quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Jornada Brasília adentro

De manhã, em torno das 8 horas, cruzo o Setor Comercial Sul mergulhado no perfume de mulheres tão lindas que parecem nuas. Algumas andam como modelos no voo pelo tapete vermelho, como Gisele Bündchen. Falar em Gisele, comecei a ler pesos pesados como Ernest Hemingway lá por 1968, aos 14 anos, nas minhas incursões diárias à biblioteca do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, o primeiro grande leitor que conheci. A biblioteca dele foi meu primeiro laboratório, depois de iniciado pela sua também volumosa coleção de gibis. Um dia, creio que em 1971, indo a Belém (foi a primeira vez que saí de Macapá; Belém me hipnotizou até hoje), fui, com o pintor genial Olivar Cunha, visitar o Paulo no hotel onde morava; na época, ele era gerente na Brasilit. Entrar no seu quarto e ver as estantes e pilhas de livros que pareciam tomar conta de todo o espaço causou em mim o mesmo maravilhamento que a caverna dos 40 ladrões (não os do Mensalão) deve ter causado em Ali Babá. A terceira etapa do meu aprendizado foi com Isnard Brandão Lima Filho, e também foi tão fantástica como os espelhos de Jorge Luis Borges. Voltando à Gisele, essa loira que fascina também meu amigo Carlos Honorato, evoca-me Giselle Montfort, a espiã nua que abalou Paris, membro da resistência francesa na Segunda Grande Guerra, sob o codinome ZZ7. Era linda e tudo o que me convinha naquela época. Giselle Monftorf foi criada pelo jornalista David Nasser, em 1948, e a novela foi publicada em 56 capítulos no Diário da Noite, e depois em quatro volumes, em 1952. Dos anos 1960 aos 1990, o escritor espanhol Antônio Vera Ramirez, sob o pseudônimo de Lou Carrigan, deu prosseguimento à ideia original de David Nasser criando Brigitte Montfort, filha de Giselle; a Editora Monterrey, do Rio de Janeiro, publicou 500 histórias de Brigitte. Lembro-me que lia um Giselle, ou Brigitte, inteiro, em poucas horas. Foi assim que, aos 14 anos, numa cidade ribeirinha perdida na Amazônia, andei pela Paris ocupada, a mesma que Ernest Hemingway libertou, sobretudo porque a amava. Mas, como ia dizendo, cruzar o Setor Comercial Sul numa quarta-feira de inverno tropical dá a mesma sensação de participarmos, como espectador, de um desfile de moda.

