BRASÍLIA, 30 DE MAIO
DE 2013 – Choveu de madrugada. O quarto é silencioso como um templo. Só ouvimos
o pinicar da chuva fina na vidraça. Venta, e as árvores defronte ao apartamento
curvam-se, agitadas – lembram cabelos de mulher, à tarde, na praça. Levanto-me,
vou ao banheiro e depois à cozinha, onde preparo café Três Corações, gourmet,
que tomo com leite em pó e um sanduíche de pão francês com queijo prato.
Retorno ao quarto. Minha gata já se levantou também. Lemos um sutra e
meditamos. Depois, pomo-nos a ver a chuva, ambos que somos de Macapá, a terra das
águas. Daí a pouco o som da chuva e do vento se mistura a murmúrios, e gemidos.
Parou de chover. A manhã avança, nublada. É outono. Creio
que as chuvas, nesta época do ano, ocorrem porque frentes frias vindas da
Antarctica alcançam o Planalto Central, onde encontram o chão em chamas, se
condensam e caem. A manhã, então, escoa como um rio de planície, lento, rumo a
outro rio, ou ao mar. Sei que o dia seguirá assim, até que as luzes da noite
cintilem como pinceladas de Van Gogh.
Meu amigo Fernando Canto aniversariou, ontem. Acredito que
as grandes amizades já existam antes mesmo que as pessoas se conheçam, e que
apenas evoluam, até atingirem o nível mental. Um dos momentos mais importantes
da nossa amizade ocorreu certa noite, em Belém. Ele era graduando em sociologia
na Universidade Federal do Pará e eu, que então parara de estudar no quarto ano
ginasial, trabalhava como repórter em O
Liberal.
Naquela noite, eu sentia vaga melancolia, e deslizava
lentamente para aquela região vazia, mas pegajosa, da alma, negra e sem fundo,
quando surgiu o Fernando Canto. Não precisei lhe dizer nada. Ele me levou para
o bar do seu tio, que nos recebeu como príncipes e nos serviu gim-tônica inglês,
e logo montei no dorso de uma libélula de prisma.
Desconfio que o Fernando Canto seja um dos anjos destacados
para cuidar de mim. Temos a mesma idade, mas, nessas décadas todas do nosso
convívio, ele é sempre mais sensato, e me corrige para que eu não caia da sela
do Leão de Asas que cavalgo e que voa na velocidade da luz. Sempre que nos
encontramos, mergulhamos na dimensão da intensidade, de modo que, mesmo à
distância, é como se nos encontrássemos todos os dias.
Amigos, e amigas, são criaturas maravilhosas; vão nos buscar
no fundo do rio, quando já não respiramos e vemos, perto, o Aqueronte. Desde
sempre, vivo cercado de anjos. Às vezes, cenas do passado passam céleres, como
num filme, por mim, e vejo que, há muito tempo, eu já deveria ter virado pó,
mas sempre ouvi o farfalhar de asas e senti que alguém me erguia da vertigem
que antecede a perda dos sentidos, a elevação da alma para outra dimensão, e
sei de pronto que ainda preciso cumprir minha tarefa, neste plano, e só então
me integrar na luz.
A vida é a própria luz; só temos que nos deixar seguir como
a brisa, igual esta manhã, que vai se esvaindo, lentamente, como o pulsar da
música de Mozart. Amar é o melhor de tudo; é como ouvir a brisa, os
passarinhos, o riso das crianças, o sussurro da mulher amada, as rosas, o
timbre do éter.
Desejei, no Facebook, que os Deuses continuem ofertando diamantes
azuis ao Fernando Canto, pois é com essas pedras preciosas que ele esparge
Chanel Número 5 nas manhãs do mundo.