segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ninguém é profeta em sua terra


Comecei a ouvir falar em Bonfim Salgado por volta de 1967. Tinha 13 anos e Bonfim já era um jovem intelectual de Macapá. No ano seguinte, quando comecei a frequentar a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho, na Rua Mário Cruz, ouvi com mais frequência o nome do Bonfim e, às vezes, o via passar. Anos depois, o conheci no Rio de Janeiro. Depois disso, trocamos e-mails aqui e ali. Em 18 de fevereiro de 1998, Bonfim Salgado publicou na capa do caderno Nota 10, do jornal Diário do Amapá, o artigo Ninguém é profeta em sua terra. Segue-se o artigo.

Ninguém é profeta em sua terra

BONFIM SALGADO
bonfa.wordpress.com
Editor de Cultura do Diário do Amapá

Macapá, 18 de fevereiro de 1998 – O rapaz, a princípio, parece tímido. Ele não é alto, nem espadaúdo, como essa rapaziada frequentadora das praias e das academias de malhação da vida. O fato é que, outro dia, ele andava pelas ruas de Macapá, envergando aquela imagem comum aos nossos poetas e escritores: um calhamaço de papéis debaixo do braço, uma caneta Bic no bolso e uma porção de ideias na cabeça. Assim como aconteceu com Isnard Lima, nunca lhe deram o valor devido – e merecido.

Hoje, na capital do Pará (Belém), jornais e revistas publicam obras suas. Ele continua escrevendo e, vez por outra, referindo-se sobre o Amapá. As saudades, no entanto, não o impedem de fixar-se, cada vez mais, às raízes da Amazônia, à seiva bruta, generosa e forte que faz dos nossos caboclos autênticos gigantes da vida.

Ray Cunha, no conto Nunca receba restos, publicado no final do ano passado no jornal A Província do Pará, ensaia seus personagens e indica os caminhos do que poderá ser, em futuro próximo – se  é que ainda sei prever essas coisas -, o arcabouço do seu primeiro grande romance.

Graça e a “Gorda”, no conto retrocitado, compõem a galeria daquelas figurinhas noturnas que empestam a atmosfera peculiar do cais e feira livre do Ver-O-Peso, em Belém, cidade de cheiros, dengos e mistérios.

Aliás, apesar do pseudônimo de Reinaldo Castro, personagem principal do conto, é quase palpável um autodidatismo e uma identidade de Ray Cunha no desenrolar da narrativa.

“- Rainaldo Castro! – a gorda cacarejou, abaixando-se e beijando-me. A outra serpenteou e pousou no meu ombro a mão enegrecida pelo sol de alguma praia.

“- Olá, como vai? Como vai a faculdade?

“Bebi um bom gole. A negra dizia que a cerveja estava devidamente gelada, resignava-me e bebia com gosto mesmo assim, posto que era Antarctica.

“- A universidade? Tenho usado muita creolina...

“A crioula ficou atenta por causa do tom com que disse isso. A gorda pedira uma posta de peixe, não sem antes comer um naco do meu peixe.

“- E o Bebê? – Graça perguntou.

“Antes de casarmos, ela trepava com ele.

“- Casou-se – respondi.

“- Casou-se?! – as duas espantaram-se.

“A gorda, com um segundo naco do meu peixe.

“- Hoje é dia internacional... – disse, mudando o rumo da conversa. Estava bem-humorado.

“- De quê? – a gorda perguntou.

“- Das galinhas... – a crioula pegara alguma coisa e estava atenta – e das cadelas também.

Ray Cunha promete.”


O conto Nunca receba restos, do qual Bonfim Salgado publicou um trecho, foi publicado no livro A grande farra (27 contos, 153 páginas), que editei em 1992, em Brasília, com capa de Olivar Cunha.

domingo, 28 de novembro de 2010

O perfume das virgens ruivas

Naquela época eu trabalhava no jornal Diário do Pará e na revista Enfoque Amazônico, hoje, Amazon View. À noite, ia estava quase sempre ao café de um amigo meu, na Avenida Nazaré, próximo à Basílica, onde ele era barman e sócio. Conheci-o no Cosa Nostra, um dos melhores cafés de Belém. Na primeira vez que estive no Cosa Nostra fui atendido por esse barman e pedi um daiquiri, descrevendo-o do modo como Ernest Hemingway gostava de bebê-lo. Ele preparou a bebida tal qual pedi e, naturalmente, entabulamos conversa. Essa conversa se alongou até 1987, quando eu resolvi morar de novo no Rio de Janeiro, onde vivi de 1972 a 1974. Acabei ficando em Brasília, trabalhando com meu grande mestre no jornalismo, Walmir Botelho.

Passei a frequentar o Cosa Nostra. Inclusive estive lá com o Fernando Canto. Acabei entrevistando meu amigo barman para o Enfoque Amazônico. Lembro-me que o título principal da matéria foi “Tim-tim”. Um dia, ele foi convidado a fundar um novo café, em sociedade com mais uma ou duas pessoas, não me lembro bem, e se mudou para a Avenida Nazaré.

O café vivia cheio. Suas portas eram de vidro fumê e o salão refrigerado. A fauna que transitava ali era variada. Jornalistas, homens de negócios, artistas, contrabandistas, vigaristas, prostitutas, todos bem à vontade, conversavam, telefonavam, bebiam, riam, atentos uns aos outros, disfarçando a verdadeira missão de cada qual no enfumaçado ambiente.

Eu não pagava nada no café e não raro saía dali ziguezagueando, completamente bêbedo. Naquela noite, resolvi me embebedar com dry martini. Meu amigo reservou uma garrafa de gin inglês e outra de vermute italiano para meus drinks. Eu havia chegado cedo e no início da madrugada começara a escorregar para aquele mundo vertiginoso dos bêbedos quando ela entrou.

Era uma das mulheres mais sensuais que já vi. Entrou e se dirigiu diretamente para mim, como se tivéssemos marcado um encontro. Veio e se aboletou no tamborete ao meu lado, sorriu para mim e entabulou conversar. Como quase não havia movimento, meu amigo barman veio se juntar a nós. Eu já havia parado de beber, mas depois que ela chegou voltei a beber dry martini. Ela parecia fresca, mas estava chumbada também, e entornava um dray martini atrás do outro.

Não sei sobre o que conversamos, só me lembro de que entramos num táxi e fomos para um dos melhores moteis da cidade. Quando chegamos, ela estava tão bêbeda que tirou toda sua roupa e se deitou de bruços na enorme cama. Eu fiquei parado, no meio do quarto, vendo-a se despir e se deitar. Ela era demais linda! Peguei uma cadeira, pu-la no meio do quarto, me sentei e fiquei um tempão observando a garota. Lembrava uma modelo renascentista, dourada pelo sol da Amazônia. Suas ancas pareciam ter sido cinzeladas. Penso que ela não teria mais que 17 anos.