Sempre que posso, almoço no Sabor Brasília, na praça de alimentação do Conjunto Nacional, um shopping no coração da cidade, ao lado da rodoviária do Plano Piloto, por onde passa meio milhão de pessoas por dia. Trata-se de um labirinto prenhe de mulheres nuas, de tão lindas, num passa-passa infinito. A comida no Sabor Brasília é saborosa, e lá é um dos raros locais da cidade onde como peixe, pois sou do Mundo das Águas, a região mais piscosa do planeta. Cheguei a tal requinte na degustação de peixe que o menor pitiú (do tupi, cheiro forte de maresia) me faz desistir de comê-lo. Descrevo no conto Inferno Verde o preparo de um caldo de filhote. Quem o ensinou a mim foi o radialista macapaense, que vive em Belém, desde sempre, José Maria Trindade, querido amigo meu. Ele me convidou para tomar caldo de filhote no Remada, seu restaurante. Filhote é um dos mais saborosos peixes da Hileia. Segundo A Fauna da Amazônia (Cejup, Belém, 1992, 217 páginas), de Roberto M. Rodrigues, filhote é a piraíba pequena. Piraíba é o maior peixe de couro do Brasil, atingindo 3 metros de comprimento por 1,40 de diâmetro e pesando 150 quilos. Trindade comprou filhote fresquinho, limpou-o, lavou-o com escovinha e o pôs algum tempo de molho no limão. Depois é só pôr água para ferver, acrescentar os temperos de praxe e depositar o peixe na panela. O caldo é mais saboroso do que qualquer prato francês. Da mesma forma que tamuatá no tucupi e jambu, com farinha d'água, é capaz de fazer qualquer chefe francês se ajoelhar.
Às 13 horas, a praça de alimentação do Conjunto Nacional, como em qualquer grande shopping numa grande cidade deste continente tropical, regurgita de mulheres, lindas como um grande jato comercial pousando. Uma das coisas que mais gosto de fazer é ver e conversar com mulheres. Perscruto suas almas e percebo nelas uma luz como se Deus ainda continuasse junto a elas, como o pintor junto à tela, aperfeiçoando-a, como o pai carinhoso que vela pela criança. Assim era minha mãe, e assim foram todas as mulheres que me amaram, embora, às vezes, as magoassem imperdoavelmente. Busco, nas mulheres, luz, e elas nunca se recusam a dá-la. Sei, hoje, que as mulheres, que, nos dando à luz, e nos iluminando, nos transformam em poetas, porque, então, compreendemos a rosa.
Há dois lugares estratégicos na praça de alimentação: defronte para as escadas, de onde jorram beldades, e defronte ao Torre de Pisa, restaurante e cafeteria, de onde também podemos descortinar, numa posição discreta, o harém. De lá, costumo tomar um espresso na Kopenhagen, defronte à Saraiva. Degusto um blend curto, confortavelmente sentado numa cadeira de palinha (que é como chamamos em Macapá para móveis de vime, ou cipó), e depois bato perna nas três livrarias do shopping. Creio que foi em 2006 que meu querido amigo, mestre, padrinho, o jornalista Walmir Botelho, um dos leitores mais vorazes que conheço, sugeriu a mim, numa visita que fiz a ele, em Belém, que lesse A Festa do Bode, de Mario Vargas Llosa. O livro esteve fora do mercado até Vargas Llosa ganhar o Nobel, este ano. Dia 24 de dezembro estava eu cumprindo o presente ritual quando me deparei, na Saraiva, com um monte de A Festa do Bode. Só mesmo Vargas Llosa para escrever um romance desses. Ele romanceou a história do general Rafael Leonidas Trujillo Molina, o Bode, que, durante 31 anos, governou a República Dominicana com a crueldade demente de todo e qualquer ditador, praticando as maldades mais impossíveis, aquelas que só vicejam, na sua morte, nos pântanos do poder desesperado, a podridão exalada por hienas como Fidel Castro, Hugo Chávez, e sequazes, para só ficarmos na Ibero-América. Feras como essas jamais deterão o poder absoluto, por uma razão simples: a mentira, a corrupção, não detém qualquer poder. É, como o mundo físico, apenas ilusão.
Vargas Llosa construiu uma catedral gótica seguindo os passos do Bode. Merecia, há tempo, o Nobel. O primeiro livro que sugeri à minha esposa, Josiane, pouco depois que a conheci, cafuza de 19 anos, linda que só ela mesma, principalmente quando ficou grávida da Iasmim, foi Tia Júlia e o Escrevinhador, de Llosa. Ele é do tamanho de Gabriel García Márquez e de Ernest Hemingway, e de William Faulkner, é claro.
Às vezes, tenho a sorte de conhecer novos amigos. Foi assim que estive na mais recente exposição de Ralfe Braga, artista plástico macapaense, cosmopolita e que também vive, muito antes que eu, em Brasília. Ontem, encontramo-nos num bar na 107 Norte, tão cheio de mulheres monumentais que nem dava para acreditar. É bom permanecer num lugar cheio de mulheres lindas; é como estar num jardim vermelho de rosas. Ralfe Braga me apresentou ao poeta Marcelo Benini, num desses papos impagáveis, e inesgotáveis, como os que mantinha com Walmir Botelho.
O Natal, este ano, transcorreu, como sempre, em paz. Mas neste ano ele foi como um dia qualquer; eu o senti apenas na alma, como um nascer de novo, um renovar-se, a alegria de ouvir o riso das crianças e sentir o perfume do jardim que cultivamos nas nossas mais luminosas lembranças, as únicas que devemos guardar no relicário da memória. Meu Pai é poderoso e sempre concretiza meus pedidos, porque são verdadeiros. A Ele pedi que arrume 2012, Pessoalmente, para todos os meus familiares e meus amigos e amigas, com os tesouros mais preciosos do mundo, que se encontram numa urna de luz, no meu coração.


