quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Belém é ingovernável ou o prefeito Zenaldo Coutinho não deu conta do recado em oito anos?

O atual prefeito de Belém do Pará, Zenaldo Coutinho, então deputado federal pelo PSDB e aspirante a prefeito da Cidade das Mangueiras, me recebeu no seu gabinete no Anexo IV da Câmara dos Deputados na manhã de 14 de fevereiro de 2012, uma terça-feira, para entrevista, publicada no meu site (raycunha.com.br), em 26 de fevereiro de 2012, sob o título: “Belém precisa voltar a ser a capital da Amazônia”.

Com base nas declarações e promessas de Zenaldo Coutinho, agora que ele conclui oito anos à frente da Prefeitura da Metrópole da Amazônia, é possível responder à pergunta: Belém é ingovernável ou Zenaldo Coutinho não deu conta do recado? Tirem as suas conclusões. Segue o texto da entrevista.

Fundada em 12 de janeiro de 1616, Belém, a capital do estado do Pará, é a mais importante cidade da Amazônia. Um mergulho na história e na cultura da Amazônia Clássica, a análise da geografia do Trópico Úmido e um estudo geopolítico do Mundo das Águas confirmará isso.

À noite, lembra um óvni pairando sobre a baía de Guajará. O município, com 1.064,918 quilômetros quadrados, é integrado ainda por 38 ilhas habitadas, tem cerca de 1,5 milhão de habitantes (IBGE/2010) e sua região metropolitana já conta em torno de 2,1 milhões de habitantes. Os dois últimos prefeitos dessa cidade ensolarada foram desastrosos. Edmilson Rodrigues  (então petista e hoje deputado federal pelo Psol), 55 anos, foi prefeito de 1997 a 2004 (disputa o segundo turno, agora em 2020, contra o delegado Eguchi, da Polícia Federal). Só não foi pior do que a ex-governadora do Pará, a petista Ana Júlia Carepa, porque isso é impossível, mas foi substituído por um quase Ana Júlia Carepa: Duciomar Costa, 57 anos, do PTB, que esquenta (ou esfria) a poltrona de prefeito desde 2005. Hoje, a Metrópole da Amazônia é uma sombra do que foi. Por isso, a Cidade Morena precisa de um prefeito, talentoso, que a entenda.

Entre os vários pré-candidatos, um se destaca pelo seu preparo, não só sobre Belém, mas também sobre a chamada questão amazônica. Zenaldo Rodrigues Coutinho Júnior, 51 anos, jovem advogado no quarto mandato de deputado federal pelo PSDB, foi quem liderou o não à divisão do estado do Pará em três, e agora coleta assinaturas para a formação da Frente Parlamentar em Defesa da Amazônia. A Amazônia, diga-se, continua sendo vista, criminosamente, como celeiro e pulmão do mundo, e a massa da sua população, de 25 milhões de habitantes, é cada vez mais espoliada por uma elite que passa por cima da própria mãe para morder dinheiro.

A questão é: a energia elétrica gerada na Hileia e a produção mineral no Trópico Úmido precisa enriquecer também o amazônida, proibido até de abater jacaré, que dá no meio da canela, e come também canela. A grande imprensa vê uma Amazônia mitológica, por jornalistas descredenciados, em nível mundial, mas principalmente no Brasil, e, especialmente, em Brasília, a Ilha da Fantasia; e, pasmem, por desinteligência na própria Amazônia. Por isso é que a Amazônia precisa ser divulgada tal qual ela é, para que os amazônidas se livrem do pensamento de colonizado, a síndrome do vira-lata.

O principal problema de Belém seria rede de esgoto e de galerias de águas pluviais defasadas?

O principal problema de Belém é ausência de autoridade. Nós temos um conjunto de problemas que decorrem da falta de ação; muitas vezes, da absoluta inoperância da administração municipal, o que resulta em situações dramáticas. Belém é uma das capitais com menor índice de esgotamento sanitário do país, temos trânsito caótico, serviço de saúde ineficaz, insignificante, sistema educacional irrisório. Precisamos modernizar, aparelhar, equipar e ampliar a rede municipal de ensino fundamental, da mesma forma que temos que ampliar os serviços de saúde. As pessoas estão padecendo muito em Belém. Além da ausência de autoridade, há ainda falta de carinho para com a população. Belém precisa ser vista como extensão das casas de todos. Belém já foi a metrópole da Amazônia, e tem que voltar a sê-lo.

