terça-feira, 19 de maio de 2015

O rio da minha cidade

Tromba d'água em Macapá, cidade localizada à margem do rio
Amazonas, na Amazônia Caribenha (flagrante de Caio Gato)

Em junho de 2007, uma expedição integrada por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), da Agência Nacional de Águas (ANA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto Geográfico Militar do Peru, determinou o local exato da nascente do rio Amazonas, localizada no rio Apurimac, na cordilheira dos Andes, ao sul do Peru. Desde o início da década de 1990, uma equipe do Inpe, chefiada pelo geólogo Paulo Roberto Martini, da Divisão de Sensoriamento Remoto, estudava os rios Amazonas e Nilo, na África, por meio de sensoriamento remoto e geoprocessamento, tecnologias utilizadas no Programa Espacial Brasileiro, além de imagens dos satélites Landsat, da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, calculando, assim, minuciosamente, a extensão de ambos os rios, da nascente à foz; em julho de 2008, bateu o martelo: o Amazonas configurava-se como o maior rio do planeta.

Conforme o Atlas Geográfico Mundial, o Amazonas media 6.515 quilômetros. Com a nova medição, passou a ter 6 992,06, portanto 139,91 quilômetros mais longo do que o Nilo, que, também segundo o Atlas Geográfico Mundial, media 6.695 quilômetros, nascendo no rio Kagera, próximo à fronteira entre o Burundi e Ruanda, e correndo até o mar Mediterrâneo. A nova medição dele o amplia para 6.852,15 quilômetros. Em maio de 2008, o vice-presidente da Sociedade Geográfica de Lima, professor Zaniel Novoa, após 12 anos de investigação, confirmava a versão do explorador polonês Jacek Palkiewicz, que, em 1996, localizou a nascente do Amazonas e afirmou que o rio sul-americano era mesmo o maior do mundo. Desde que o Amazonas foi batizado, em 1500, foram identificadas nascentes em vários pontos do Peru, até a atual, a 5.179 metros de altitude, próximo ao monte Quehuisha, na região sul de Arequipa, no Peru, e não nas cabeceiras do rio Marañon, como se pensava.

Paulo Roberto Martini comentou que as medições anteriores foram feitas sem o uso de metodologias científicas: “Esse resultado mostra que, às vezes, as verdades mais bem estabelecidas têm de ser revistas porque podem simplesmente não ser verdade. Pelo menos desta vez não temos “acho”. Temos metodologia científica e, por essa leitura, por essa interpretação, você pode colocar nos livros que o Amazonas é maior do que o Nilo”. Numa coisa ele tinha razão. Em 2009, surgiu uma novidade: estudos mostravam que a nascente do Nilo apontava para o rio Rukarara, o que dava ao gigante africano o comprimento de 7.088 quilômetros, 95,94 quilômetros maior do que o Amazonas.

Mesmo assim, o Amazonas é mesmo o maior rio do mundo. Senão vejamos. A bacia amazônica é um oceano doce, um realismo fantástico, uma fronteira misteriosa, pouco conhecida e desprezada pelos governos federais e, pasme-se, pelos próprios governos da Amazônia Clássica, apesar de se constituir na mais espantosa província biológica e mineral do planeta. Em 1500, o navegador espanhol Vicente Yañez Pizón batizou-o de Río Santa María del Mar Dulce; 42 anos depois, o também espanhol Francisco Orellana mudou-o para Amazonas. O colosso marrom, que no estado do Amazonas recebe o nome de Solimões e nos estados do Pará e Amapá, de Amazonas, tem mais de mil afluentes, constituindo-se na espinha dorsal da maior bacia hidrográfica da Terra, formada por 7 mil rios, 25 mil quilômetros navegáveis, abrangendo uma área, segundo a Agência Nacional de Águas, de 6,110 milhões de quilômetros quadrados, 40% da América do Sul, banhando Peru (17%), Equador (2,2%), Bolívia (11%), Brasil (63%), Colômbia (5,8%), Venezuela (0,7%) e Guiana (0,2%).