Brasília, 29 de dezembro de 2011

É fácil morrer à noite

Belém em dezembro, paradoxalmente desmoronando, sólida, sob
o chumbo aquoso do mundo das águas. Foto de Luiz Braga

De onde estava, podia ver os luminosos e os faróis dos carros sob a chuva torrencial. Bebeu um gole, grande, e voltou a olhar para a rua. O bar tinha portas largas e um toldo sobre o passeio público, onde Reinaldo se sentara, de modo que recebia o vento embebido de água. Era uma chuva de fim do inverno amazônico, que não demorou. Nem bem a chuva passou as pessoas que estiveram abrigadas voltaram para a calçada. Mas foi uma trégua curta, pois a chuva voltou mais forte.

Pediu outro gim-tônica, que Muhammad Ali preparava bem forte para ele, e voltou a prestar atenção para a rua. Gostava de ir ao Castelo de Ouro e ficar apreciando o movimento e ficar apreciando o movimento da rua; isso o entretinha, e hoje havia aquela chuva, com luzes sob ela como pinceladas impressionistas, e as pessoas que corriam, lembrando soldados que pretendessem tomar uma trincheira. Pensou nas chuvas que duram três dias. As grandes chuvas começam chuviscando, mas sempre são anunciadas por trovoadas e duram três dias. As manhãs são desoladas e crepusculares. À tarde, começa a rescender a cheiro de água, e as crianças se divertem na chuva até ficarem roxas. A cor de barro do céu metamorfoseia-se de negro, se desfaz lentamente e encobre a cidade. A noite é fria, e o frio, um túnel negro e pastoso. A porta de um bar fosforesce na noite, como a boca do inferno. Lá dentro é quente e úmido, e fumacento e ácido. Bêbedos ordinários estão atentos como lobos. Entrou no bar e pediu uma Antarctica. Alguns bêbedos o assediaram. Pagou uma dose de cachaça para cada um e foi se refugir no outro lado do balcão. Os bêbedos ficaram olhando-o, matutando um meio de se aproximar dele, com suas caras de vira-lata sob o efeito de uma cadela no cio. Pediu para si uma dose de Pitú. A aguardente desceu-lhe garganta adentro, aquecendo-o, enxugando-o e molhando seus nervos. Havia um papa-defunto perto da porta. Viu quando o garçom se dirigiu para a mesa do papa-defunto e limpou-a. O garçom assentiu com a cabeça e foi, manquejando, preparar uma bebida. O papa-defunto ergueu os olhos para Reinaldo. Era um olhar desconfortável. Reinaldo tomou outro gole, mas dessa vez a bebida quis voltar. O papa-defunto levou a mão ao bolso interno do casaco. Havia ali um volume. Era um maço de cigarros. Pediu mais um gim-tônica. Tomou um gole e a bebida refrescou seus nervos e o livrou mometaneamente dos bares infernais da paranoia.

Parara de chover. Consultou o relógio: onze horas. Sentiu fome. Saiu a caminhar. Não queria ir para casa. Sua mulher, que estava grávida, haveria de se enroscar nele, lamurienta.

- Eu ia ter o neném sozinha – diria. Ouviria os passos da governanta no corredor e o som dos nós dos dedos dela na porta. Quereria saber se madame estava bem. O médico estaria pronto para uma emergência. Tudo preparado como uma Luger.

Apanhou um táxi.

- Hotel Ver-O-Peso – disse. O motorista era jovem e queria ser agradável, portanto aumentou o volume do alto-falante atrás da nuca de Reinaldo. Um berro em inglês se fez ouvir. – Desligue o rádio, por favor! – pediu.

- Não é rádio – disse o jovem. – Mas vou desligar...

Lá em cima, no restaurante do hotel, havia aquela atmosfera suburbana de hotel três estrelas. Pediu, sem consultar o cardápio, filé com fritas e uma Antarctica. O garçom andava apressado e parecia onipresente em todas as mesas, mas, na verdade, demorava-se muito para atender efetivamente os fregueses. Reinaldo queria ir embora quando ele apareceu com o filé e batata frita.

- O senhor quer arroz também?

- Sim! – disse Reinaldo, e pôs-se a comer. Estava faminto. Se quisessem acertá-lo que fosse de barriga cheia. Não o pegariam como daquela vez no calçadão da Avenida Braz de Aguiar. Era o fim da tarde e a noite insinuava-se como doce música. Sentiu alguém tocá-lo no ombro e encostar-lhe algo nos rins. Um tapa de vento fez a rua desaparecer e caiu no vazio, exceto pelo medo concreto, de gelo, que o paralisou.  

