segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A capital do trópico

- Brasília cresceu sob o equívoco de cidade mais moderna do mundo. Nunca foi moderna, pois até hoje suas instituições públicas não fazem justiça à modernidade, especialmente o transporte coletivo, e assim foi engessada como Patrimônio Cultural da Humanidade – criticava K. Ele falava tão escorreitamente quanto escreve. - Brasília foi construída no alto do Planalto Central, no Cerrado, savana que vem sendo substituída por imensas plantações. É seca, calorenta, suja, caótica e poluída como qualquer metrópole brasileira. A maior argumentação para a construção de Brasília é a de que viabilizou a integração da Amazônia ao Sudeste. Essa integração seria legítima se houvesse uma ferrovia do Chuí, no Rio Grande do Sul, até Rio Branco, Acre, e até Boa Vista, Roraima, e, quem sabe, de Roraima a Macapá, no Amapá. Ferrovias não promovem a devastação da Amazônia, não como as rodovias. Essa ferrovia passaria por São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia e Belém, com ramal para o Nordeste – disse K, com sua indefectível pachorra adquirida em incontáveis idas e vindas mundo afora.

- Cara, e o traçado de Lúcio Costa, e a obra de Oscar Niemeyer? – Alfredinho perguntou. Tratava-se de um carioca cabeludo que foi assaltado no Rio de Janeiro e como não tivesse dinheiro apararam seus cabelos cuidadosamente e os levaram. A caminho da delegacia para dar parte foi novamente assaltado e como não tivesse nem cabelos levou uma pancada na cabeça que quase ficou doido. Veio para Brasília e virou candango de carteirinha, e voltou a ser cabeludo.

- O traçado de Lúcio Costa, uma cruz no Cerrado, serviu mais como tema para incontáveis cronistas do que para se projetar uma cidade. Uma cidade não deve ser crucificada, mas vivificada. Quanto a Oscar Niemeyer, é um projetor de monólitos de concreto e crê que esquerdistas são santos – K atacou, ferino.

- Cuidado para não sufocar com a língua – disse Alfredinho, tomando mais um gole pantagruélico. - E você, Ray, o que diz da obra de Niemeyer? – disse, dirigindo-se a mim.

- Niemeyer é intocável; é como Fidel Castro. Mas Oscar Niemeyer, além de esterilizar o chão com hectares de concreto, constrói monumentos no lugar de palácios. A Biblioteca Nacional de Brasília, aquele complexo cultural na Esplanada dos Ministérios, por exemplo, o meio ovo que ele projetou, cercado de concreto por todos os lados, sem nenhum arbusto para simbolizar uma sombrinha naquele deserto de concreto, aquilo é insano – eu disse.

- Insano! Gostei da palavra. A Esplanada dos Ministérios é insana, e o Congresso Nacional é paradoxalmente insano – disse K.

- Não diria o Congresso Nacional, mas o PTPMDB – observei.

- O que, PTPMDB, o que é isso? – Alfredinho perguntou.

- Um animal híbrido, de fome hienídea e paladar suíno – eu disse.

- Explique-se – K exigiu. K é um sujeito absolutamente lógico.

- Os petepeemedebistas são murídeos com cabeça de hiena – respondi.

- Égua! – disse Alfredinho, me parodiando. – Vocês dois deveriam ser expulsos de Brasília.

- Quando o Brasil saiu da ditadura, o então presidente José Sarney deu o governo de Brasília para Joaquim Roriz, que montou um formidável esquema de distribuição de lote por futuros votos, nepotismo, superfaturamento, invasões e negociatas, até ser pego, já com a coroa de senador. Aí, a “cidade mais moderna do mundo”, fria, setorizada, sem esquinas, povoada de comunidades estanques, explodiu, e se transformou no que é – deblaterou K. - Se não houvesse Brasília é provável que não teríamos 21 anos de ditadura, e todas as ditaduras, todas, inclusive a de Hugo Chávez, são, simplesmente, indefensáveis. Comparo ditaduras a uma quadrilha que faz de conta que segue uma ideologia. Ditadores não são mais do que bandidos bancando políticos, todos eles, incluindo Getúlio Vargas.

- Acho que Brasília foi a tacada de mestre de JK, embora tenha se tornado um perfeito esconderijo dos petralhas – observei.