Da nascente até 1.900 quilômetros, o Amazonas desce 5.119 metros; desse ponto até o Atlântico, a queda é de apenas 60 metros. Suas águas correm a uma velocidade média de 2,5 quilômetros por hora, chegando a 8 quilômetros, em Óbidos, cidade paraense a mil quilômetros do mar e ponto da garganta mais estreita do Amazonas, com 1,8 quilômetro de largura e 50 metros de profundidade. Fora do estuário, a parte mais larga situa-se próximo à boca do rio Xingu, à margem direita, no Pará, com 20 quilômetros de largura, mas nas grandes cheias chega a mais de 50 quilômetros de largo, quando as águas sobem ao nível de até 16 metros. O Amazonas é navegável por navios de alto-mar da embocadura à cidade de Iquitos, no Peru, ao longo de 3.700 quilômetros. Seu talvegue, nesse curso, é sempre superior a 20 metros, e chega a meio quilômetro de profundidade próximo à foz.

Segundo Admilson Moreira Torres, do Centro de Pesquisas Aquáticas do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa), e Maâmar El-Robrini, do Grupo de Estudos Marinhos e Costeiros (GEMC), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); do Laboratório de Modelagem de Oceano e Estuários Amazônicos (Modelaz); e do Centro de Geociências da Universidade Federal do Pará (UFPa), a descarga hídrica do rio Amazonas é tão gigantesca que reduz a salinidade superficial do mar no oceano Atlântico tropical. A descarga média é de 180 mil metros cúbicos de água por segundo, um quinto, ou 16% da água doce despejada nos oceanos do mundo. Em maio, sobe para 220 mil metros cúbicos por segundo e, em novembro, cai para 100 mil metros cúbicos por segundo; 65% do fluxo vaza pelo Canal do Norte, que despeja até 160 mil metros cúbicos de água por segundo. Trata-se do único rio no planeta a apresentar estuário e delta. Com cerca de 60 vezes mais vazão do que o Nilo, calcula-se que o tributo do Amazonas ao mar é suficiente para encher 8,6 baías de Guanabara em um dia.

Assim, o rio fertiliza o mar com sua água túrbida de húmus, além de espantosos 3 milhões de toneladas de sedimento, por dia, 1,095 bilhão de toneladas por ano. O resultado disso é que a costa do Amapá está crescendo. A boca do rio, escancarando-se do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede em torno de 240 quilômetros, e sua água túrgida penetra cerca de 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias, e, juntamente com outros gigantes do Pará e Amapá, contribui para que a Amazônia Azul setentrional seja a costa mais rica do planeta em todo tipo de criatura do mar, especialmente a costa amapaense, pois o húmus despejado pelo Mar Doce no Atlântico torna-a uma explosão de vida, no Brasil mais mal guardado pela Marinha de Guerra e menos estudado pela academia.

Calcula-se que o tributo que o Amazonas oferece ao mar é suficiente para encher 8,6 baías de Guanabara em um dia. Assim, o rio fertiliza o mar com sua água túrbida de húmus, além de espantosos 3 milhões de toneladas de sedimento, por dia, 1,095 bilhão de toneladas por ano. O resultado disso é que a costa do Amapá está crescendo. A boca do rio, escancarando-se do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede em torno de 240 quilômetros, e sua água túrgida penetra cerca de 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias, e, juntamente com outros gigantes do Pará e Amapá, contribui para que a Amazônia Azul setentrional seja a costa mais rica do planeta em todo tipo de criatura do mar, especialmente a costa amapaense, pois o húmus despejado pelo Mar Doce no Atlântico torna-a uma explosão de vida, no Brasil mais mal guardado pela Marinha de Guerra e menos estudado pela academia.