- Arria tudo.

Então o pistoleiro era ladrão também? Voltou-se e viu um louco e o grande pente verde que ele, agora, afrouxava das suas costas.

- Filho da puta! – disse, sentindo aquela paralisia evaporar-se. Aspirou gulosamente o ar, confiante, e foi embora, deixando o louco a olhá-lo, desolado.

O Ver-O-Peso cochilava. Atravessou o Boulevard Castilhos França e caminhou devagar, na esperança de encontrar um vendedor de amendoim. Duas mulheres cruzaram com ele e o olharam cobiçosas. Pensou em Celina. Pegou um táxi e foi para casa.

Naquela hora, a casa dormia, como toda a rua. Apenas as mangueiras estavam acordadas, ainda molhadas, como mulher que sai do banho. Sentiu que poderia ser morto ali e se revoltou contra a facilidade com que se pode ser assassinado. Talvez, desde cedo, o matador estivesse ali, a esperá-lo. Abriu o cadeado do portão e entrou. O robusto fila veio lamber-lhe a mão. Reinaldo afagou-lhe a cabeça e se agachou para beijá-lo. “Talvez o tiro venho agora” – pensou. “Ou talvez ele tenha se cansado e ido embora” – disse em voz alta. “Mas um pistoleiro nunca abandona seu esconderijo à espera da presa.” O cão o ouvia atentamente e mordeu levemente a mão de Reinaldo.

Celina dormia a sono solto, nua. Reinaldo se despiu, foi ao banheiro e limpou os dentes com fio dental, nas não estava disposto a escová-los. Lavou o rosto e foi deitar-se. Nem bem se acomodou e ela se voltou para ele, sem acordar, e o abraçou e murmurou alguma coisa. Era cheirosa e seus cabelos, curtos, permaneciam bem escovados. Reinaldo encostou seus lábios na boca de Celina, depois beijou seu nariz arrebitado. Ela abriu os olhos. Eram grandes e castanhos, quase verdes. Ele lhe disse algo no ouvido.

- Não! – ela disse, num longo miado. Mas se virou de costas para ele. A gravidez selara-lhe mais as costas, e vista assim, à luz do abajur, era roliça e macia, as coxas grossas e brancas, e os seios volumosos e delicados. Reinaldo gostava de pegá-los por trás dela, de mergulhar a mão no seu púbis e ouvir seu ronronar. Não era decente, agora que teria seu primeiro bebê, que o matassem. Queria comprar as bonecas mais graciosas para o bebê, se fosse menina, ou então, se fosse menino, pensava que seriam grandes amigos, e quando ele crescesse sairiam juntos para bater papo e beber, empoleirados no balcão do Café Cosa Nostra. Manteriam grandes papos, ele, tomando gin fizz, ou daiquiri, ou qualquer outra bebida preparada pelo Filgueiras, e seu grande amigo tomando um grande sorvete. “Haveria sorvete no Cosa Nostra?” Era algo sobre o que não tinha pensado ainda. Fora um dia puxado no jornal. Precisava se afastar da Editoria de Polícia. Haveria de sair da cidade logo que o bebê nascesse. Firmemente  seguro ao corpo redondo de Celina todos os bandidos da cidade se puseram em debandada e uma lassidão adveio ao jorro com que inundou a mulher, que se virou para ele e se pôs a lamber-lhe o rosto, ronronando, mais gemendo, agora, que ronronando.

A manhã veio vermelha para a janela, e um sabiá cantou durante muito tempo, até Reinaldo sonhar com as manhãs encobertas de neblina em Pedra de Guaratiba.


Do livro A Grande Farra, edição do autor, Brasília, 1992, 153 páginas, esgotado

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O Pará não dorme mais em berço esplêndido

Brasília, 20 de dezembro de 2011 – O plebiscito da divisão do Pará em três (mais Tapajós e Carajás), dia 11, aprovou o não, mas mostrou que os paraenses querem manter o estado com 1.247.689,515 quilômetros quadrados, do tamanho da Colômbia, e 7,6 milhões de habitantes, apenas por bairrismo; e os políticos pró-Pará, para não terem suas tetas reduzidas. Dos 4,8 milhões de eleitores, 67,93% rejeitaram a criação de Carajás, contra 32,07% que apoiaram o nascimento do novo estado; 67,36% rejeitaram a criação de Tapajós e 32,64% apoiaram a divisão. A abstenção chegou a 25,45%.