Fiquei ali, sentado, lambendo com os olhos o corpo maravilhoso da jovem adormecida. Ela sonhava. Certamente sonhava com rosas colombianas, vermelhas.

No dia seguinte, um domingo, eu teria que chegar o mais tardar às 7 horas no jornal, pois era julho, auge do verão amazônico, e fora pautado para fazer uma matéria em Salinas, na costa paraense. Assim, acordei antes das 6 horas e despertei minha bela adormecida. Incrível como ela me olhou fresca e sorridente, me beijou, foi ao banheiro, se vestiu, com a desenvoltura de uma esposa já bastante familiarizada com o marido, e saímos. Deixei-a na casa dela, no subúrbio, e fui para o jornal.

Naquela manhã, fiz o desjejum em Salinas, meia dúzia de ostras cruas, com sal e limão, e Antarctica enevoada. Salinas é uma das mais belas praias do planeta, escancarada para o Atlântico. O que a torna especial é que lá podemos comer os mais saborosos peixes do mundo, tomar tacacá e ouvir o sotaque das belenenses que fervilham nas praias quilométricas.

Eu era setorista no palácio do governo. Dias depois, estava lá, no batente, quando recebi um telefonema. Era ela. Ligara para o jornal, obtivera o número do telefone da sala de imprensa do palácio e ligou para mim. Sua voz era límpida, voz de mulher linda. Ela me disse que iria à sua cidade natal, no interior do estado - não me lembro mais qual era a cidade –, e que precisaria de uma certa quantia. A soma era pelo menos quatro vezes o que eu ganhava por mês nos dois trabalhos. Ela pronunciou o valor como se fosse uma ninharia. E de certa forma era isso mesmo, se falarmos em termos relativos. Respondi a única coisa que me ocorreu, que era a verdade: eu não tinha sequer um centavo. Ela riu e disse que na volta telefonaria para mim novamente.

Ela não voltou a telefonar para mim e nem a vi mais. Muito tempo depois compreendi que sua missão fora a de ajustar minhas antenas, para que eu descobrisse a poesia, única, que é cada mulher. E sei que não foi um sonho, porque seu perfume perdura para sempre na minha memória, como o perfume das virgens ruivas.


Brasília, 11 de novembro de 2009

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Potra em vestido de seda

Não estava pensando em coisa alguma. Deixava-me caminhar aos raios de sol nas frestas das árvores, embalado pelo canto dos pássaros e flutuando na sensação do não pensamento quando ela surgiu, de repente, no meu raio de visão. Eu caminhava pela alameda que ladeia ao norte a superquadra 311 Sul. Era uma ensolarada manhã de domingo, ainda cedo. O canto contínuo de um sabiá se sobressaía ao dos outros pássaros, exceto quando casais de joão de barro cantavam subitamente. Ia comprar o Correio Braziliense na banca da 311/212.

Ela se materializou à minha frente. Poderia alcançá-la, se quisesse. Bastaria que apressasse o passo, pois ela caminhava lentamente. Parecia que acertara o passo comigo, distante talvez três metros adiante de mim. A primeira coisa que me chamou a atenção foi seu vestido de seda, longo e estampado de rosas vermelhas sob fundo azul. O vestido era quase justo e as ancas da mulher moviam-se esculpidas sob a seda. Seus tornozelos eram bem torneados e seus pezinhos flutuavam em sandálias Havaiana rosas. Subi com meu olhar o dorso da mulher inesperada e me concentrei nos seus cabelos, que jorravam em aneis negros sobre os estreitos ombros, contrastando, livres, no decote, com a estampa da seda. Sua pele tinha a cor de jambo maduro.

Qual seria seu nome? Onde moraria? Aonde ia? Era a síntese perfeita do Brasil, no seu traje, no seu caminhar, na sua pele, naquele mistério intrínseco à sensualidade. Uma ideia, que me pareceu absurda, me assaltou. Ia chamá-la. Diria a ela que queria apenas vê-la de mais perto. Ela não se furtaria a isso, de se deixar ver de pertinho, num gesto redentor. Não tive, porém, a ousadia de chamá-la. Apressei o passo, então. Estava quase a alcançando quando ela sumiu, assim como surgiu. Só então percebi que meu subconsciente me enganara. Ela existe, sim, mas era uma personagem de ficção.

Entrei na banca, olhei as capas das revistas semanais, folheei a National Geographic de setembro, que traz uma matéria interessante, sobre a calha norte do baixo Amazonas. Comprei o Correio Braziliense e voltei para casa.


Brasília, 15 de setembro de 2009

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O maior rio do planeta

O rio Amazonas, que nasce no rio Apurimac, na parte ocidental da cordilheira dos Andes, no sul do Peru, na América do Sul, e deságua no oceano Atlântico, é o maior rio do mundo, 140 quilômetros mais longo do que o africano Nilo - que nasce no rio Kagera, próximo à fronteira entre o Burundi e Ruanda, na África, e deságua no mar Mediterrâneo -, tido como o mais comprido do planeta durante muito tempo. A comprovação foi feita por uma das mais sérias instituições científicas do Brasil, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que utilizou dados obtidos em expedição à nascente do Amazonas e imagens de satélite. Segundo o Atlas Geográfico Mundial, a extensão do Nilo é de 6.695 quilômetros e a do Amazonas, de 6.515 quilômetros. Os livros de geografia precisam ser reeditados. Agora, o rio Amazonas mede 6.992,06 quilômetros e o Nilo, 6.852,15 quilômetros.

A equipe que chegou a essa conclusão, divulgada em julho de 2008, foi chefiada pelo geólogo Paulo Roberto Martini, 60 anos, da Divisão de Sensoriamento Remoto do Inpe. Ele comentou que as medições anteriores foram feitas sem o uso de metodologias científicas: “Esse resultado mostra que, às vezes, as verdades mais bem estabelecidas têm de ser revistas porque podem simplesmente não ser verdade. Pelo menos desta vez não temos acho. Temos metodologia científica e, por essa leitura, por essa interpretação, você pode colocar nos livros que o Amazonas é maior do que o Nilo”.

Em junho de 2007, uma expedição, que incluía representantes do Inpe, do Instituto Geográfico Militar do Peru, da Agência Nacional de Águas (ANA) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), já havia determinado a nascente do rio Amazonas. Desde o início dos anos 1990, cientistas do Inpe se debruçam sobre o gigante, por meio de sensoriamento remoto e geoprocessamento, tecnologias utilizadas no Programa Espacial Brasileiro. Foram usadas imagens dos satélites norte-americanos Landsat, distribuídas pela Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos. Os pesquisadores marcaram o traçado dos dois rios e com ajuda de um programa de computador calcularam a extensão deles da nascente à foz.