As amigas de K nos salvaram daquele papo, que estava ficando amargo. À sua chegada a noite ficou mais intensa. Elas representavam, em si mesmas, o agora e o agora, o momento mesmo da vida. Então Brasília se transmudou na capital do trópico. Não do Trópico Úmido, que é Belém, mas do trópico apenas. Estávamos no café ao lado da Livraria Saraiva. Àquela hora, o ParkShopping lembrava um grande aeroporto internacional, onde pode-se ver as mulheres mais bonitas do mundo. O café regurgitava, imerso em perfume.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

O suicídio político do Amapá


O Amapá integrou o Pará desde que os portugueses puseram as botinas na Amazônia, até 1943, e foi Território Federal até 1990. Em 1 de janeiro de 1991 tornou-se estado. Enquanto Território Federal, nada mais era do que um remoto protetorado da capital. A partir da sua independência federativa, começou o saque. Foram abertas três vagas para senador e Zé Sarney, desgastado no Maranhão como Hosni Mubarak no Egito, se mandou para o Amapá, que o eternizou na presidência do Senado, casa que ele enlameou, com o beneplácito do ex-presidente Lula.

Maior patrimonialista (que confunde a coisa pública com a privada) brasileiro, resistente como Fidel Castro, camaleônico, untuoso (quem já o viu de perto?), medíocre, Zé Sarney é um presente de grego que nossos valorosos irmãos maranhenses, sem querer, enviaram para o Amapá. Sarney continua pintando e bordando, sempre com apoio total do seu partido, o PMDB, do Partido dos Trabalhadores (vejam, só!) e, claro, de Lula, e agora de Dilma Rousseff.

Blog é pessoal, mas me arredo para dar lugar a dois pesos pesados do jornalismo brasileiro: Augusto Nunes e Roberto Pompeu de Toledo.

O apoio secreto a um assassino da esperança é uma forma silenciosa de suicídio político

AUGUSTO NUNES
Direto ao Ponto/Veja.com

11 de fevereiro de 2011 - Na última página da edição de Veja desta semana (9 de fevereiro), o excelente Roberto Pompeu de Toledo encerrou o texto inspirado em José Sarney com um parágrafo de antologia: “A sina do Maranhão, governado, nos últimos 45 anos, por Sarney, familiares ou prepostos, a não ser por curtos intervalos, continua sendo a da desonestidade, da corrução, da violência, da miséria, do analfabetismo e das altas taxas de mortalidade infantil. Mas Sarney, aos 80 anos, dois a menos que Mubarak, alcançou a plenitude da glória. Na primeira hora da madrugada do último dia 1º de janeiro, foi presença de honra na cerimônia de posse da filha, pela quarta vez, como governadora do Maranhão. Voou em seguida para Brasília, onde, como presidente do Congresso, deu posse à nova presidente da República. E, à noite, ainda viajou com o presidente Lula a São Bernardo, onde figurou como atração especial no comício/show montado para receber de volta o mais ilustre morador da cidade. Haja Sarney! Ele promete, como Mubarak, que este é seu último mandato. Nem precisaria de outros. Este é um país intoxicado de Sarney. Na academia, nos jornais e alhures, discute-se se estaríamos vivendo ainda uma era FHC, graças ao rescaldo de suas reformas, ou uma era Lula. Nada disso. O país vive, há mais de meio século, a era Sarney”.

Com a conivência da maioria dos oposicionistas, essa era abjeta eviscerada por Roberto Pompeu de Toledo foi prorrogada por mais dois anos de Sarney na presidência do Senado. Líderes do PSDB e do DEM alegam que apenas respeitaram o critério da proporcionalidade, que confere à bancada majoritária o direito de indicar o presidente da Mesa Diretora. Nenhum partido, seja qual for o tamanho da representação no Senado, tem o direito de impor uma escolha que agride o Brasil decente.

O critério da proporcionalidade não pode prevalecer sobre critérios morais, nem revogar o sentimento da vergonha. Nenhum oposicionista teria respeitado o critério da proporcionalidade se a votação fosse aberta. Nas conversas com repórteres do site de Veja, todos evitaram mencionar expressamente o nome de Sarney. Não ousariam decliná-lo em voz alta no plenário.

Quando estiverem cauterizadas as feridas morais abertas pela Era da Mediocridade, escrevi em junho de 2009, o Brasil contemplará com desconsolo e desconcerto a paisagem deste começo de século. Como foi possível suportar sem revides as bofetadas desferidas por um José Sarney ─ político sem luz, orador bisonho, poeta menor e escritor medíocre? Como explicar a mansidão da maioria dos insultados pelo coro dos cúmplices contentes?