Um erro do Supremo Tribunal Federal (STF) foi ter incluído os moradores do Pará remanescente, a maioria da população, no plebiscito. Foi o mesmo que consultar Portugal sobre a independência do Brasil. Cerca de 98% dos moradores do Tapajós, por exemplo, querem se separar do Pará. Também, caso o plebiscito fosse pelo sim, creio que o Congresso Nacional barraria a divisão, ou Dilma Rousseff (PTMDB), pois seria uma sangria nas tetas da Esplanada dos Ministérios.

Carajás, se fosse criado, deteria a maior província mineral do planeta, atualmente explorada pela gigantesca Vale. Como exportação de commodities extraídas do sub-solo não rende praticamente nada para os estados, mas apenas para o império, isto é, para a União, restaria aos carajaenses a industrialização metalúrgica, embora houvesse implícito na criação de Carajás grande interesse de fazendeiros, principalmente do Sul e do Centro-Oeste.

Quanto a Tapajós, culturalmente um estado autônomo, detém Belo Monte, que será a terceira maior hidrelétrica do mundo e que tem sido palco de tanto besteirol.

O Pará, mesmo, ficaria reduzido a 218 mil quilômetros quadrados, 17% do seu território.

Logo depois da apuração do plebiscito, o governador do Pará, o tucano Simão Jatene, botou a culpa do atraso do estado no pacto federativo. Em outras palavras, ele se reconheceu incompetente como gestor. Será que Simão está investindo direito em educação, em pesquisa, em industrialização? Ou está enchendo os bolsos da mídia e inchando o governo com cabide de emprego e em nepotismo?, como fez no seu governo anterior e que foi levado ao paroxismo com a deslumbrada e inacreditavelmente incompetente Ana Júlia Carepa, do PTMDB, e que está prestes a botar a boca numa tetinha no governo Dilma Rousseff?

"Existe uma distância e ausência, mas não é do governo do estado, mas do estado brasileiro. É genuíno o sentimento das pessoas, mas acho que o caminho foi equivocado. A sociedade paraense sai mais madura, mas precisamos de um pacto que nos reposicione” - disse Jatene, com o jeitão sociológico dos tucanos.

Governadores da Amazônia dormem em berço esplêndido. Têm a cultura do colonizado e não sabem entrar na mídia nacional por meio do que é bom nos seus estados. Quando se avistam com Dilma Rousseff parecem vassalos diante de uma imperatriz. Já suas bancadas no Congresso Nacional geralmente tratam dos seus próprios negócios. O povão é empurrado com cesta básica, política de “estado” que Lula alçou à estratosfera.

Novos lances nos movimentos de emancipação vão surgir, mas agora a insatisfação começou a focar a posição da capital, Belém, para onde vai boa parte da grana dos paraenses, uma fatia dela para apaniguados do governador. Já há um movimento querendo tirar de Belém a sede dos três poderes e jogá-la para perto da Terra do Meio, como foi feito com o Rio de Janeiro e Brasília.

Para um país continental como o Brasil, a vocação é a divisão política. O Pará era do tamanho da Amazônia e foi dividido aos poucos. A última porção que perdeu, em 1943, foi o atual estado do Amapá. Se o Amapá ainda fosse paraense, é provável que sua capital, Macapá, seria semelhante à cidade de Afuá, no arquipélago de Marajó, região paraense paradisíaca, mas onde crianças morrem de fome, comidas por vermes, ameba, giárdia, malária e estupradas.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O banquete dos que eu amo