O senhor pensa Belém como um arquipélago?

Belém é a única capital-arquipélago do país, mas, nela, o transporte público fluvial é subutilizado. Implementar o transporte público fluvial já foi tentado, mas não logrou êxito. Creio que por não ser um serviço de excelência, com garantia de segurança e rapidez, como, por exemplo, a Rio-Niterói, com barcaças, catamarãs etc. É necessário que tenhamos um olhar sobre Belém de modo a não vê-la apenas como continente, mas uma cidade que tem 38 ilhas povoadas e onde há pessoas, portanto, com necessidade de transporte. Obviamente esse não é o grande nó do trânsito belenense, mas, resolvido, ajudará a desafogar o trânsito. Icoaraci, por exemplo, pode abrigar um porto rodo-fluvial.

Belém é historicamente a cidade mais importante da Amazônia, mas seu patrimônio arquitetônico está se deteriorando.

Isso é gravíssimo, e se soma ao desleixo, falta de carinho, de atenção da autoridade para com tudo aquilo que é de todos. Repito: a cidade tem que ser vista como nossa casa. Jogamos lixo no chão da nossa casa? A cidade precisa do sentimento coletivo de respeito, de carinho.

Belém é a Cidade das Mangueiras; seu subúrbio o é também?

Antônio Lemos (prefeito de Belém, no fim do século XIV e início do século XX) foi o responsável pela plantação das mangueiras, que é uma árvore exótica na Amazônia, originária da Índia. Particularmente, defendo os corredores de mangueiras, mas também uma variação da nossa arborização, as essências amazônicas, estendidas também para os bairros periféricos de Belém, que precisa, como um todo, de mais arborização e jardinagem.

E as portas para o rio?

O turismo em Belém é incipiente. Precisamos de uma ação muito forte voltada para o turismo. Temos muito mais opções do que Manaus. Em Belém, além da floresta e da história, temos praias de rio e de mar, e Marajó, pertinho. Temos que estar antenados com a questão turística.

Que nota o senhor dá para os 7 anos da atual administração municipal?

Eu prefiro aguardar a nota que a população vai dar em outubro.

Caso o senhor seja efetivado como candidato e se eleja prefeito qual será sua linha de atuação?

Já estou trabalhando em um projeto, ousado, moderno, corajoso, por uma Belém que faça justiça à comemoração dos seus 400 anos, o que ocorrerá na próxima administração.

Falta financiamento para a reforma estrutural de Belém?

Financiamento se consegue; o que falta é estabelecer prioridades. Agora mesmo há um embate, desnecessário, da prefeitura com o governo do estado, que, há 20 anos, desenvolve um projeto, com os japoneses, com visão metropolitana, porque ele leva o ônibus expresso de Marituba até o centro de Belém, com investimento de US$ 320 milhões, já garantidos, assegurados, assinados, e a prefeitura tem um outro projeto, de Icoaraci até São Brás. Pretende-se que a prefeitura chegue até só o Entroncamento, para que não haja sobreposição de projetos, até porque os japoneses só financiam se houver apenas um executor da obra. Essas ações de integração são fundamentais, daí porque é importante a harmonia entre a prefeitura e o governo do estado, pois o administrador público não deve ficar isolado, o que inclui um diálogo eficiente com todos os mecanismos de financiamento.

O senhor liderou a campanha pela não divisão do Pará. Por quê?

Em defesa do nosso estado, da população. Durante muitos anos, aqui no Congresso, briguei para que houvesse estudos que antecedessem a consulta popular, sobre os impactos sociais, econômicos, tributários, ambientais, que analisassem as consequências na vida das pessoas em cada região a respeito de uma possível divisão. Infelizmente, foi um discurso para surdos. No caso de Belém, todos os estudos preliminares que havia, incluindo o da Universidade Federal do Pará, apontavam para o empobrecimento das três regiões. Teríamos implemento de despesas sem implemento de receitas. Teríamos que dividir o pouco que o estado do Pará já recebe, e teríamos o ônus de ter três assembleias legislativas, três palácios de governo, ou seja, teríamos uma elite usufruindo das estruturas de poder e uma população empobrecida e sem políticas públicas. Isso ensejou a nossa participação ativa, aqui no Congresso, e, posteriormente, na campanha pelo não no plebiscito. Graças a Deus, dois terços da população disseram não à divisão do Pará.