A ausência no plenário do Senado de representantes do Brasil que presta talvez seja mais perturbadora do que a presença de Sarney no centro da Mesa Diretora. Encerrado o espetáculo do cinismo, ninguém falou em nome dos injuriados. Ninguém contestou a discurseira absurda. Ninguém lastimou a decomposição do Legislativo. Ninguém sentiu vergonha. Os senadores ficaram parecidos com Sarney, que é a cara do Senado destes tempos tristonhos. Mais cedo para uns que para outros, a morte política chegará para todos. Tomara que a instituição sobreviva.

Os dois parágrafos que encerraram o post com o título Sarney esqueceu que a morte política vive à espreita dos muito vivos podem ser aplicados sem retoques à sessão em que Sarney, neste começo de fevereiro, celebrou outro triunfo e enxergou na própria vida um monumento à ética. Foi a reedição do espetáculo do cinismo encenado há 18 meses, quando tentou dissociar-se do acervo de bandalheiras descoberto nas catacumbas da Casa do Espanto.

Em 2009, a oposição redimiu-se parcialmente com a contraofensiva que por pouco não despejou Sarney do Congresso. Logo se saberá se os partidos que se declaram adversários do governo entenderam que apoiar secretamente um assassino da esperança é só uma forma silenciosa de suicídio político.

Sarney esqueceu que a morte política vive à espreita dos muito vivos

AUGUSTO NUNES
Direto ao Ponto/Veja.com

17 de junho de 2009 - Porque era provido do sentimento da honra, por ser capaz de sentir vergonha, Getúlio Vargas preferiu morrer a sujeitar-se a vinganças ultrajantes. Depois da mais dramática renúncia, o estadista gaúcho sobreviveu politicamente à morte física. Porque acha que nada desonra, por ser incapaz de envergonhar-se, José Sarney preferiu permanecer na presidência do Senado a reconhecer que ofendeu o Brasil que pensa. Depois de confirmar a tese de Jânio Quadros segundo a qual aqui ninguém renuncia sequer ao cargo de síndico, o morubixaba maranhense vai conhecer em vida a morte política.

“Em política só existe a porta de entrada”, repete Sarney a cada entrevista mais extensa. Claro que existem portas de saída ─ só não as enxerga quem imagina que a carteirinha de sócio do clube dos pais da pátria não tem prazo de validade. Há a porta da frente e a dos fundos. Por aquela saiu Getúlio, sobraçando uma comovente carta-testamento. Pela porta dos fundos vai saindo o presidente do Senado, no cangote de um discurso inverossímil.

Foi penoso acompanhar pela TV a performance do artista em seu ocaso. Mãos trêmulas, olhar de medo, a voz indignada contrastando com os desmaios no meio da frase sem pé nem cabeça, o homem que chegou ao Congresso há 50 anos, governou o Maranhão e o Brasil e preside de novo o Senado parecia um coroinha do baixo clero. Enfileirou argumentos indigentes, evocou atos de bravura imaginários, reinventou o passado de governista congênito e caprichou na pose de herói da resistência.

Sempre perseguindo erraticamente pontos finais, Sarney engavetou pecados antigos, subestimou os recentes, informou que os atos secretos não foram secretos e, caprichando na pose de vítima, exigiu respeito. “A crise não é minha, a crise é do Senado”, inocentou-se.

É isso aí, concordaram os presentes, com falatórios na tribuna ou com os gritos do silêncio. Todos fizeram de conta que Sarney não embolsou malandramente o auxílio-moradia, não promoveu a diretor-geral o bandido de estimação Agaciel Maia, não pendurou no cabideiro de empregos do Congresso duas sobrinhas, um neto, o ex-presidente da Assembléia Legislativa do Amapá, 50 parentes pra cá e 50 amigos pra lá. Todos absolveram o patriarca que tentara encobrir com um desfile de negativas a procissão de delinquências comprovadas.

Quando estiverem cauterizadas as feridas morais abertas pela Era da Mediocridade, o Brasil contemplará com desconsolo e desconcerto a paisagem deste começo de século. Como foi possível suportar sem revides as bofetadas desferidas por um político sem luz, orador bisonho, poeta menor e escritor medíocre? Como explicar a mansidão da maioria dos insultados pelo coro dos cúmplices contentes?

A ausência no plenário de representantes do Brasil que presta talvez seja mais perturbadora do que a presença de Sarney no centro da mesa diretora. Encerrado o espetáculo do cinismo, ninguém falou em nome dos injuriados. Ninguém contestou a discurseira absurda. Ninguém lastimou a decomposição do Legislativo. Ninguém sentiu vergonha.