O tarde é feita de mulheres que passam batom na boca
De crianças que riem
De sabiás que amam
De rosas nuas,
De silêncios.
A tarde é prenhe da solidão da madrugada
E, ao mesmo tempo, de um grande aeroporto numa sexta-feira à noite.
A tarde é o agora e o agora, numa temperatura de 21 graus centígrados,
Sombra tropical, cadeira de palinha e café espresso arábica.
A tarde é prenúncio de estrelas e do rastro de mulheres tão lindas
Que vivem nuas.
A tarde é uma mulher grávida de amor,
E que tem sabor de vinho europeu.
A tarde evoca sons de diamantes,
Excitante como beijo de língua
E sabor de ostra e Bohemia enevoada.
A tarde é o riso das virgens ruivas
E, da luz, o triunfo.
A tarde é tudo o que tenho para dar neste Natal,
E, no Ano Novo, darei minha alma, que é toda a minha luz.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Soneto para Josiane

Ela estava deitada de lado. Não se mexia. Ouvi sua respiração e a madrugada. Fiquei hipnotizado, pois sempre fico hipnotizado à visão da sua nudez. Sua pele cafuza é clara como cetim rosa. Observei-a do alto das costas e desci o olhar até a cintura, no encontro com as nádegas, e me perdi no labirinto de segredos que sumiam em curvas sinuosas. Os seios, repousados na lânguida posição, lhe davam a beleza de um grande jato no momento do pouso. Deitada assim, ela me lembra Marilyn Monroe no ensaio da primeira Playboy. Assim, deitada, mergulhada em sono profundo, ela é como uma grande rosa vermelha, tão linda que causa sofrimento, porque não podemos possuir as rosas, pois as rosas não são de ninguém, existem apenas para sabermos que existe Deus. Tirei a roupa e me deitei, e fiquei olhando a escultura ao meu lado, o mais perto possível. Sua epiderme é como o mar ao anoitecer. Assim, de perto, as ancas lembram os sonhos, que eu sempre tenho, voando sobre o roseiral e as zínias da minha infância. Cheirei-a, e senti perfume de maresia, Chanel Número 5, jasmineiros chorando em noites tórridas, leite da mulher amada e o sabor de lágrimas de virgens ruivas no acme. Cheirei seus cabelos. Ela tem os cabelos como a juba negra de um leão e a feminilidade de uma rosa ao sol em manhã de primavera. Moveu-se e disse: “Te amo, querido!”, e voltou às profundezas do seu sono de gata. Eu também te amo, como a eternidade. Ao se mover, ela se encostou em mim. Seu contato era como estrelas caindo em algum ponto da galáxia, numa festa inesquecível, numa idade em que ainda somos fisicamente imortais. Eu me sinto, então, como nervo exposto à descarga elétrica, mas sob absoluto domínio, intenso como são as rosas. Beijei suas costas, e senti sabor de Dom Pérignon, safra de 1954. No meu delírio, cavalgo-a, como dançarinos domam um tango de Astor Piazzolla, e arranco da sua boca vermelha música de Wolfgang Amadeus Mozart. Ela se moveu novamente, num giro de 180 graus, e buscou refúgio nos meus braços. Seu rosto é sereno, de mulher que se sente amada. Amanhã, eu lhe darei a grande rosa colombiana, vermelha, que depositei no vasinho do altar, no nosso quarto. Creio que não há oferta mais esplendorosa do que uma rosa, grande e vermelha, à mulher amada, pois as rosas são a própria poesia que emana do corpo de uma mulher nua.

Brasília, 10 de dezembro de 2011

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

No topo da montanha brilha o verão

Atormentado pela fome, às 5 horas estava de pé. Não conseguira dormir nada. Sentia-se tonto e com a náusea que a fome prolongada causa. A última vez que comera algo sólido fora há dois dias. Só pensava no café. A casa de estudante dividia-se em três prédios. O maior e mais novo, que era onde ele morava, tinha uma fileira de quartos, de onde se podia ver o Hilton Internacional Belém. Lavou o rosto e desceu. Passou pela frente da vila, entre os dois grandes prédios, e subiu para o restaurante, que ficava no prédio velho. Às 7, o servente serviu a refeição, que consistia em café com leite e pão com margarina. Sentiu as costas macias do gato nos seus tornozelos nus, e pensou na sua cidade natal. Foi um momento de felicidade curto, pois se lembrou da carta que recebera no dia anterior. “Estou com sífilis” – dizia a carta. “No segundo estágio. Não há mais cura. Devo enlouquecer em dez anos. E morrer em quinze. Uma geração de filha-da-puta, a minha.” Sim, uma geração de filha-da-puta. Um, sifilítico; outro, louco; outro, apodrecendo, com fraqueza pulmonar, num povoado aurífero na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa; outro, dipsomaníaco; outro, decapitado e castrado pelo seu próprio irmão. “Se eu não tomar cuidado viro mendigo” – pensou.

