RAY
CUNHA
BRASÍLIA,
18 DE AGOSTO DE 2021 – Todas as Gerações – O conto brasiliense contemporâneo (LGE Editora, Brasília), um
calhamaço de 516 páginas organizado pelo contista mineiro Ronaldo Cagiano, é
uma tentativa de reunir escritores representativos de Brasília, brasilienses da
gema ou de outras regiões do Brasil que vivem e produzem na capital, embora muitas
vezes ambientem seus trabalhos nas suas regiões natais.
Segundo a apresentação do
livro na amazon.com.br, “a antologia pretendeu mapear os principais autores
residentes em Brasília, desde os pioneiros até os mais recentes (inclusive os
já nascidos na cidade), abarcando todas as gerações, temáticas e tendências
formais e estéticas que animam o conto brasiliense.
“Em nenhum momento pretendeu
privilegiar a temática brasiliense, embora alguns contos abordem o tema.
Oriundos de diferentes regiões brasileiras, os temas abarcam todo o país, desde
os regionais aos urbanos, em linguagens que vão das mais tradicionais às mais
atuais, sem nenhuma pretensão de uniformidade, reunidos por sua qualidade e
representatividade”.
“É, sem dúvida, a mais
abrangente e mais completa coletânea de contos de autores da Capital Federal,
superando a antologia anterior do próprio Cagiano. Certamente, constitui-se em
documento inestimável para conhecer e estudar a literatura da cidade e que vai
merecer análises adequadas dos estudiosos no futuro imediato ou remoto. Pela
competência do antologista e pela excelência da edição, vai ser peça
indispensável em bibliotecas e em coleções particulares”.
Sou natural de Macapá/AP, cidade
seccionada pela Linha Imaginária do Equador e banhada pela margem esquerda do
maior rio do mundo, o Amazonas, na Amazônia caribenha, ou atlântica, e moro em
Brasília. Convidado para participar da antologia Todas as Gerações, selecionei o conto Latitude Zero, já publicado no livro Trópico Úmido, e ambientado na minha cidade natal.
Latitude Zero “fala de um grupo de jovens em descobertas
sexuais em Macapá. Pode ser visto como um conto de formação, embora carregado
do escancaro de Charles Bukowisk, o que é até compreensível em quem sobreviveu
às teorias de Freud e à revolução sexual dos anos sessenta” – disse o escritor
e jornalista Maurício Melo Júnior.
Com efeito, muito da
matéria-prima utilizada na invenção do conto foi retirada do mundo que
gravitava em volta da minha adolescência, na Macapá dos anos 1960, até a
primeira metade de 1972, quando caí fora da cidade, aos 17 anos, para voltar
sempre, desesperado de paixão.
Dos 14 aos 17 anos
(1968-1971), muita coisa aconteceu na minha vida, e a mais importante delas foi
a casa do poeta Isnard Lima Filho, na Rua Mário Cruz, onde morava com sua mãe,
a pianista Walkíria Ferreira Netto de Lima; era uma porta aberta para a grande
arte.
Lá, eu encontrava artistas
de todo o mundo, nos papos e nos livros. Conversávamos o tempo todo,
mergulhados no oxigênio do realismo fantástico, e Isnard Lima Filho nos ensinava
a ofertar rosas para a madrugada. Foi nesse tempo que minhas antenas de artista
foram desencapadas.
Latitude Zero é uma de minhas histórias curtas mais violenta,
e, provavelmente, a mais pornográfica, razão pela qual não deve ser lida senão
por adultos. Segue-se o conto.
O DEPÓSITO de madeira estava
adormecido como tudo o mais na madrugada, exceto a luz do poste debatendo-se
para escapar da névoa. A claridade lutava para libertar-se da neblina pegajosa,
e como carnicão rompendo a película do tumor, vazava, arrastando-se até o depósito
de madeira, infiltrava-se por uma fresta e incidia sobre o cenho franzido de um
rapaz. Ele parecia morto, pois respirava imperceptivelmente.