Que avaliação o senhor faz do governo Dilma Rousseff?

A presidente Dilma tem acertado em adotar uma série de modelos que nós, do PSDB, legamos, como a questão da privatização. Os petistas transformaram em demônio a questão das privatizações, mas agora o próprio governo federal, através da presidente Dilma, reconhece que se trata de um modelo que dá mais eficácia na gestão dos serviços públicos, se o modelo for aplicado de maneira adequada, como o foi na telefonia, quando nós o aplicamos. Eu me lembro que antes que o PSDB privatizasse a telefonia, telefone era tão caro que era declarado no Imposto de Renda. Hoje em dia, todos os brasileiros que quiserem têm acesso a telefone, graças à privatização. Também o Brasil se mantém equilibrado, mesmo com a crise internacional, graças aos fundamentos da macroeconomia brasileira deixados pelo governo do PSDB, como é o caso da Responsabilidade Fiscal, que foi um item extremamente criticado pelo PT, na época em que nós o adotamos, e hoje é modelo até na Europa, no combate à crise europeia. Ainda, o governo petista mantém o Plano Real, o maior instrumento de justiça social estabelecido no país. Mas, apesar de pouco mais de um ano de governo, sete ministros caíram flagrados em corrupção, o que é muito grave. E precisamos agilizar as obras nacionais, que estão muito vagarosas, especialmente as do chamado PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que estão empacadas. Temos que agilizar isso. Nós, da oposição, estamos fiscalizando para que as coisas efetivamente aconteçam.

Se o PT lê a cartilha do PSDB, por que os tucanos não conseguem voltar para ao Palácio do Planalto?

Porque existe transição democrática. Nós passamos oito anos no poder e o PT está caminhando para os doze anos, mas em muitos estados, de norte a sul, o PSDB está no poder. A democracia é, portanto, um processo natural, legítimo. Mas os partidos têm que viver, sempre, na busca da realização dos seus projetos, buscando eficiência, eficácia para melhorar a qualidade de vida da população, o que quer dizer que o projeto de poder não é um projeto de poder pelo poder, e também não quer dizer que se o partido não está naquele momento no poder ele está liquidado. Nós podemos exercer o poder no governo e na oposição. Aquele que está no governo exerce o poder do fazer e o que está na oposição exerce o poder político da pressão, do monitoramento, da fiscalização, da cobrança, para que os projetos públicos aconteçam. Nenhuma dessas duas posições é inadequada. A democracia só persiste porque existem essas posições diferentes. O importante é que o PSDB tem lutado a favor do Brasil, e continuaremos a nossa caminhada. Temos já o nosso pré-candidato a presidente da República, Aécio Neves, que foi grande governador de Minas Gerais e é senador respeitado. Estamos construindo um diálogo com a população para voltar à presidência da República.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O estado do Amapá ferve no ventre das trevas

Tromba dágua em Macapá (Foto de Caio Gato - 2014)

BRASÍLIA, 9 DE NOVEMBRO DE 2020 – Há 7 dias que os amapaenses sobrevivem no umbral, com apagão, falta de água, vírus chinês e protestando nas ruas ateando fogo em pneus. O sistema de geração e transmissão de energia elétrica do estado, de responsabilidade da Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), está um caco. Terça-feira 3, uma das três subestações que atendem o estado foi atingida por um raio e pegou fogo. Cerca de 90% da população, o equivalente a mais de 700 mil pessoas, ficaram sem energia elétrica, e, daí, foi um passo para a falta de água encanada. De lá para cá, muito alimento apodreceu e muito empresário, já baleado com o vírus chinês, perdeu o resto que ainda tinha. 

Mas sempre faltou energia elétrica e água encanada no Amapá; a diferença de agora é que a estrutura de geração e transmissão de eletricidade não suportou os remendos e estratégias para enfrentar acidentes não havia. 

A energia elétrica vem do Linhão de Tucuruí e da Usina Hidrelétrica de Coaracy Nunes, ou do Paredão, no município de Porto Grande, a 102 quilômetros de Macapá, a capital. O senador Randolfe Rodrigues (Rede/AP) está enfezado mas é com abstenções nas eleições municipais e seu partido já pediu no Ministério Público Eleitoral e no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) o adiamento do pleito. Mas sexta-feira 6, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) afirmou que as urnas eletrônicas têm autonomia para funcionarem até mesmo sem energia elétrica e já encaminhou mais 1,2 mil baterias novas para assegurar as eleições no estado, domingo 15. A votação ocorrerá das 7 às 17 horas. 