Em maio de 2008, o vice-presidente da Sociedade Geográfica de Lima, professor Zaniel Novoa, após 12 anos de investigação, confirmava a versão do explorador polonês Jacek Palkiewicz, que, em 1996, localizou a nascente do Amazonas e afirmou que o rio sul-americano era mesmo o maior do mundo. Até a segunda metade do século XX, os geógrafos apontavam o Nilo como o maior. Desde que o Amazonas foi batizado, em 1500, foram identificadas nascentes em vários pontos do Peru, contudo a nascente verdadeira se encontra a 5.179 metros de altitude, próximo do monte nevado Quehuisha, na região sul de Arequipa, no Peru.

O Amazonas foi chamado pelo navegador espanhol Vicente Yañez Pizón, em 1500, de Mar Doce; o também espanhol Francisco Orellana mudou-o para Amazonas, em 1542. O colosso marrom, que no estado do Amazonas recebe o nome de Solimões e nos estados do Pará e Amapá, de Amazonas, é a espinha dorsal da maior bacia hidrográfica do mundo, formada por 7 mil afluentes, abrangendo uma área, segundo a Agência Nacional de Águas (ANA), de 6,110 milhões de quilômetros quadrados, no norte da América do Sul, banhando Peru (17%), Equador (2,2%), Bolívia (11%), Brasil (63%), Colômbia (5,8%), Venezuela (0,7%) e Guiana (0,2%). Só a bacia do rio Negro, afluente da margem esquerda do Amazonas, contém mais água doce do que a Europa.

Da nascente até 1.900 quilômetros, o Amazonas desce 5.440 metros; desse ponto até o Atlântico, a queda é de apenas 60 metros. Suas águas correm a uma velocidade média de 2,5 quilômetros por hora, chegando a 8 quilômetros, em Óbidos, cidade paraense a mil quilômetros do mar e ponto da garganta mais estreita do Amazonas, com 1,8 quilômetro de largura e 50 metros de profundidade.

Fora do estuário, a parte mais larga situa-se próxima à boca do rio Xingu, à margem direita, no Pará, com 20 quilômetros de largura, mas nas grandes cheias chega a mais de 50 quilômetros de largo, quando as águas sobem ao nível de até 16 metros. O Amazonas é navegável por navios de alto-mar da embocadura à cidade de Iquitos, no Peru, ao longo de 3.700 quilômetros. Seu talvegue, nesse curso, é sempre superior a 20 metros, e chega a meio quilômetro de profundidade próximo à foz. A bacia amazônica conta com 25 mil quilômetros de rios navegáveis.

A vazão média do rio-mar é de pelo menos 200 mil metros cúbicos de água por segundo, o suficiente para encher 8,6 baías da Guanabara em um dia. No Atlântico, despeja, em média, 400 mil metros cúbicos de água por segundo; chega, portanto, a despejar 600 mil metros cúbicos de água por segundo no mar. Num único dia, o Amazonas deságua no Atlântico mais do que a vazão de um ano do rio Tamisa, na Inglaterra. O colosso contém mais água do que os rios Nilo, na África; Mississipi, nos Estados Unidos; e Yangtzé, na China, juntos.

O Amazonas despeja também no mar 3 milhões de toneladas de sedimento por dia, 1,095 bilhão de toneladas por ano. O resultado disso é que a costa do Amapá está crescendo. A boca do rio, se escancarando do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede 240 quilômetros, e sua água túrgida de húmus penetra 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias e fertilizando o Atlântico com 20% da água doce do planeta. O húmus despejado pelo gigante no Atlântico torna a costa do Amapá uma explosão de vida marinha, o ponto mais rico da Amazônia Azul, no Brasil mais mal-guardado pela Marinha de Guerra e menos estudado pela academia.

“O que me intriga, não apenas no conteúdo da educação fundamental brasileira, mas também na base de informações científicas e acadêmicas no Brasil, é a pobreza de informações ambientais e biológicas sobre essa região, batizada de Mar Dulce pelo navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón, em 1500, mesmo ano em que Cabral achava o Brasil” – comenta o oceanógrafo Frederico Brandini.

Ele lembra que, no Amapá, as autoridades estão pouco preocupadas com o estudo da Amazônia Atlântica, e as costas do Amapá e do Pará são um inacreditável banco de vidas marinhas, coalhado de piratas, que vão lá pegar, de arrastão, pescados, lagostas, camarão e outros frutos do mar. Tenho notícia de que pescadores paraenses já capturaram na altura da Vila de Sucuriju, no município de Amapá, um marlim azul de meia tonelada. Nem Ernest Hemingway conseguia espadarte desse porte no Gulf Strean.

domingo, 21 de novembro de 2010

Núbia Santana, Anthony Quinn, Wolfgang Amadeus Mozart

Fora entrevistar a atriz e cineasta Núbia Santana no apartamento dela, mas o porteiro me disse que Núbia saíra no dia anterior e não retornara. Estaria na França, para o XI Festival de Cinema Brasileiro de Paris? Seu documentário em longa metragem Pra ficar de boa retrata o cotidiano de violência e abandono de crianças e adolescentes que vivem nas ruas de Brasília e de internos do Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje). “Esses jovens têm em comum uma vida marcada por abusos dentro e fora de casa, drogas, crimes, guerras e morte. Entretanto essa cruel realidade não impede que eles sonhem com um futuro melhor” – diz a sinopse do filme.

Era um dia azul como devem ser os sábados. Azul escuro, com a intensidade do rio das tardes de julho, na Amazônia. Eram 18 horas, se esvaindo no silêncio da grande cidade, nas luzes que sucedem o sol agonizando, nas pessoas que passam caminhando dentro da noite.

Núbia, que foi Miss, é dona de uma beleza ainda mais impressionante, a de uma leoa que enfrentou a falta de perspectiva do agreste pernambucano, com a missão de transformar o mundo em tardes azuis. Este ano, pela sexta vez, ela fez o papel de Maria na representação da Via Sacra de Taguatinga. “Ela tem tanta coisa a fazer que certamente não pôde me aguardar. Quem sabe me dará a entrevista na volta de Paris?” – disse para mim mesmo.