A luz do poste, agora,
agonizava na claridade dúbia do amanhecer. Uma chuva pôs-se a cair, adensando o
ar saturado de umidade. O rapaz mexeu-se, num gesto instintivo de quem tem
frio. Encolheu-se mais, agasalhando as mãos entre as coxas. As tábuas sobre as
quais deitara machucavam-no. Isto o despertou. Abriu os olhos como uma boneca:
só as pestanas mexeram-se. O resto todo ficou imóvel. Depois procurou alguém
com o olhar. Viu-o um pouco abaixo. Moacir Canto dormia ainda. O rapaz
levantou-se, estremunhado, e ficou olhando para Moacir Canto. Apalpou o bolso
traseiro à procura da carteira porta-cédula e não a encontrou. Meteu o polegar
e o indicador no bolsinho da calça e puxou uma nota de cinquenta cruzeiros.
Neste momento Moacir Canto despertou.
– Perdi a bolsa – disse o
rapaz, que se chamava Alexandre. – Mas tinha guardado cinquenta cruzeiros no
bolsinho da calça.
– Porra... – disse o outro.
Olharam-se e depois cada
qual olhou para si próprio. Haviam começado a farra no GEN, o bar do
ex-policial, que ficava na Rua Tiradentes. Alexandre havia ganhado as obras
completas dos irmãos Grimm em um concurso de contos e vendeu-as para a tia de
Moacir Canto por duzentos cruzeiros. Separou uma nota de cinquenta, pô-la no
bolsinho da calça e foram para o GEN. Tavares, o ex-tira, estava lá no lugar de
sempre, diligente, servindo bebida a dois caras. Alexandre pediu meiota de
Pitú. Tavares serviu-os com tira-gosto de jenipapo.
Limitavam-se a beber. Moacir
Canto incrustara-se no silêncio. Livrava-se do rancor que levava consigo
cagando em cima dos outros. Certa vez, trepado numa árvore da Praça Veiga
Cabral, deu uma cagada tão surpreendente na cabeça de um homem que o derrubou
no chão. Quando o tipo recobrou-se, Moacir Canto já tinha se limpado, levantado
as calças e se jogado de um galho mais baixo. Pôs-se ao fresco quase caindo de
tanto rir. Certa noite, pediu a Alexandre para segui-lo de bicicleta. Moacir
Canto ia na garupa de outra bicicleta, pilotada por Grosseiro. Ficaram andando
um pouco pela Praça Nossa Senhora da Conceição, até que passaram por uma moça e
uma menina. Grosseiro fez a volta, pedalando sem pressa, e tirou o fino da
menina. Moacir Canto se ajeitou e deu tal soco nas costas dela que o barulho
ecoou na praça inteira. Mas engraçado foi quando uma noite Moacir Canto achou
uma folha de coqueiro e saiu à procura de vítimas com Grosseiro. Alexandre foi
atrás para ver. Iam a certa altura da Rua Leopoldo Machado quando viram seis
estudantes, uma ao lado da outra, ocupando a largura do passeio público e parte
da pista. O tronco da folha de coqueiro ia pegar no pescoço dela. Era a mais
alta; uma moça rosada e vigorosa. Ela se abaixou na hora e a folha de coqueiro
passou voando por cima da sua cabeça. Moacir canto perdeu o equilíbrio e caiu.
A moça pegou a folha de coqueiro e desferiu um golpe no queixo de Moacir Canto,
que ia se levantando do asfalto. Grosseiro havia estacionado adiante e morria
de rir. Alexandre passou por perto de Moacir Canto e salvou-o de seis mulheres
furiosas. Para se vingar, Moacir Canto foi à sua casa, pegou um fio elétrico e
saiu atrás das moças. Como não as encontrou, atacou uma velha, dando-lhe tal
lambada no pescoço que a velha caiu com um grito horripilante.
Ele era um cara assim mesmo.