O Amapá fica no setentrião da Amazônia Azul, no rumo do Caribe. Com 142.828 quilômetros quadrados, é o décimo oitavo maior estado do Brasil. Foi desmembrado do Pará em 1943, com a criação do Território Federal do Amapá. Em 1988, a Constituinte o elevou a estado. Com mais de 800 mil habitantes, é potencialmente rico, mas com população pobre: é o décimo quinto PIB per capita do país. Em 2010, apresentou a terceira maior taxa de mortalidade infantil entre os estados brasileiros. 

Os governadores eleitos que se sucederam no Amapá fizeram apenas obras cosméticas e não deixaram nenhuma estrutura de desenvolvimento estratégico. Os prefeitos de Macapá também. 

Por exemplo: na capital do Amapá há edifício de 20 andares, mas não há esgotamento sanitário, muito menos estação de tratamento de esgoto; blecautes são comuns na capital tucuju e muitas das localidades do estado não conta com energia firme; o Amapá tem o maior potencial piscoso do planeta, mas sua universidade federal não oferece curso de oceanografia, muito menos de engenharia naval, ou de pesca; a BR-156, rodovia federal que corta longitudinalmente o estado e que liga Macapá à Caiena vem sendo construída há mais de 80 anos. Começou a ser pensada em 1932. Até 1945, somente nove quilômetros foram construídos. No inverno amazônico, a parte inacabada da rodovia se transforma em atoleiro; no verão, em um inferno de poeira. 

Em Santana, na Zona Metropolitana de Macapá, fica o mais estratégico porto brasileiro, construído inicialmente para embarcar manganês de Serra do Navio/AP para os Estados Unidos. Atualmente, pertence ao município de Santana. Sua profundidade é adequada a qualquer cargueiro transoceânico e é o porto brasileiro mais próximo, simultaneamente, dos mercados dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia via Canal do Panamá. Pode receber todas as commodities da Amazônia por hidrovias. Devia ser federalizado. Também as commodities destinadas à América Central podem ser armazenadas em Santana e de lá seguirem pela BR-156 até Caiena e de lá para toda a América Central. 

A BR-156 começa no município de Laranjal do Jari, vai até a capital do estado, Macapá, e termina no município de Oiapoque, no extremo norte. São 595 quilômetros entre Macapá e Oiapoque, e 369 quilômetros entre Macapá e Laranjal do Jari, totalizando 964 quilômetros. O município de Oiapoque, no norte do Amapá, é separado da Guiana Francesa pelo rio Oiapoque. Em 2008, começaram a construir uma ponte binacional, que ficou pronta em 2011, mas não foi inaugurada porque a BR-156 não estava pronta; tornou-se um enfeite até 20 de março de 2017, quando finalmente foi inaugurada, pois a BR-156, mesmo inacabada, constitui-se na única via de exportação utilizada por caminhoneiros. Também muitos turistas utilizam a rodovia, mesmo com os perigos que ela apresenta, pois, para muitos brasileiros, principalmente da Amazônia, Caiena é a porta da Europa. 

Quanto à França, concluiu desde 2011 toda a estrutura viária e aduaneira do lado de lá, incluindo a rodovia de 200 quilômetros entre Saint Georges de l’Oyapock a Caiene, capital da Guiana Francesa, e esta à América Central, com aquele asfalto caprichado visto nos Estados Unidos e Europa, e não o asfalto infame do Brasil. 

A outra rodovia federal no Amapá, a BR-210, ou Perimetral Norte, apesar de estratégica, porque ligará Macapá ao resto do país por estrada, é apenas um embrião, com pouco mais que 471 quilômetros. Começa em Macapá e empacou em Serra do Navio. 

O Amapá tem potencial econômico fabuloso, como todos os estados da Amazônia, mas a roubalheira desenfreada; o tráfico de drogas, mulheres e crianças; a mentalidade de colonizado do amazônida, tornam a região refém de mazelas crônicas. 