Do prédio de Núbia fui caminhando até o restaurante Raízes da Amazônia. O bairro do Sudoeste é um dos metros quadrados mais caros de Brasília. É agradável caminhar, ao anoitecer, num bairro urbanizado, ouvindo os murmúrios da noite se sobrepondo aos derradeiros sons da tarde que desaparece sob as luzes noturnas. O Raízes da Amazônia é especializado na cozinha paraense, a mais saborosa do mundo. Pedi tacacá. “O tucupi é novo, chegou hoje” – informaram-me. Degustei o tacacá e pedi uma unha de caranguejo. Ia também tomar sorvete de tapioca, da Cairu, mas me senti cheio. Paguei e fui apanhar o ônibus. A principal rua comercial do Sudoeste é um dos locais de Brasília onde a noite cintila, prenhe de luzes, cheiros e mulheres bonitas. Aos poucos, o Sudoeste foi ficando para trás.

Desci no Setor Hoteleiro Sul. Gosto de grandes hotéis e me agrada até mesmo passar diante deles e vislumbrar a vida que pulsa nos seus átrios e cafés, a alegria de viajores, o requinte dos serviços, a beleza e o mistério das mulheres que só encontramos nos grandes aeroportos. Saí diante do Venâncio 2000, atravessei a frente do shopping e entrei no Pátio Brasil, um shopping vizinho, e me dirigi à livraria Leitura. Comprei Zorba, o grego, de Michael Cacoyannis, com Anthony Quinn, a belíssima Irene Papas e Lila Kedrova, Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel da doce Bubulina. Comprei também Amadeus, de Milus Forman.

Em casa, encontrei duas das mulheres mais importantes da minha vida - minha esposa, Josiane, e minha filha, Iasmim. Escolhemos Zorba. Anthony Quinn dançando a música de Mikos Theodorakis é antológico, e o romance de Nikos Kazantzakis é desses livros que se movem para sempre. Quanto a Amadeus, é outra crônica.


Brasília, 22 de abril de 2009

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Da mão para a boca

William Faulkner disse à dupla de entrevistadores da The Paris Review que o melhor emprego que já teve foi o de gerente de bordel. Dava-lhe liberdade econômica, deixando-o livre do medo da fome e de não ter onde dormir. Um prostíbulo é quieto de manhã, o turno de trabalho preferido dos escritores; e, à noite, se gostar de vida social, ele a terá. Dessa forma, um rendez-vous pode proporcionar segurança financeira, a solidão necessária para o ato de criar e diversão.

Um escritor de primeira categoria não precisa de nada disso, é claro. Escreverá na prisão, na sarjeta ou no Copacabana Palace. Como é de primeira classe, o ambiente não piorará, nem melhorará seu texto. Mas, de certa forma, dirigir um bordel representa o lugar ideal para o escritor, pois se a segurança financeira não influi no resultado da criação do artista, proporciona tranquilidade ao homem. E há a questão do silêncio pela manhã.

Inúmeros escritores foram artistas da fome na juventude, como o famélico personagem de Knut Hamsun. Viciados, fazem quase qualquer coisa para alimentar o vício, pois todo escritor classe A sabe que se não parir as personagens que o atormentam morrerá prematuramente; muitas vezes, louco. Então escrevem.

Escritores de primeira categoria só sabem escrever. Se nascem ricos, tanto melhor, do contrário penam durante muito tempo realizando todo tipo de trabalho para não morrer de fome. Gabriel García Márquez, o gigante de Cem Anos de Solidão, chegou a pedir esmola em Paris, onde outro monstro, Ernest Hemingway, teve que matar pombos, escondido, é claro, para se alimentar. Depois de O Sol Também se Levanta, Papa não precisou mais atacar pombos para saciar a fome.

Para muitos escritores classe A a briga inicial é manter o estômago aquecido. Outro tipo de tormento são as dívidas, pequenas, mas impagáveis, e às vezes grandes, que artistas da fome são obrigados a contrair. A angustiante falta crônica de dinheiro, a eterna corrida atrás de grana, os constantes pedidos de pequenos empréstimos aos amigos, as roupas puídas, os sapatos furados, são outras humilhações pelas quais passam os atormentados artistas da fome. Certa vez, convidado a um encontro num café com o diretor de uma revista na qual deveria assumir como editor, Gabriel García Márquez chegou antes do diretor e saiu depois dele, para que seu salvador não visse que o solado de um dos sapatos de Gabo estava solto, devido à absoluta falta de dinheiro para mandar consertá-lo.

Paul Auster foi outro que passou também pela falta de dinheiro. Auster é de Nova York. Tornou-se popular com Leviatã (1992). Incursionou pelo cinema. Foi o roteirista de Cortina de fumaça, Sem fôlego e O mistério de Lulu, que também dirigiu. A Companhia das Letras publicou, em 1997, Da mão para a boca - Crônica de um fracasso inicial (396 páginas). Da mão para a boca reúne 103 páginas de memórias; 49 páginas com três peças teatrais; 9 páginas sobre um jogo de cartas que Auster inventou para ver se ganhava algum dinheiro, mas não ganhou nenhum; e o romance policial A estratégia do sacrifício, com 205 páginas - algo na linha de Dashiell Hammett e Raymond Chandler. Auster o escreveu na tentativa de ganhar algum. Ganhou. A princípio, pouco. Mas o suficiente para sentir o batismo de fogo, como diria o poeta amapaense Isnard Lima Filho.

Auster não é Faulkner, nem García Márquez. Num momento em que Faulkner não dava mais conta de sustentar a família com os livros que publicara, escreveu Santuário, um extraordinário romance de gangster que encheu seus bolsos. García Márquez já havia publicado meia dúzia de livros e devia a todo mundo quando escreveu Cem Anos de Solidão, que começou a vender como pão francês. Acontece que, para o artista da fome, ter um livro aceito por uma editora representa o mesmo que, para o alcoólatra, uma linha de crédito num bar - sem fiador, nem cheque pré-datado, nem limite. Um acontecimento único, embora improvável, na vida de um pé inchado.

Da mão para a boca narra as peripécias do artista quando jovem. Auster nasceu numa família da classe média, mas não deu pistas de que queria ser escritor, para não assustar ninguém. Apenas alimentava as baterias da criação e ia comendo o que lhe era servido à mesa, sem reclamar. Fez todo tipo de tarefa para se aguentar enquanto imergia no seu bordel particular, trabalhando na Estratégia do sacrifício. Assim, Da mão para a boca é o dia-a-dia de um candidato a escritor.

Os iluminados não estão preocupados em obter carteirinha de escritor, nem com subvenções oficiais, nem em puxar saco de ninguém. Sabem que nada disso é capaz de aumentar seu talento. Sobrevivem aceitando quase qualquer serviço que lhes apareça. Não pedem muito, nem exigem coisa alguma que represente luxo. Só querem ter seu bordel particular, pois sabem que sem poder escrever serão alcoólatras a seco. Sem nem mesmo cachaça de Abaetetuba, uma das mais ordinárias do mundo, pois contém muita soda cáustica e água.