Se mais de um terço de todas as espécies do planeta vive na Hileia, a bacia é berço de mais de 2.100 espécies de peixes, 900 a mais do que as dos rios da Europa. Só a bacia do rio Negro, afluente da margem esquerda do Amazonas, contém mais água doce do que a Europa. Somando-se às 1.200 espécies do Atlântico Norte, a Amazônia é um santuário de 3.300 espécies. “O que me intriga, não apenas no conteúdo da educação fundamental brasileira, mas também na base de informações científicas e acadêmicas no Brasil, é a pobreza de informações ambientais e biológicas sobre essa região, batizada de Mar Dulce pelo navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón, em 1500, mesmo ano em que Cabral achava o Brasil” – comenta o oceanógrafo Frederico Brandini. Ele lembra que, no Amapá, as autoridades estão pouco preocupadas com o estudo da Amazônia Atlântica. As costas do Amapá e do Pará são um inacreditável banco de vidas marinhas, coalhado de piratas, que vão lá pegar, de arrastão, pescados, lagostas, camarão e outros frutos do mar. Pescadores paraenses já capturaram na altura da Vila de Sucuriju, no município de Amapá, marlim azul de meia tonelada. Nem Ernest Hemingway conseguia espadarte desse porte no Gulf Strean.

Em 2011, pesquisadores do Observatório Nacional anunciaram evidências de um rio subterrâneo numa profundidade de 4 quilômetros abaixo do Amazonas, com 6 mil quilômetros de comprimento, batizado de Hamza, em homenagem a um dos pesquisadores, o indiano Valiya Hamza. Porém tudo o que escrevi neste artigo é apenas realismo fantástico. A Amazônia é ainda uma fronteira, uma colônia, agora sugada pelos governos que se alternam em Brasília, pela a aristocracia de hoje – multinacionais e megaempresários – e ONGs e políticos perigosos, que chegam a agir como laranjas dos países hegemônicos.

A joia do rio Amazonas é Macapá, a capital do estado do Amapá. A cidade tremeluz na Linha Imaginária do Equador, debruçada na margem esquerda do Canal do Norte, quase na boca do gigante, quando o monstro penetra o azul atlântico. E à noite, os jasmineiros soluçam no ar saturado de espilantol.

sábado, 16 de maio de 2015

Papai faz 100 anos


BRASÍLIA, 16 DE MAIO DE 2015 – Alguns dos meus ídolos – Ernest Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry – manifestam duas características em comum: são escritores classe A e foram homens de ação. Um homem de ação é aquele que pensa e age simultaneamente, e também não vive quieto, pois está sempre metido em alguma aventura. A própria vida é sua grande aventura, até que, no caminho, é derrotado pela barreira da dimensão física, mas não é vencido, e passa a povoar o universo azul. Meu pai, o maior dos meus ídolos, não era escritor, mas era um homem de ação, e me contou histórias eternas.

Quando, aos 5 anos, descobri, no quarto do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, que seria escritor, ao meio de uma galáxia de gibis, revistas e livros, meu pai tinha 44 anos. Media 1,68, era seco e forte, o rosto oval, olhos castanhos e oblíquos, e usava uma loção à base de pinho após raspar, com navalha, o rosto, deixando apenas o bigode. Foi o homem mais corajoso que já encontrei; nada o intimidava. Internava-se na selva dias seguidos, sozinho, e era capaz de meter uma bala no buraco de outra, a mais de 100 metros de distância. Ele não era escritor, mas escreveu alguns poemas, que se perderam no tempo.

Lá pelos 14 anos, quando comecei minha carreira de escritor, trabalhando num poema, que também se perdeu, dedicado a poeta Alcinéa Maria Cavalcante, uma ninfeta completamente linda, peguei os originais do papai e li alguns dos poemas na Rádio Educadora, não me lembro mais se num programa do João Lázaro, ou do Luiz Tadeu Magalhães. Papai soube e me passou uma reprimenda. Mas senti, ali, naquele momento, que, de alguma forma, ele não se importou muito que eu tivesse lido publicamente seus poemas, e isso me deixou feliz, pois agradar o ídolo é para o fã o sonho mais ousado.