Quanto a Macapá, tem dois marcos de grandeza planetária: a Linha Imaginária do Equador, que secciona a cidade, e o Canal do Norte do rio Amazonas, que a banha na margem esquerda. Enquanto o Equador é só uma linha imaginária, o rio Amazonas é a substância da cidade. Com descarga hídrica tão gigantesca que reduz a salinidade superficial do mar, pois despeja, em média, 180 mil metros cúbicos de água por segundo no Atlântico, dos quais 65% via Canal do Norte – 16% da água doce vazada para os oceanos do mundo. Assim, o rio invade o mar com 8,6 baías de Guanabara e espantosos 3 milhões de toneladas de sedimento a cada 24 horas, ou 1,095 bilhão de toneladas por ano. O resultado disso é que a costa do Amapá continua crescendo e é a mais rica do mundo em vidas do mar, embora sejam a mais mal guardada pela Marinha de Guerra, menos estudada pela academia e a mais disputada pela pirataria global. 

A boca do Canal do Norte, escancarando-se do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede em torno de 240 quilômetros, e penetra cerca de 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias, e, juntamente com outros gigantes do Pará e Amapá, e extensos manguezais, contribui para que a Amazônia Azul setentrional seja a costa mais rica do planeta em todo tipo de criaturas marinhas. 

Mas Macapá, com mais de 500 mil habitantes, a terceira maior aglomeração urbana da Amazônia, com 60% da população do estado, não tem um metro de esgoto. Sua salvação é que dista 8 horas de navio, ou 16 horas de barco, ou 40 minutos de 447, de Belém, a cidade mais importante do Trópico Úmido. 

Para quem chega de Belém por barco, Macapá é uma miragem que vai se materializando na medida em que o sol, posicionado como gigantesca bola de ouro do outro lado do Canal do Norte, na cabeceira da Linha Imaginária do Equador, começa a se levantar, e, de repente, como mulher que emerge do mergulho, respingando água, mostra-se toda nua. À beira-rio, e no início da BR-156, sente-se o tumor latejando; a população avança natureza adentro. 

Macapá é uma cidade ribeirinha emblemática. Seu nome vem do tupi macapaba, lugar de muitas bacabeiras, palmeira nativa da região, de fruto, a bacaba, gerador de suco delicioso, quase tanto quanto açaí, este, de grande significado para os amapaenses, que já foram paraenses, já que o Amapá é um naco da antiga Província do Grão-Pará, e os parauaras são os mais ávidos tomadores de açaí da face da Terra. 

Assaltados pela sede mais desmedida de ambição, os espanhóis, que instalaram no continente ibero-americano uma aristocracia escravocrata e medieval, que os portugueses potencializaram até a loucura, sondaram o setentrião da Amazônia Azul antes de Pedro Álvares Cabral, de modo que em 1544, Carlos V de Espanha sentiu-se à vontade para chamar aquelas paragens de Adelantado de Nueva Andaluzia, ao conceder a província ao navegador espanhol Francisco de Orellana, que, cego pela ambição, vagou pela Amazônia em busca da cidade de ouro, El Dorado, mas, como seus colegas, foi vencido pelo Inferno Verde. 

Em 1738, colonos portugueses instalaram, ali, um destacamento militar, a Praça São Sebastião, atual Veiga Cabral, onde, em 4 de fevereiro de 1758, foi levantado o Pelourinho, um dos símbolos do implacável poder lusitano, na presença do capitão-general do Estado do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, fundando-se a Vila de São José de Macapá e selando-se o fim da nação que dominava aquela beirada de rio, o povo tucuju, do tupi tucumã, também palmeira natural da Amazônia, de frutos doces e oleosos, matéria-prima para vinho, licor e mingau. 

Enquanto os tucujus se tornaram símbolo de um tempo antigo, espanhóis e portugueses legaram os tempos heroicos, e persistentes, de colonos e colonizados, o drama que perpassa a Ibero-América, a tragédia da Amazônia. Em 1764, Portugal deu uma demonstração do seu poderio na Amazônia, iniciando a construção de projeto do engenheiro italiano Henrique Antônio Gallúcio, a Fortaleza de São José de Macapá, concluída 18 anos depois, no ano de 1782. 