Ainda faltava muito para acabar o inverno. Dois anos. Era quanto faltava para sair da universidade. Deprimia-se a pensar nisso e mudou de pensamento, enquanto caminhava para o campus universitário do Guamá. No começo, quase não suportou a falta de mulheres. Não fazia nenhum esforço para tê-las. Era a economia de guerra, como dizia. Também sentia grande desejo de beber, mas resolvera que tanto bebida quanto mulher só teria quando pudesse tê-las com qualidade, com dignidade, e não como vira-lata. Ademais, tinha Julieta. Conhecera-a na universidade. Linda. Viu-a pela primeira vez no semestre passado. Estava a ler um livro no corredor de um dos pavilhões do básico quando ela passou ladeada por dois rapazes. Devia ter 21 anos. Sua pele era maravilhosa. Lembrou-o a pele de sua mãe quando jovem: um branco quase leitoso, acetinado. As pernas eram roliças, firmes. As ancas, equinas, e os cabelos negros e sedosos. Tinha lábios sensuais, e um defeito na língua, de modo que falava de uma maneira especial, como uma criança. Ao cerrar os olhos, notava-se um quase imperceptível esforço, e isso, de algum modo, acentuava-lhe o ar de criança. No semestre seguinte João descobriu que eram colegas de curso e que tinham várias disciplinas juntos. Não sabe como foi, mas se tornaram amigos. Para ele era muito que tivesse Julieta. Sua presença de mulher bonita lhe fazia um bem profundo.

Sentou-se, as pernas a tremer, suado e fraco da fome e da caminhada. Sentia premente necessidade de morder algo sólido. Tentou prestar atenção na aula, mas não conseguia reter as informações do professor. E foi assim até meio-dia. Chegara àquele estágio em que não há mais fome, mas uma dormência no estômago, uma contagem regressiva para o desfalecimento. Ir a pé da Cidade Velha para a universidade, de manhã cedo, após o café, era até agradável, mas tinha de pedir carona para voltar. Era a parte humilhante do seu dia. No caminho ia pensando que seria bom encontrar uma carta, um recado, qualquer coisa, mas a carta mensal que recebia de casa ainda ia demorar uma quinzena. O suco gástrico agitou-se. Pelo menos havia a mangueira. Sempre encontrava duas, três mangas. E à noite iria até a padaria e pediria ao Ogro – que é como apelidava o padeiro – um pão, e o Ogro lhe daria um pão massa fina do dia anterior. Depois de comê-lo, beberia um copo d’água e iria deitar-se.

À noite, sentindo um pouco de náusea, não teve disposição para ir à padaria e se deitou. Estava tonto, e com aquele sono que é um desmaio, que vem e vai.

- Ei! – escutou que lhe diziam. Abriu os olhos. Julieta estava em pé, ao lado da cama, com um leque de dinheiro na mão. Pouco depois estavam no bar do Hilton. Mas João continuava sentindo um vazio na barriga, cada vez mais sentia o vazio, até que o vazio se tornou um entorpecimento. Julieta se deitou a seu lado e o aqueceu com seu corpo macio e branco, como a epiderme de sua mãe. E então aquela dança louca deu lugar a um zumbido vago, como um avião lento, muito alto no céu.


Do livro A Grande Farra, edição do autor, Brasília, 1992, contos, esgotado

sábado, 3 de dezembro de 2011

No mundo pós-moderno não há mais condições para estados como o Pará

Brasília, 3 de dezembro de 2011 – Todo o poder político emana do povo. Assim, serão os paraenses que determinarão, dia 11, se o Pará será ou não dividido em três. Mas eu, que sou paraense de Macapá, tenho minha opinião sobre isso. Os colonos portugueses dividiram o Brasil em dois: o Brasil, abarcando as regiões Sudeste, Nordeste menos o Maranhão, Sul e Centro-Oeste; e Grão Pará, abrangendo a Amazônia Clássica e o Maranhão. O Grão Pará foi dividido em Pará, Amazonas e Maranhão e, posteriormente, em Pará e Território Federal do Amapá (hoje, estado). É sua vocação.