Neste Da mão para a boca, Auster mostra com precisão o drama de quem nasce com o dom de criar, pois para criar é preciso tempo, tempo que poderá ser precioso para a sobrevivência. A menos que se escreva logo de início algo como O sol também se levanta. Aí, dá até para viver em Paris.

Tudo é válido para o candidato a escritor no seu esforço de criar; inclusive se expatriar no jornalismo. No caso de um escritor amazônida que sobrevive de jornalismo em Brasília, e escreve sobre políticos, ele sabe que o encontro com a solidão, aquela solidão que só os estrangeiros sentem, desnorteante e seca como um soco na boca do estômago, é certa, mas sabe também que não há outro modo de chegar ao bordel.  


Brasília, 10 de maio de 2008

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Unicórnio Azul

Levantei-me, como sempre, às cinco horas. Gosto de ouvir a madrugada se desfazendo no amanhecer. Leio. Escrevo, às vezes, pequenos poemas, como o ourives lapida a jóia. Tharcilla respirava cadenciadamente, mergulhada no vale dos sonhos. Percorria o corpo da minha mulher com o olhar, quando, no trajeto dessa viagem interminável a lembrança retornou subitamente, avassaladora como o perfume das virgens ruivas. A recordação me invadiu com a intensidade do céu de Belém do Pará, escoando no rio da tarde, em julho. Acaso um avião cortasse o céu, de tão azul, escorreria sangue. “Certamente vou encontrá-la de novo” – pensei, sem crer, contudo, no meu pensamento, pois sentia, embora imperceptível, aquele vazio que nos assalta irracionalmente e que só desaparece quando voltamos a nos alinhar à ordem do Universo. “Terá sido um sonho?” – perguntei-me, e fui à biblioteca, abri a gaveta da minha escrivaninha, a última, e lá estava, bem no fundo, onde o escondera de mim mesmo, o cartão, no qual se lia “Unicórnio Azul”.

Ontem, sentia-me perfeitamente impune no meio daquelas lindas e delicadas criaturas. Entrara ali com minha mulher e enquanto a aguardava fiquei a ouvir, deliciado, o palrar de tão encantadoras companhias. O fato de ter sido criado por minha mãe e por minha irmã mais velha, a quem chamava também de mãe, isso, além do convívio com dezenas de mulheres da família, sendo eu o único varão, determinou em mim a necessidade, vital, do elemento feminino. Onde quer que estivesse, procurava, avidamente, a presença feminina, para respirá-la, oxigenar-me, ligar-me ao éter, à vida. Só então me sentia tranquilo. Lembro-me que nos fins de semana recebíamos sempre muitas tias e primas. E lembro-me, particularmente, das gêmeas Zina e Zínia, uma loura e a outra ruiva, que me iniciaram nos prazeres, não propriamente da carne, mas do contato de peles acetinadas, perfume de cabelos sedosos, toques de mãos delicadas, sabor de lábios e a hipnose do olhar, em meio àquelas sensações que me são tão caras.

Encontrava-me numa espécie de ambiente híbrido, uma grande e antiga loja, no Conjunto Nacional, mistura de salão de beleza, butique e sala de estar, onde uma quantidade imensa de amigas de Tharcilla - principalmente as que frequentavam sua galeria de arte naquele mesmo shopping - passava as manhãs de sábado em alegre bate-papo; uma espécie de clube da Luluzinha. Ali estava eu, aguardando Tharcilla no meio daquela multidão feminina, acomodado no canto de confortável sofá de couro marrom, fingindo ler Veja.

Fiz que não vi quando no sofá à frente uma potranca subiu a saia para mostrar sua nova coxa, absolutamente livre de celulite. Engoli em seco. Bem ao meu lado, uma loura de pele deslumbrante pressionava o traseiro em mim ao mover-se para falar com sua interlocutora. Lembrei-me de um dia, em Belém. Pegara um ônibus em São Brás com destino à Estação das Docas. Nem bem me acomodei no banco e uma ninfeta pediu licença e se sentou ao meu lado, e logo começou a pressionar sua coxa na minha, fitando-me e sorrindo. Entabulou conversa. Nem me lembro mais sobre o quê. Quando dei pela coisa ela estava com a mão na minha coxa. Antes de chegarmos à Praça da República, deu-me um inesquecível beijo na boca e desceu na Avenida Nazaré, deixando atrás de si um rastro de flores. Não fora essa a única vez que coisas desse tipo aconteciam sobre ninfetas. Exerço irresistível atração sobre elas. Meço um metro e oitenta em bem pesados oitenta quilos. Tenho rosto oval, queixo quadrado com uma covinha no meio, lábios de Marlon Brando, nariz clássico e cabelos leoninos, contudo o que mais as atrai são meus olhos; eles transmitem um toque filial, que desperta nas mulheres o instinto maternal e, nas ninfetas, a urgência da descoberta. Meu único defeito físico é a mão esquerda. Estive na guerra, cobrindo, para Veja, a invasão do Kwait, e fui atingido por fragmentos de obus na mão. Logo depois me vi prisioneiro das tropas de Saddam Hussein. Iam me julgar como espião e seria enforcado, segundo me informaram. Mas fora tudo um jogo de cena, porém com tempo suficiente para que a mão infeccionasse, com risco daquilo gangrenar e eu perder a mão. Quando me libertaram, o local em que se alojara um fragmento de ferro estava bastante feio. Fui examinado em um acampamento da Cruz Vermelha e um médico, um tipo afável, disse-me que havia minúsculos fragmentos de ferro no osso e que aquilo ainda me daria alguma dor de cabeça. Pois bem, o fato é que minha mão é marcada por grande cicatriz. Tharcilla diz que aquela é sua mão predileta, porque “é a mão do herói ferido”.

Encontrava-me imerso nesses pensamentos, fingindo ler Veja, quando percebi a presença de uma senhora e de uma menina, que devia ter uns catorze anos, mas bastante desenvolvida para a idade. Possuo faro para ninfetas. Não tenho escrúpulos de confessar: já passaram pela minha cama algumas dezenas delas. Não tenho escrúpulos porque sei que as fiz felizes. Todas elas me procuraram, me caçaram, se impuseram, me deixaram sem ânimo de escapar. E as fiz felizes porque a todas iniciei com muito desvelo e carinho. Toquei-as nas cordas mais sensíveis, e só mergulhei em seus sonhos dourados quando suas entranhas passaram por uma metamorfose instantânea e elas se fizeram mulheres inteiras, com os sonhos loucos das mulheres apaixonadas. E cada uma delas, cada mulher que me encanta, e cada vez que mergulho no mundo encantado dessas criaturas, sou dominado com a intensidade da primeira vez. E isso vale para Tharcilla.