A construção da Fortaleza de São José de Macapá por meio do trabalho escravo de negros e índios foi o cadinho em que se forjou a etnia macapaense. Os portugueses cruzaram com os africanos e geraram mulatos, e fornicaram com os índios, formando uma população de mamelucos; os africanos fundaram o bairro do Laguinho, misturaram-se com os índios e legaram cafuzos; e mulatos, cafuzos e mamelucos misturaram-se, fechando o círculo, numa diversidade étnica viva nas ruas de Macapá, nas nuanças de peles que vão do alabastro ao ébano, passando pelo bronze e jambo maduro, e todos unidos pelo sotaque caboco, a fusão do português falado em Lisboa, doces palavras tupis, línguas africanas, patoá das Guianas, tudo triturado em corruptela, isso e a seminudez dos habitantes do Trópico Úmido, que, antes de ser sensual é inocente, como o olhar da mulher amazônida, espilantol se espalhando nas papilas gustativas da alma, o embalar de rede no rio da tarde, o choro dos jasmineiros noturnos.

Ao olhar superficial do leigo, que acidentalmente caiu na Amazônia, a Hileia lhe parecerá o Inferno Verde, onde encurtará sua vida, devorado por microrganismos e insetos, ou torrado pelo sol equatorial, ou afogado pela água, não do Mar Doce, mas em estado gasoso, nos 100% da umidade relativa do ar. Assim, o incauto será corrido daquelas paragens, grávido da antiga ideia dos colonos, de que a Amazônia só serve para três fins: construção de hidrelétricas; extração de madeira e mineral; e reserva de caça, pesca e escravos, especialmente para o pugilato do sexo, além da crença de que os rios são esgotos naturais. Esse pensamento assenta-se na crença de que os colonos são deuses e os colonizados, seres inferiores, que existem para servir aos sangues-azuis, razão pela qual Macapá ferve nas trevas.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Foi criado o estupro culposo. E se começaram a pipocar estupros culposos contra a Constituição e a burra, como se comportará o Supremo?

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 4 DE NOVEMBRO DE 2020 – No dia 15 de dezembro de 2018, em Florianópolis/SC,  o empresário de marketing esportivo André de Camargo Aranha, 41 anos, estuprou a blogueira Mariana Ferrer, 21 anos, no luxuoso no Café de La Musique, onde ela trabalhava. Ela o denunciou. Foi coletado esperma dele, nela, e sangue dela, porque era virgem. Embora as imagens das 37 câmeras do estabelecimento tenham sumido, apareceram gravações na escadaria utilizada pelo acusado e pela vítima, dirigindo-se para um camarim privado, onde a estuprou. 

Terminado o serviço, o estuprador e as amigas da vítima, que a acompanhavam no local, abandonaram Mariana e foram jantar com o estuprador. 

O cartão de consumo de Mariana e filmagens feitas com seu telefone mostram que naquele dia ela tomou somente uma dose de gin com água. No entanto ela acha que foi drogada. Segundo ela, sentia-se entorpecida, totalmente vulnerável durante o estupro. Ao recobrar-se, Mariana enviou mensagens às amigas que a acompanhavam suplicando ajuda, mas ninguém a atendeu. 

Indiciado pela Polícia Civil por estupro de vulnerável, André foi absolvido por falta de provas, pelo juiz Rudson Marcos, da Terceira Vara Criminal de Florianópolis, depois de uma audiência na qual Mariana foi humilhada e agredida moralmente. 

O processo sofreu mudança de delegados, de promotores, atendimentos fora do protocolo e uma sentença que deixou até o diabo de queixo caído. O caso corria em segredo de Justiça. Mas acabou vindo à tona. O vídeo da audiência foirevelado pelo site The Intercept Brasil. Nele, o advogado de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, um dos mais caros de Florianópolis, humilha a vítima o tempo todo, mostrando fotos sensuais de quando Mariana era modelo profissional. O advogado definiu as fotos que exibia como “ginecológicas”, comentando, ao exibi-las, que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana, que, em dado monto, começou a chorar, ao que Cláudio Gastão da Rosa Filho diz: 

– Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lábia de crocodilo... Teu showzinho você vai no seu Instagram dar depois. É seu ganha pão a desgraça dos outros, fala a verdade! 

O advogado afirmou ainda que Mariana arquitetou o estupro para ganhar seguidores nas redes sociais. 