Papai não era escritor, mas foi um extraordinário contador de histórias. Leu Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, e contava a história para nós, meus irmãos e eu, como se Tarzan fosse real. Porém o que mais me fascinava eram as aventuras do próprio papai, especialmente quando se internou na selva profunda e foi atraído por uma sucuriju. Tonto, quase desmaiando, foi salvo pelo seu anjo da guarda; conseguiu avistar a cabeça da sucuri, apoiou o rifle numa forquilha e estourou a cabeça da serpente, uma cabeçorra do tamanho de uma lata de leite Ninho.

Papai chefiava todo o trabalho pesado no Aeroporto de Macapá, dos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul. Começava sinalizando à chegada dos Douglas DC-3, abastecia os aviões e os despachava. A primeira vez que o vi fazendo isso fiquei deslumbrado, e quando fui autorizado a entrar no avião foi como se houvesse entrado numa nave espacial. Meu pai conversava com os pilotos da nave e entrava no avião como se estivesse em casa, e serviram-me sanduíches e biscoitos inimagináveis.

Apenas uma vez o vi fraquejar. Foi quando a tragédia invadiu a Casa Amarela, a casa da minha infância, na esquina das ruas Iracema Carvão Nunes e Eliézer Levy, onde hoje uma seringueira plantada por meu pai no ano de nascimento do meu irmão, o gênio do pincel Olivar Cunha, intercepta o muro do Colégio Amapaense. Foi quando anunciaram a morte do meu irmão Francisco Pereira Cunha. Era 22 de novembro de 1965. Francisco tinha 18 anos e era belo como Zeus, e imortal como todo jovem. Meu pai foi atingindo por um raio. Caiu numa cadeira, mole, sem tônus, os olhos, sempre tão interessados pela vida, gritavam de dor. E logo depois veio o segundo choque: o corpo chegando. Não compreendi bem aquilo, apesar de ter 11 anos. Para mim, a matéria era para sempre, e só fui entender o que se passara quando, no Cemitério São José de Macapá, vi todos se sacudindo em choro, como chuva que não passa nunca.

Meu pai tinha 57 anos e eu 17, em 1972, quando peguei um barco para Belém e de lá, de carona pela Belém-Brasília, em construção, fui até Brasília, de onde parti para o Rio de Janeiro, onde vivi durante dois anos em Copacabana. Retornei a Macapá e, ainda inquieto, tomei a estrada novamente, até Buenos Aires, onde permaneci durante um mês, trabalhando como carregador de fardos de trapo, utilizado em pequenas oficinas, para um judeu-argentino que fora comando israelense, e que me viu na rua, no dia em que cheguei a Buenos Aires, identificou-me imediatamente como brasileiro, não me largou mais, pois adorava bater papo comigo sobre o Brasil, e sobre tudo.

Em 1975, retornei a Macapá e tentei voltar aos estudos, interrompidos no quarto ano ginasial, no Colégio Amapaense. Mas a inquietação não passara e resolvi conhecer a família do meu pai, em Manaus. Na ida, estacionei em Santarém, onde Paulo Cunha morava, e trabalhei na Rádio Difusora de Santarém, como redator e apresentador do jornal falado, durante um mês. Então parti para Manaus. Assim que cheguei e me hospedei na casa da tia Isabel, procurei saber o endereço do jornal mais central da cidade e fui até lá. O Jornal do Commercio ficava num prédio neoclássico na Avenida Eduardo Ribeiro, e exibia uma placa na porta: “Precisa-se de repórter policial”. Subi, procurei o diretor de redação, Cidade de Oliveira, e lhe disse que a vaga era minha. No dia seguinte, comecei a trabalhar.

No dia 6 de março de 1977, recebi um telefonema de Laurindo Banha, compadre do papai. Ele morrera, de colapso cardíaco fulminante, como árvore atingida pelo raio. Naquela época eu morava sozinho numa casa no bairro de São Francisco, onde o artista plástico português Álvaro Pascoa guardava dezenas de telas do pintor amazonense Hahnemann Bacelar. Só fui me dar conta de sua morte cinco anos depois, em 1982, em Belém, cursando Jornalismo na Universidade Federal do Pará (UFPa.), aos 28 anos. Meu pai morreu com a mesma idade que Ernest Hemingway, aos 61, e, naquela época, eu já conversava com Papa nos bares da mente, quando o desejo de também bater longos papos com papai começou a se avolumar na minha alma.