Por isso é que minha experiência com ninfetas me autoriza a lhes saber a idade assim que as vejo; sei também o peso e a altura. Aquela que acabara de ver tinha por certo catorze anos. Estava no auge da maturidade das ninfetas de Wladimir Nabocov - entre nove e catorze anos. Devia pesar quarenta e oito quilos, no seu metro e sessenta e cinco de altura. Tinha olhos verdes, aquele verde escuro, úmido, saturado de clorofila. Assemelhava-se a um arbusto jovem, confiante, desafiante, rindo, de dentro de sua incauta juventude. Os cabelos eram um ninho de parasitas, com vida própria, enraizados sobre o crânio oval, encaracolando-se, avermelhados, sobre seus estreitos ombros e tapando, às vezes, com sua claridade ruiva, os olhos de clorofila. Como potra, ou unicórnio?, expulsava a crina meneando a cabeça. Acompanhei o caos dos cabelos até onde alcançavam as costas, desci por elas e estaquei o olhar cirúrgico na cintura, inacreditavelmente estreita, abaulando-se à medida que meus olhos, agora sem controle, acariciavam-lhe as nádegas, rijas, redondas, misteriosas. O delírio veio com um raio de sol que escapou de repente de uma clarabóia impossível, incidindo sobre os películos dourados na textura de pétala da sua pele. Acordei desse sonho momentâneo com o sorriso da ninfeta bem na minha frente, me encarando. Ficou séria, sempre me encarando. Seus lábios eram polpudos, entreabertos, deixando ver um filete de marfim. O transe hipnótico durou, talvez, um segundo eterno. Então, ela começou a examinar um biquíni e me olhava de soslaio, depois entrou na cabine com o biquíni na mão.

Sentada agora no braço da poltrona, perguntou se na revista havia suplemento infantil, como nos jornais, pois gostava dos contos e dos jogos.

E teu nome? Por Deus, não te roças em mim. Sim, estou aguardando minha mulher. E tu?

Ela sorria com o rosto bem próximo do meu, tão perto que sentia seu hálito de eucalipto. Não sei por quanto tempo namoramos daquele jeito, loucos, indiferentes a tudo o que nos cercava. Será que ninguém percebeu o que estava acontecendo? Acho que tudo se passou apenas na minha mente. O que é que pões na minha mão? Por que escolhes logo a mão esquerda, a mão do herói ferido? É a mão de Tharcilla. Está bem, verei o que diz o cartão quando sair daqui. Guardei-o no bolso do paletó.

Dei por mim no corredor. Minha mulher trançara seu braço ao meu, com aquele brilho de mulher feliz nos olhos, de mulher amada e que não teme desilusões. Amava-a com intensidade - em casa, nos hotéis, na casa de praia em Salinas, nos motéis das estradas, na galeria, e até uma vez num quarto perdido na mansão de um amigo meu numa festa de casamento. Meu coração estava marcado por Tharcilla.

Deixei-a na galeria e fui ao Snob para o primeiro trago daquele sábado primaveril. Sentia o sofrimento que as mulheres muito belas me causam, pois desejo engoli-las e ficar grávido delas, e assim sentir a intensidade da ligação umbilical. Pus a mão no bolso do paletó, tirei o cartão e o examinei discretamente. Era um cartão de visita da loja, no verso do qual se lia: “Unicórnio Azul”. Mantive-o na mão do herói ferido, enquanto degustava o primeiro Campare do dia.


Brasília, 18 de abril de 1991

Este conto foi publicado no livro O CASULO EXPOSTO, à venda na Livraria Leitura do Conjunto Nacional de Brasília

Pelo link: O CASULO EXPOSTO

Livreiros podem fazer pedidos ao editor pelo e-mail: atendimento@lereditora.com.br

Ou pelo telefone: (55-61) 3362-0008
Endereço da Ler Editora/Libri Editorial: SIG (Setor de Indústrias Gráficas), Quadra 3, Bloco B, Lote 49, Loja 59 – Brasília/DF - CEP 70610-430

Contato com Ray Cunha: raycunha@gmail.com

sábado, 13 de novembro de 2010

Poesia

Já estava ali quando o casal chegou. Havia poucas pessoas na cafeteria, no terceiro piso do Pátio Brasil. Eu acabara de comer torta de amêndoas acompanhada de café com leite, e voltara a ler um papo entre Guimarães Rosa e Günter W. Lorenz, travado em Gênova, em 1965, e publicado na Arte em Revista, do Centro de Estudos de Arte Contemporânea de São Paulo, em maio de 1979. É, garanto, um diálogo que todo candidato lusófono a escritor deveria ler. Bem, estava lendo a entrevista quando me choquei com o olhar da moça.

Seus olhos eram como dois poderosos ímãs azuis, entrecerrados por longas pestanas. Tinha a pele rosada e seus cabelos brilhavam como cobre. Os lábios estavam pintados discretamente, mas eram grandes, grossos, quase indecentes. Ela estava me olhando. Senti-me incomodado. Virei-me, para ver se a moça olhava para alguém atrás de mim. Nada.

O rapaz comia, concentrado na comida, e ele pedira muita coisa. A moça olhou rapidamente para ele e lançou novamente o agudo olhar na minha direção. Eu não compreendi. Estou, já, descendo o morro da vida, e sou, definitivamente, feio, nem me trajo com elegância, muito menos sou famoso. Novamente olhei em meu redor. Depois, procurei ver se havia alguma coisa errada comigo, alguma mancha na camisa, um rasgão na calça, sei lá, alguma coisa.

Não havia nada errado. A única coisa errada era aquela jovem, de beleza impossível, ali, a três metros de mim, me olhando fascinada. Eu deveria lhe parecer uma personagem de ficção, ou ela se apaixonara por um velhote e estava se lembrando dele, através de mim, sim, porque seu olhar era tão intenso que me atravessava e ia além de mim.

Senti-me hipnotizado e não podia sequer me mexer na cadeira. Deixara-me prisioneiro daquele olhar. O casal não trocou nenhuma palavra e não sei quanto tempo durou aquilo. Quando dei pela coisa o rapaz havia terminado seu espantoso prato, pagara a despesa e se levantaram. Que mulher! Antes de sumirem, rumo à escada, ela se voltou e me olhou uns três a quatro segundos.

Era quase sete horas da noite quando deixei o shopping. Ainda estava bastante claro. Atravessei o Setor Comercial Sul. Gosto de andar por ali. Depois mergulhei na Galeria dos Estados e saí no Setor Bancário Sul. Atravessei-o todo, também. Gosto de caminhar. Cruzei a Avenida L2 Sul e entrei por detrás da Nunciatura, saindo defronte à Embaixada de Portugal. O Café Camões já havia começado.