Na quarta-feira, os senadores ficaram parecidos com Sarney, que é a cara do Senado destes tempos tristonhos. Mais cedo para uns que para outros, a morte política chegará para todos. Tomara que a instituição sobreviva.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O apanhador no campo de centeio

Dei uma parada no café da livraria Cultura, no segundo piso do Pátio Brasil, e pedi um expresso curto. O blend soube-me bem. Gosto da Cultura do Pátio Brasil, uma livraria grande e com imenso acervo. Exceto pela gritaria da música-ambiente é agradável lá. Tenho preferência pelas prateleiras de literatura estrangeira, para onde sempre me dirijo. Ao dobrar uma esquina estaquei ao vê-la. O corredor estava inundado de sol, manhã, rosas, Chanel, murmúrios. Meu dia mudou completamente. Era o início de uma tarde calorenta e dali eu iria para uma reunião de trabalho com meu sócio no portal Brasil CPLP, Marcelo Larroyed. Fora impregnar-me de ficção antes de mergulhar na realidade dos fatos.

Fiquei por ali. Avancei até a prateleira com os livros de Mario Vargas Llosa, mas como o corredor inundado de sol perdera-se de vista, retrocedi logo e parei nas prateleiras de literatura em língua portuguesa, de onde não perderia o corredor ensolarado. Na minha frente vi alguns exemplares de O Casulo Exposto, meu último livro, o que me deixa sempre mais alegre. Não sei quanto tempo demorei, mergulhado na inesperada manhã vespertina; apenas permaneci por ali o mais que pude. Ela devia ter uns onze anos, trajava um vestidinho de musselina e sua pele negra era alva como seda. Estava sozinha com as rosas na manhã ao sol, enquanto esperava seus pais, que, certamente, estavam por perto. Passei duas vezes bem junto dela. Lia O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger.

“Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer” - diz Holden Caulfield.

Todas as vezes que vejo uma criança lendo numa livraria lembro minha princesinha, minha filha. As livrarias sempre exerceram um poder mágico sobre nós dois. Às vezes, fantasio, só de farra, entrar numa livraria com um carrinho de supermercado e enchê-lo de livros, de todos os autores que amo e dos livros por quem me apaixonei e nunca os tive. Toda essa emoção aquela garotinha me proporcionou na sua manhã particular.

Eu também gostaria de ser um apanhador no campo de centeio. Aliás, é o que procuro ser. Fico na minha, e toda vez que é preciso impeço que alguém caia no precipício, e quase sempre apenas com um sorriso.

Falar em J. D. Salinger, Jerome David Salinger, o nova-iorquino autor do clássico O apanhador no campo de centeio, morreu de causas naturais no dia 27 de janeiro de 2010, aos 91 anos. Vivia isolado em sua casa, em Cornish, New Hampshire, Estados Unidos. Sempre fugiu da fama. O apanhador no campo de centeio foi publicado em 1951. Conta um fim-de-semana na vida do adolescente Holden Caulfield, de 16 anos, de uma família abastada de Nova York. Expulso do colégio interno onde estudava, Holden decide se aventurar pela cidade antes de voltar para casa e enfrentar seus pais.

O livro é uma espécie de marco. Antes dele, a sociedade não dava importância à adolescência, vista então como uma passagem entre a juventude e a vida adulta. O culto ao livro sofreu um abalo quando Mark David Chapman estourou a cabeça do Beatle John Lennon e afirmou que se inspirara em O Apanhador no campo de centeio. “Esse extraordinário livro tem muitas respostas” – disse Chapman.

A primeira vez que li O apanhador no campo de centeio foi em 1982, no café de uma livraria, em Niterói, bebendo Bohemia. O livro se tornou de cabeceira. Tudo o que Holden Caulfield queria era livrar as crianças do abismo pessoal dele, a adolescência. Mas Holden não recebeu a orientação certa para isso. Só obtemos capacidade de amar se recebermos a força necessária, e essa força é o amor, sincero, dos pais. Então, estaremos aptos para servir como apanhador.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Confraria Candango

Fizera um calor estúpido durante todo o dia, mas agora, já no início da madrugada, a temperatura estava agradável. Contudo Gim suava, apesar de estar apenas de camiseta. Gim vivia suando mesmo. Era o maior dos dois. O outro, apesar do seu metro e oitenta de altura, parecia bem menor do que Gim, pois batia-lhe no ombro. O telefone tocou e Gim atendeu. Ouviu o que disseram, desligou o telefone e o guardou no cinto.

- Calisto, o homem está saindo - disse para o outro.

Estavam dentro de um Gol, no estacionamento do bar e restaurante Anturius, no Setor Hoteleiro de Taguatinga. No começo da noite fora um entra e sai de políticos, empresários e jornalistas, mas àquela hora havia poucos carros no estacionamento.