Em carta de 8 de novembro de 1991, a mim endereçada, meu irmão caçula, Ricardo Cunha, graduado em História e pesquisador da nossa árvore genealógica, diz, sobre nosso pai: “Nasceu em Sobral, Ceará, e veio criança para a Amazônia. Seu primeiro emprego foi o de trabalhar na lavoura, com a mãe, Rosa Maria Cunha, para sustentar as irmãs, Isabel, Maria e Cunhã, já que seu pai, Manuel Raimundo Cunha, morreu quando ele e seus irmãos tinham tenra idade. Foi capataz de quadreiro (capinador de campo de seringal) e serrador na Companhia Ford Motors, em Belterra/PA. Posteriormente, transferiu-se para a Cruzeiro do Sul SA, primeiramente em Belterra, depois em Santarém/PA e, finalmente, em Macapá, onde chegou em janeiro de 1950, seguido pela já numerosa família, em outubro daquele ano. Aposentou-se em 1975 pela Cruzeiro do Sul SA, com 35 anos de serviço ativo. Era alto, forte, sereno, ao mesmo tempo rude; embora semialfabetizado, era inteligente e intuitivo”.

Ontem, recebi e-mail do Ricardo: “Amanhã (16/05), se o nosso pai estivesse vivo, completaria 100 anos de idade. Soldado da borracha, caçador profissional, operário-padrão e um homem absurdamente honesto; um homem que amava as mulheres (desde a juventude até casar-se com nossa mãe), ele sempre representou para mim o arquétipo de macho durão, autossuficiente e mantenedor da entidade familiar”.

Abro aqui um parêntese para dizer que nossa mãe, Marina Pereira Silva Cunha, era a mulher mais bonita do mundo, e forte como as rosas, que são eternas.

Ricardo: “Sei que nunca serei cinco por cento que o nosso pai foi, pois, apesar do verniz de civilização que os estudos me proporcionaram, o nosso pai, perante a vida, foi mais homem do que a maioria dos homens que eu já conheci e mais e mais o admiro perante sua postura filosófica perante a vida: foi um homem cético (ele não acreditava que o homem tivesse chegado à Lua, por exemplo), mas extremamente honesto com seus princípios; não proibiu que a mamãe continuasse sendo católica devota e nem aos seus filhos, e também não vendeu seus princípios para agradar quem quer que seja.

“Amanhã, irei à missa, como faço costumeiramente todos os sábados, e até pensei em mandar rezar uma missa em ação de graças pelo seu centenário, mas depois refleti: aonde quer que o nosso pai esteja, ele esboçaria um sorriso irônico, por não acreditar em sistemas de pensamentos religiosos ou idealistas; daí resolvi respeitar a crença ou não crença do nosso pai e apenas farei um silêncio obsequioso e uma oração para, onde ele estiver, agradecer a sorte de ter sido meu pai e rogar que nos ajude nessa longa caminhada, em busca de felicidade e paz”.

Andei por aí como judeu errante, como dizia Paulo Cunha, durante uma década (1972-1982), em busca de mim mesmo, em busca de paz, e a encontrei ao iniciar a caminhada interior, que nunca termina, pois é uma espiral eterna, o caminho do Tao. Hoje, mergulhado na criação literária, que é tão somente um portal para a dimensão infinita, e no taoismo, quando mergulho no abismo de silêncio mozartiano da Meditação Shinsokan, no oratório do meu quarto, sinto papai e mamãe me abraçarem e me beijarem.

Chamávamos para o quarto do meu irmão Paulo Cunha na Casa Amarela de Quartinho; é lá que costumo encontrar-me com papai, Ernest Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry e todos os mortos que amo, num bate-papo interminável.