Brasília, 18 de novembro de 2008

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Obsessões amazônicas de Ray Cunha


MAURÍCIO MELO JÚNIOR
Escritor, crítico literário e jornalista
Apresentador do programa Leituras, da TV Senado

A literatura brasileira está numa encruzilhada. Cada autor atira para um lado e ninguém consegue formatar o que no passado se chamou de movimento. Mesmo em lugares onde se pratica uma literatura regional intensa - Pernambuco e Rio Grande do Sul, por exemplo - não há o senso de união. Isso, se por um lado favorece a diversidade temática, por outro, paradoxalmente, desagrega autores e enfraquece o trabalho de formação de leitores. Embora o ato de escrever seja um exercício de solidão, são a vivência e a convivência que dão ao escritor o estofo necessário para a composição do texto.

O escritor Ray Cunha, nascido na beirada da floresta amazônica, sofre do mal que vitimou parte de seus colegas a partir dos anos setenta: é um escritor desagregado, carente de grupos com quem possa discutir temas, estéticas e formas. Isso fica muito claro em seu livro Trópico Úmido - Três contos amazônicos (edição do autor, Brasília, 2000, 116 páginas), no qual, apesar de uma certa obsessão geográfica, sente-se a ausência da região em sua plenitude. O leitor mais exigente terminará a leitura carente do sotaque e das cores amazônicas, embora fique saciado com o desenvolvimento bem resolvido da trama.

O conto que abre o livro, Inferno Verde, conta a história do repórter Isaías Oliveira em duelo sangrento e perverso com o traficante Cara de Catarro. O segundo texto, Latitude Zero, fala de um grupo de jovens em descobertas sexuais em Macapá. Pode ser visto como um conto de formação, embora carregado do escancaro de Charles Bukowisk, o que é até compreensível em quem sobreviveu às teorias de Freud e à revolução sexual dos anos sessenta. Finalmente, o último conto do volume, A Grande Farra, conta a história de Reinaldo, um repórter que sonha ser escritor, mas, milionário, gasta a vida em bebedeiras e aventuras sexuais.

A linha que liga todos os textos, além da região amazônica, é mesmo a temática da sexualidade. No entanto, este sentimento está muito próximo das práticas vindas com a liberação sexual dos anos sessenta, unidas a um certo sadismo dos personagens. Num pobre exercício de paráfrase com os Atletas de Cristo, que trazem halos angelicais para os nossos atletas de futebol, podemos dizer que os personagens de Ray Cunha são Atletas de Sade. É impressionante a obsessão por um ato doloroso e imposto. Há sempre dominação do macho sobre a fêmea, mesmo quando ela, também filiada à revolução sexual, escolhe seu parceiro. Ainda assim prevalece a força do macho.

Esses personagens construídos pelo autor, por conta da defesa de uma geração perdida, terminam por carregar cores muito iguais. São todos hedonistas, amantes do prazer sobre todas as coisas. Por conta desse sentimento entram de cabeça na vida sem medir qualquer consequência. E fica clara aí a influência de Bukowisk, o velho safado, embora a sensualidade das ninfetas traga para os textos uma certa lembrança de Nabokovisk, o velho também safado, mas um pouco mais pudico. Sobrevive disso tudo um mundo excessivamente cruel, posto que o prazer é o que menos importa aos moços. Todas as relações têm como objeto a sujeição do parceiro.

O poeta Augusto dos Anjos falava em um de seus sonetos da “obsessão cromática”, do que chamava de fantástica visão do sangue se espalhando por toda parte. Ray Cunha trás para a literatura um pouco dessa obsessão, que faz a festa dos repórteres policiais. Há muitas cenas cruéis, com requintes de crueldade, dignos das páginas dos romancistas policiais americanos da década de cinquenta, um período no qual a fineza britânica de Conan Doyle foi substituída pela inspiração de Bram Stoker.

Finalmente, há obsessão geográfica. Para um livro passado na Amazônia isso é bem interessante. No entanto o autor poderia descrever mais e citar menos. Explica-se. É comum por todo o texto o nome de ruas onde moram, vivem e rodopiam os personagens. O problema é que a citação pura e simples do nome da rua simplesmente não remete a qualquer impacto sobre o leitor que não conhece as ruas. O autor poderia descrever as ruas, o que daria uma informação a mais ao leitor, situando-o até no ambiente por onde transitam os personagens.

Fica do livro, entretanto, a construção da história. Há pontos de prisão do leitor no jogo de curiosidades desvendadas aos poucos. O autor sabe manipular bem a trama, levando o leitor ao clímax. Com isso, resgata uma das maiores carências da literatura brasileira atual: o bom contador de história. É que os nossos novos escritores, buscando a universalidade linguística de Guimarães Rosa, esqueceram que ele sabia contar bem uma história. Resultado: renunciaram à narrativa e não ganharam a inventividade estética.

Ray Cunha consegue contar bem suas histórias. No entanto poderia ter trazido o mundo mais amazônico para suas páginas; poderia deixar um pouco as influências estrangeiras e seguir a trilha de autores como Benedicto Monteiro. Isso pode transformá-lo no grande representante da literatura amazônica moderna. Aquele que conseguirá traduzir boa linguagem com boa narrativa, e tudo temperado em um bom caldo de tucupi.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A Amazônia na espátula de Olivar Cunha

Escrevo estas linhas ao som de Luis Kalaff, o Rei do Merengue, e de Os Alegres Dominicanos. Merengue evoca a Amazônia Atlântica: o Pará, o Amapá, Belém, Macapá – na esquina do maior rio do planeta, o Amazonas, com a Linha Imaginária do Equador. Raimundo Peixe foi o pintor que mais influenciou, como mestre, as gerações de artistas plásticos de Macapá pós-1960, época em que surgiu Olivar Cunha.

Lili, como o rebatizou sua primogênita, Tatiana, e como o chamo na intimidade, é amapaense da gema. Em 1952, quando nosso pai, João Raimundo Cunha, chegou a Macapá, oriundo de Santarém (PA), plantou uma seringueira no quintal de casa, ao lado do Colégio Amapaense, esquina da Rua Iracema Carvão Nunes com a Rua Eliezer Levy. A seringueira está lá, na linha do muro que circunda o Colégio Amapaense, na Rua Eliezer Levy. Está presente também no romance A Casa Amarela (Ray Cunha, Editora Cejup, Belém, 2004, 158 páginas). Naquele ano, nascia Olivar Cunha, juntamente com a seringueira.

