carne seca e um caiu no Distribuidor de Esperma, que acordou com uma ratazana na cara. Em agosto, houve o caso do Padre. Um dia, encontrava-me no salão da Casa Velha. Duende estava encostado à janela. Era meio-dia e o sol dava até para fritar ovo.

            – Não dou uma semana para que o Padre seja levado para o hospício – disse Duende, um goiano vermelho e miúdo, que só usava camisas de mangas compridas abotoadas nos punhos e no colarinho, mesmo sob o calor de quarenta e cinco graus. Três dias depois, houve um corre-corre na Casa Velha. Apareceram quatro enfermeiros, meteram o Padre numa camisa de força e sumiram. Naquela noite, encontrei-me com Duende e lhe perguntei como é que ele sabia do internamento de Padre.

            – Ele andava de camisas de mangas compridas abotoadas nos punhos e no colarinho em pleno sol de meio-dia – disse.

            Fui a última pessoa a falar com Duende, que vivia sozinho em um quarto grande da Casa Velha. Como tivesse perdido a chave da porta, entrava no quarto por meio de um buraco na janela, vedado com um pedaço de compensado. Duende desaparecera já há três dias. Naquela manhã, seu Miguer, o faxineiro esquálido, vislumbrou por uma brecha na janela um movimento qualquer no quarto de Duende. Olhou melhor e viu uma ratazana agarrada a uma perna. Apurou o olhar e distinguiu um homem enforcado, com ratazanas aqui e ali no corpo, especialmente na cara. Seu Miguer emitiu um guincho semelhante ao de seus irmãos roedores e deu o alarme. Foi uma perda para Rei Momo, já que Duende costumava manter discussões quilométricas com Rei Momo sobre Khrisnamurt, de quem lera todos os livros. Ironicamente, Khrisnamurt era sua ansiedade.

            Quando eu não estava na Ceup, estava na universidade. Tive uma professora gorda como uma vaca que promovia debates sobre marxismo sem jamais ter lido O Capital. Vivia com uma aluna magrinha, que a gorda agarrava nos corredores da faculdade e lhe aplicava beijos escandalosos. Durante três semestres vi-me perseguido por um professor de técnica de alguma coisa, homossexual, coxo, com uma nádega seca e analfabeto. Um dia, no banheiro, segurei-o pelo cabelo e o fiz beber água do vaso sanitário. Um santo remédio. Outro mestre inesquecível foi um idiota nascido no Piauí, educado em Goiás e doutorado numa dessas universidades perdidas nas estradas dos Estados Unidos. O tipo lecionava uma disciplina chamada Estudos de Problemas Brasileiros. Suas aulas eram, invariavelmente, um elogio às obras faraônicas dos ditadores militares. À noite, livrava-me de tudo aquilo com um bom gole de gim fizz no Cosa Nostra, por conta da casa.

            Rei Momo morreu no Natal daquele derradeiro ano de minha permanência na Ceup. Caiu como um passarinho baleado diante da parede nua do quarto, onde sempre estivera seu tesouro. Rei Momo era um ladrão de livro. Possuía uma pilha de dois mil volumes. Ao mudar-me para o quarto dele tive de colocar Sequoia em ordem. Sequoia chegou a dar uma surra de cinto em Rei Momo. Mas eu ainda não morava na Ceup. Eu era pugilista amador e sempre que podia estava lá com a turma da Joe Louis. Acabei com Sequoia apenas com um tabefe na cara. Ele não revidou. Ficou se cagando de medo. Então, deixou Rei Momo em paz. Eu gostava de conversar com Rei Momo, que levava uma vida de rei, mesmo. Matriculava-se em uma única disciplina na universidade e fazia de conta que estava estudando. Sua família o mantinha ali porque o consideravam retardado mental. Ele não se importava. Recebia uma mesada relativamente gorda. Consumia suas tardes conversando fiado nas bancas de tacacá e com os vigias das redondezas. Pois bem, Sequoia mudou-se. Aproveitou para dar um golpe fatal em Rei Momo. Na madrugada daquele Natal, ao entrar no tugúrio onde nos enterrávamos, Rei Momo encontrou um bilhete pregado com fita Durex na parede nua onde sempre estiveram os livros, a primeira coisa que Rei Momo checava ao entrar no quarto. “Agradecido pelo livros, bicha louca” – dizia o bilhete.

            Vocês sabem como Ernest Hemingway morreu? Segundo Milt Machlin, no livro O Inferno Privado de Hemingway, era cedo da manhã. “Desceu à sala de armas e tirou do armário uma de suas espingardas favoritas, uma Angelini e Bernardon calibre doze, fabricada especialmente para ele. Era uma bela arma, e ele sempre a tratava com a reverência de um objeto religioso. Carregou-a com dois cartuchos, depois meteu os dois canos na boca e puxou os gatilhos ao mesmo tempo.” Houve um tempo em que pensei matar-me. Possuía – e isto era uma das minhas pequenas riquezas – uma pistola, a PT 58, da Taurus. Se eu quisesse me suicidar como Hemingway teria de pôr a boca do cano no céu da boca, de modo que a bala atravessasse o cérebro. A gente não sente nada. Os que ficassem, logo me esqueceriam. Como minha família é de Oiapoque e muito pobre eu seria enterrado como indigente e, assim, desapareceria sem deixar rastro. Cheguei a cogitar isso na época em que aquela cadela, aquela índia duma figa, galinha do caralho, me empurrou de volta para a sarjeta, depois de quase um ano principesco. Mas agora sou grato a ela. Ajudou bastante. E depois somente nós temos a responsabilidade pelo que passamos. Antes de conhecer Celina, estivera sentado em uma cadeira olhando para uma parede. A sorte é que ouvia Wolfgang Amadus Mozart. Concerto para Piano e Orquestra em Ré Menor. Para além da parede, há um anoitecer azul. Azul escuro. Peguei meu canivete italiano, outra joia que possuo, e vibrei contra o céu. O sangue escorreu pelo corte. E o azul intenso respingou mim. Atravessei o portão da Ceup e tomei pela Rua São Francisco e depois pela Avenida Almirante Tamandaré até a Avenida Presidente Vargas. Sentei-me em um banquinho no Milano e pedi uma Antarctica pequena. “Como vou desforrar!” – pensei, pois acabara de conseguir uma vaga em O Liberal. Já tinha renda garantida, agora. Só precisava escrever um romance que vendesse como Cem anos de solidão, como pão francês. Então compraria um iate para vagabundar por toda a Amazônia e o Caribe.