Na Terra pós-moderna (a era da tecnologia de ponta) não há mais condições para impérios, territórios continentais. Os estados são cada vez mais enxutos. Os governadores do Pará não dão conta nem do quintal deles, quanto mais de uma área de 1.247.689,515 quilômetros quadrados, maior do que Angola, dividido em 144 municípios, entre os quais Altamira, com 159.695,938 quilômetros quadrados, o maior município do Brasil e o segundo do mundo, menor apenas do que Qaasuitsup, município gronelandês (da ilha dinamarquesa da Groelândia, na América do Norte, criado em 1 de janeiro de 2009). Se Altamira fosse um país, seria o nonagésimo primeiro mais extenso do mundo, maior que a Grécia ou o Nepal. Se fosse um estado brasileiro, seria o décimo sexto, maior que o Acre ou o Ceará. Em Altamira, vive-se na Idade Média.
Os moradores do estado do Amapá, desmembrado em 1943 do Pará, seriam hoje tribos meio brasileiras, meio francesas, pois procurariam trabalho na colônia francesa da Guiana, e Macapá, a capital, seria provavelmente uma cidade ribeirinha como as do vizinho arquipélago do Marajó, uma das regiões mais atrasadas (e belas) do Pará, no quintal de Belém.
Talvez os paraenses do que sobrará do Pará, em caso de aprovação da divisão, manifestem apenas o apego à ideia de ter nascido num verdadeiro país em área territorial, e os governadores estejam de olho, desde sempre, nas matérias-primas e nos impostos, e não pensem na situação dos caboclos, dos ribeirinhos e dos índios. Creio que os governadores do Pará deveriam ser obrigados por lei a viver pelo menos um mês na região mais inóspita do estado, antes de tomar posse, assim como o governador do Distrito Federal deveria andar de ônibus em toda a cidade-estado durante o mesmo tempo, e o presidente da República a passar uma semana em cada uma das quatro regiões mais miseráveis (porque atrasadas) do país, entre as quais o interior do Pará, campeão em escravidão.
Argumenta-se, em contrário à divisão do Pará, que os dois novos estados consumiriam, na sua criação, dezenas de bilhões de reais. Sobre esse quesito, analiso a questão com o mesmo ponto de vista que tenho sobre a Copa do Mundo de 2014. Diz-se que o dinheiro a ser investido no Mundial poderia, por exemplo, pôr a saúde pública nos trilhos. Dinheiro não é problema, na verdade. O Brasil tem condições de fazer uma Copa do Mundo por ano. Quanto à saúde, posta nos trilhos, voltaria a descarrilar. Sem a criação de novos estados e sem Copa do Mundo o governo federal de plantão jamais investiria em infraestrutura e urbanização nesse nível, pois, normalmente, esse dinheiro vai para o bolso de figurões carimbados, gordos como porcos, e tão criminosos como estupradores de crianças.
E esse negócio de dizer que vai aumentar a quantidade de bandidos de colarinho branco é um argumento também suíno, com meu pedido de desculpa aos porcos mesmo.
Se a questão é consertar o Brasil, basta que se faça uma revolução branca: a reforma política. Não aquela comandada pelo notório maranhense Zé Sarney (PTMDB), o que afogou o Senado da República na lama, o maior patrimonialista brasileiro desde Dom João VI (este, legítimo). A propósito, a culpa por Zé Sarney continuar agindo não é dos maranhenses, mas dos tucujus, os índios de Macapá, de quem o autor de Marimbondos de Fogo recebeu o cargo vitalício de senador. Na época, os cupinchas de Zé Sarney colocaram na cabeça dos tucujus que ter um ex-presidente da República como senador seria o mesmo que Dom João VI fugir de Napoleão diretamente para Macapá e dirigir pessoalmente a construção da Fortaleza de São José. A indiarada ficou babando. Agora, os que não levam nada babam, mas de raiva.
Voltando ao Pará, se o plebiscito definir o não à divisão, de qualquer modo as coisas não ficarão por isso mesmo. O governador de plantão terá que prestar mais atenção. Incompetências inacreditáveis como Ana Júlia Carepa, se conseguirem se eleger, não conseguirão aguentar quatro anos, e “quadros magníficos do PSDB”, como o pescador Simão Jatene, terão que enxugar sua adiposa corte.