Em 1967, frequentávamos a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho, na Rua Mário Cruz, próximo ao Macapá Hotel, e bares da cidade, todos nós: R. Peixe; o poeta e cronista Alcy Araújo; Olivar Cunha; o poeta Rodrigues de Souza, o Galego; o pintor e poeta Manoel Bispo; o poeta e contista Joy Edson; o compositor, poeta e contista Fernando Canto, a poeta Alcinéa Cavalcante... Nessa época, com apenas 15 anos de idade, Olivar Cunha expôs sua primeira individual, na Associação Comercial de Macapá; desde então, jamais fez outra coisa na vida senão oficiar a missa da profissão a que estava destinado a ser fiel para sempre.

Suas telas estão espalhadas principalmente em Macapá, Brasília, Rio de Janeiro, Vitória, além da França... A crítica de arte e pintora Josélia Costandrade encantou-se com a técnica de Olivar Cunha ao utilizar tinta acrílica, de secagem quase instantânea, criando diretamente com espátula.

Olivar Cunha dá à luz a Amazônia eternamente viva, a Hileia que só os caboclos entendem - os apreciadores de merengue, de mapará assado na brasa servido com pirão de açaí, os que se emocionam com o trotar da mulher amazônida no calor equatorial, o mergulho no rio que deságua na tarde, os segredos que se encerram em Macapá, Belém, Mosqueiro, Salinas, Caiena...

Na sala de casa tenho uma tela do Lili, pungente. É, talvez, a do berro mais fovista, a do grito mais expressionista, um tuiuiú crucificado no esgoto, o Tuiuiú Crucificado. Ele a pintou em três meses, em 1992, em Serra, na grande Vitória, onde mora. É uma acrílica sobre tela, em espátula e pincel de 120 cm por 100 cm. Pertence à fase que o pintor chama de Habitat Transform, desenvolvida no Rio de Janeiro e em Vitória, após pesquisa sobre o Pará, o Amapá e o Pantanal, sobre a devastação da flora e fauna nessas regiões.

O tuiuiú é a ave-símbolo do Pantanal, e a maior ave voadora do Brasil. É conhecido também por jaburu, jabiru, tuiuguaçú, tuinim, tuim-de-papo-vermelho (Mato Grosso), cauauá (Amazônia), tuiuiú-coral e jaburu-moleque. A palavra “jaburu”, tupi-guarani, é uma alusão ao modo de andar da ave. O tuiuiú, ou jaburu, tem uma envergadura de aproximadamente 2,6 metros quando adulto, e atinge 1,15 metro de altura, bico de 30 centímetros e calda de 20 centímetros.

Agora, Olivar Cunha resolveu mostrar ao mundo seu trabalho, no blog: olivarcunhaarte.blogspot.com.

Que o mundo espiritual guie sempre tuas mãos de criador genial!

domingo, 7 de novembro de 2010

De tão azul, sangra

O sabiá da minha quadra começa sua armadilha de amor às 4h30. Levanto-me, com seu canto, às 5. Ligo o abajour do criado mudo, me visto, ponho um casaco e vou ao banheiro. Depois vou para a cozinha e preparo café Três Corações, gourmet. Bebo três xícaras de fumegante arábica com leite em pó, pãezinhos com manteiga ou doces. Faço minhas orações. São 6 horas. Os pássaros fazem algazarra na fria manhã de agosto.

Ao sair de casa dou de cara com nova rosa no jardim. É uma pequena rosa amarela, que se banha, sem prestar atenção a mim, ao sol redentor. Namoro-a. Ela continua seu banho, alheia ao mundo. As rosas são assim, só se importam com o sol. São indiferentes até aos beija-flores e às borboletas.

Contudo, Deus arrumou a manhã para mim, e as rosas, que se desnudam ao sol, estão na manhã, assim como as mangueiras, grávidas, e o ar prenhe de risos de crianças e tênue perfume das virgens ruivas, Chanel número 5 e mar.

Depois do trabalho, de volta à casa, paro no Big Bar, na 311 Sul, e peço uma Bohemia. Está enevoada. O rio da tarde murmura. A tarde se evola, se dilui. Os flocos negros da noite começam a cair. O sol se põe e os sons da tarde vão dando lugar à noite. Uma mulher passa na calçada. É uma linda mulher, que enobrece mais ainda os murmúrios do anoitecer.

Lembro-me, de repente, do Walmir Botelho, que me ensinou a transitar nas esquinas tumultuadas das redações dos jornais. O Walmir Botelho é diretor de redação de O Liberal, de Belém do Pará. Quando vou a Belém, tomo banho bebendo Cerpinha, vendo a cidade lá embaixo, da janela do hotel. Em Goiânia, bebo Brahma; no Rio de Janeiro, chopp da Brahma; em Manaus, Antarctica. Bebi durante 40 anos e deixei de beber para valer em 2008, mas uma vez ou outra bebo vinho ou Bohemia, ou Cerpinha.

Vou para casa. Em casa, olho para a pilha dos livros que estou lendo. O primeiro deles é Da Minha Janela – Crônicas da política brasileira (LGE Editora, Brasília, 2010), do jornalista André Gustavo Stumpf. Vou resenhá-lo. Também preciso ler História Desagradáveis, de Gladstone Machado de Menezes (LGE Editora, Brasília, 2010). Estou lendo em casa A Bíblia de Jerusalém, que me foi recomendada por Erwin Von-Rommel, autor de 100 Segredos (Zennex Publishing, São Paulo, 2003). À noite, na cama, leio A Verdade da Vida, volume 3 (Seicho-No-Ie do Brasil, 1962), de Masaharu Taniguchi. Quando vou para o trabalho, leio O livro dos espíritos (Instituto de Difusão Espírita, São Paulo, 1984), de Allan Kardec.

Coloquei ainda na pilha O Pequeno Príncipe (Agir, Rio de Janeiro, 1987), de Saint Exupéry. Li-o há muito tempo. Depois o li novamente, para minha filha, Iasmim, quando minha princesinha era um bebê. Lembro-me dos grandes olhos negros da Iasmim pousados nos meus enquanto lia o livro. Foi então que comecei a chamar para minha princesinha de “meu bem”. E também foi Exupéry que me despertou para as coisas que não vemos com os olhos físicos, mas apenas com o coração.

Ao chegar em casa, vejo que o carteiroo deixou dois pacotes. Abro-os. São livros. Um é para eu entregar para o Joy Edson (José Edson dos Santos); o outro é para mim. Trata-se de Adoradores do Sol – Novo textuário do meio do mundo (Scortecci, São Paulo, 2010), de Fernando Canto. Fernando Canto é o escritor que melhor representa Macapá, a cidade que fica na esquina do maior rio do mundo, o Amazonas, com a Linha Imaginária do Equador, no mundo das águas, a meio caminho do Caribe e da Hileia. Vou mergulhar no texto de Fernando Canto, pois estou há muito tempo em Brasília.

A noite lá fora é azul escuro, tão azul que sangra.

Brasília, 23 de agosto de 2010