Quanto a Aranha, mentiu durante o processo. Em maio de 2019, afirmou que não teve contato com Mariana Ferrer, mas em 2020 disse que fez sexo oral na vítima. Disse ainda que a promotora de eventos pediu para ir ao banheiro (na companhia dele?), seguindo com ela para o local onde ele teria feito sexo oral nela, e, por decisão dele, teriam deixado o local juntos. Finalmente acusou a vítima de incriminá-lo por motivações financeiras. Já seu advogado sustentou simplesmente que ele não estuprou Mariana, embora o inquérito policial conclua que Aranha cometeu estupro de vulnerável, que é quando a vítima não tem condições de oferecer resistência. 

O primeiro promotor do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC), responsável pelo caso, foi Alexandre Piazza, que, em julho de 2019, denunciou André de Camargo Aranha por estupro de vulnerável e pediu sua prisão preventiva, aceito pela Justiça, mas a defesa derrubou a medida com uma liminar. Piazza foi afastado do caso e quem assumiu foi Thiago Carriço de Oliveira, que trouxe a tese de “estupro sem intenção”, baseado nos exames toxicológicos, que não mostram álcool ou drogas no sangue de Mariana Ferrer. 

Em nota, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho disse o seguinte: 

“Não podemos falar muito em respeito ao sigilo do processo, mas gostaria de esclarecer alguns pontos importantes sobre a matéria publicada pelo The Intercept, que gerou uma onda massiva de comentários equivocados sobre o caso. 

“O magistrado considerou André de Camargo Aranha inocente da acusação de estupro, acatando a alegação final do Ministério Público e a tese da defesa para que fosse julgada improcedente a denúncia contra André Aranha. Ou seja, os fatos foram completamente esclarecidos após investigação policial e nos autos processuais, os quais constataram que houve uma relação consensual entre duas pessoas e foi atestado que ambos estavam com a sua capacidade cognitiva em perfeito estado, conforme atestam os laudos e confirmam os peritos. É importante ressaltar que o termo utilizado na matéria “estupro culposo” não é uma terminologia jurídica existente, e em nenhum momento foi utilizado pelo magistrado. 

“O caso foi tratado com a devida legitimidade pelo Ministério Público e prestamos esse esclarecimento visando o combate à desinformação que informações mal interpretadas, descontextualizadas e equivocadas, podem gerar”. 

Íntegra da nota divulgada pelo Ministério Público de Santa Catarina: 

“MPSC reafirma que réu foi absolvido por falta de provas por estupro de vulnerável 

“Não é verdadeira a informação de que o promotor de Justiça manifestou-se pela absolvição de réu por ter cometido estupro culposo, tipo penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Salienta-se, ainda, que o promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo. 

“A 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado. 

“Cabe ao Ministério Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais, requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso, a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime. 

“Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de estupro culposo, até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável. 

“O Ministério Público também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes. 

“Salienta-se, ainda, que o promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo. 

“O MPSC lamenta a difusão de informações equivocadas, com erros jurídicos graves, que induzem a sociedade a acreditar que em algum momento fosse possível defender a inocência de um réu com base num tipo penal inexistente”. 

Em suas alegações finais, a acusação se manifestou pela absolvição do acusado, “por falta de provas”. Quanto ao juiz: “Portanto, como as provas acerca da autoria delitiva são conflitantes em si, não há como impor ao acusado a responsabilidade penal, pois, repetindo um antigo dito liberal, “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”. A absolvição, portanto, é a decisão mais acertada no caso em análise, em respeito ao princípio na dúvida, em favor do réu (in dubio pro reo), com base no art. 386, VII, do Código de Processo Penal”. 

Vamos supor que Mariana tenha planejado tudo. Mas será que uma jovem entregaria seu hímen, símbolo talvez mais profundo do romantismo de uma mulher, a um homem? E por que para Aranha? Será ele tão charmoso para atrair uma jovem a um plano tão maquiavélico, que, no mínimo, exigiria experiência e sangue frio? 

Quanto a Aranha, não pesou as consequências? Ou a certeza de impunidade não entrou nesse jogo diabólico? 

Qual dos dois tem razão? 

Aranha foi absolvido e está batendo perna por aí. Isso estimulará a crimes culposos, inconscientes, contra a Constituição e a burra? O Supremo absolverá estupradores culposos da Constituição, ladrões da burra, barões do tráfico, traidores da pátria?

Tenho a impressão de que esse caso não termina aqui.