- Lá vem ele - Gim avisou.

O homem que acabara de sair era pequeno e usava óculos. Teria menos de sessenta anos, mas seu cabelo já estava todo branco. Dirigiu-se para seu carro, também um Gol branco, estacionado ao lado do Gol dos dois sujeitos. Nem chegou a abrir a porta. Sentiu algo duro na nuca. Era o cano preto de um trinta e oito.

- O Gol é este - disse Gim, indicando, com o cano, seu carro. - Vai entrando!

O jornalista não esboçou qualquer sinal de surpresa e entrou tranqüilamente no automóvel.

- Posso fumar? - perguntou.

- Aproveite - disse Gim.

Arlindo tirou o maço de Hilton, ofereceu cigarro aos dois; diante da recusa de ambos, pôs um cigarro na boca e o acendeu. Calisto, ao seu lado, brincava com uma peixeira. Arlindo bebera bastante, mas, diante das circunstâncias, sentia-se sóbrio.

- Posso saber para onde os senhores estão me levando? - perguntou. Ninguém respondeu.

Já vira Gim, antes, mas não se lembrava onde. Concentrou-se e acabou se lembrando. Vira-o na Décima-Segunda Delegacia de Polícia. Por que o estavam seqüestrando? Seria por causa da sua investigação sobre caixa dois no Partido dos Trabalhadores do Movimento Democrático Brasileiro (PTMDB)? O presidente nacional da agremiação morava numa mansão no centro de Taguatinga, sob jurisdição da Décima-Segunda.

O Gol entrara em um local ermo, no Areal, atrás da Universidade Católica.

- Fim da linha, bonitão - disse Gim.

Arlindo desceu.

- Você vai parar com a investigação sobre o caso do PTMDB - disse Gim.

PTMDB. Essa sigla sempre soara mal nos ouvidos de Arlindo.

- Eu lamento, mas a próxima edição da Confraria Candango já está pronta.

- A edição vai ficar com a gente - disse Gim.

- Vocês foram mandados pelo deputado Jesus, não foram?

- A edição vai ficar com a gente e você vai esquecer esse assunto - disse Gim.

- De qualquer modo, a edição já está pronta...

Calisto deu uma cacetada tão forte na cabeça do jornalista que ele aterrissou e comeu capim.

- Ele não vai cooperar - disse Calisto. - Vamos apagar logo ele.

- Espera! Você não ouviu ele dizer que tem uma edição pronta? Temos de ir com ele até o jornal e destruir tudo - disse Gim.

Começou a chover de repente. Calisto chutou o jornalista na cabeça e depois pisou nela.

- Espera! - disse Gim - senão ele não vai poder dizer onde é que está a edição da Confraria.

Meia hora depois, Gim e Calisto estacionaram na CNB-7. Gim desceu e abriu uma porta, que dava para estreito hall e sinuosa escadaria. Não havia viv’alma na Avenida Comercial Norte. Arrastaram Arlindo até o hall e o jogaram lá, como se joga um saco de lixo. Sentiram movimento em cima. Alguém abriu uma porta.

- Vamos! - disse Gim. - O palhaço está morto e não sabemos qual é a sala.

A secretária do jornal chegava sempre antes das oito horas, preparava café e logo depois Arlindo entrava na redação e ia direto para a cozinha. Naquela manhã de sábado, Vânia chegou mais cedo, pois sabia que não tardaria a chover. Quase cai ao tropeçar em Arlindo. Ele gemia baixinho e uma bolha de sangue formava-se na sua boca. Vânia gritou.

- Ai, meu Deus! Socorro! - gritou, histérica.

Mais tarde, no Hospital Regional de Taguatinga, o médico explicou a Arlindo Filho: - Tivemos de drenar água de dentro do crânio dele.

- Filho - Arlindo sussurrou no ouvido do rapaz -, a arte do jornal está em casa, dentro do gavetão do guarda-roupa, no meu quarto. Leva-a para o Jornal de Brasília para rodar. Antes, manda tua mãe e teus irmãos para Goiânia, procura o pessoal da Confraria Candango e toma muito, muito cuidado. Vai!

Em seguida, Arlindo sentiu que mergulhava em uma vala cheia de sangue, mas agüentaria mais um pouco. Queria ver a cara do deputado Jesus e dos dois policiais quando lessem o jornal. Tinha de agüentar só mais um pouco. Depois, então, que se fodessem.


Brasília, 2002


Confraria Candango integra o livro O casulo exposto, à venda nas livrarias Saraiva, Cultura e Leitura, e na Loja Virtual da LGE Editora