Seu ódio provinha da condição em que o pai deixara a família, na miséria, para
enrabichar-se por uma menina de quinze anos, mas que o manobrava como uma puta
experiente. No Dia dos Pais, Moacir Canto entrou lá e deu uma paulada na venta
do velho, arrancando-lhe pelo menos um dente. O pai de Moacir Canto era
policial. Telefonou para a polícia a fim de que pegassem o rapazinho, que devia
estar drogado para fazer um negócio daqueles. Ficou por isso mesmo. A sorte de
Moacir Canto era sua beleza. Tinha um belo queixo quadrado, o rosto oval,
sobrancelhas bem feitas e cabeleira leonina. Seus olhos, entretanto,
despertavam medo, sobretudo quando estava estupidificado de maconha. Certa vez,
Alexandre, Moacir Canto, Grosseiro e Galego Demônio amanheceram na Praia do
Barbosa. Alexandre e Grosseiro dormiam ainda. Moacir Canto e Galego Demônio já
haviam acordado há algum tempo quando avistaram a menina. Correram em cima
dela, agarraram-na e arrastaram-na para detrás de um aturiá. Alexandre e Grosseiro
acordaram com os gritos, correram para lá e viram Moacir Canto tentando
penetrar a menina por trás, enquanto Galego Demônio segurava-a pelos cabelos,
pelejando para a menina chupar o pênis grande, mole e purulento que lhe
empurrava no rosto. De todos eles, Alexandre era o único que tinha um pouco de
sensatez, e Grosseiro o atendia como a um cão. E assim livraram dos répteis a
menina.
– Está na hora da gente se
escafeder – disse Moacir Canto, no GEN.
Pegaram a Rua Cândido Mendes
e seguiram em direção ao Igarapé das Mulheres. Todas as noites Alexandre ia à
casa de Angélica, Sílvia e Graciette. Angélica estava no portão da varanda. Era
pequena e fofa. Usava os cabelos, de cor indefinido, bem curtos. Tinha os olhos
da cor dos cabelos e era estrábica, e tudo chamava a atenção no seu rosto: o
nariz arrebitado e os lábios vermelhos e entreabertos, como rosa despedaçada e
sumarenta. Isto, e os olhos, davam-lhe um ar de avidez ninfomaníaca. Sílvia
parecia uma fada morena. Tinha a pele cor de leite, os cabelos negríssimos e
longos, e os olhos azuis, da cor dos olhos do pai. Vivia sorrindo, com seus
lábios rosados. Tinha os dedos longos, ágeis ao piano. Era bem mais alta do que
Graciette. Os olhos de Graciette ficavam entre castanho e verde. Usava unhas
longas, que pintava de vermelho, e punha uma língua tão comprida na boca dos
rapazes que os sufocava. Era ruiva. Puxava a mãe, uma potra ainda jovem que
tinha o mesmo olhar canibalesco de Angélica.
As duas outras garotas estavam
na sala ouvindo os Beatles. Nem bem os dois chegaram, Sílvia foi logo convidando
Alexandre para dançar. Ele ficou excitado. Sabia o jogo. Ela se encostava nele,
os longos cabelos negros caindo pelo rosto e pelos ombros de Alexandre. Ela não
usava soutien; os seios duros espetavam-no, e ele, de vez em quando, via os
bicos rosados dos peitos através da blusa meio desabotoada. Alexandre ia
ficando cada vez mais descontrolado. Ela batia com o púbis sobre o pênis de
Alexandre, rijo como um osso, e ele aparava as batidas prestes a gozar.
– Vamos para o quarto? –
disse Alexandre.
Ela não falou nada. Puxou-o
pela mão em direção ao quarto amplo e bem arrumado. Sílvia era tão delicada!
Desafivelou o cinto, abaixou o fecho éclair - ele não usava cueca –, pôs o
pênis duro para fora. Ela, com seus olhos azuis, olhava maravilhada para o
pênis.
– Caralhinho lindo! – disse,
e desceu, suavemente, seus lábios rosados sobre a glande vermelho-escura, que estava
para estourar. Ele não aguentou muito tempo. Logo se desintegrou em um gozo
suculento, inundando aquela boca de fada, respingando de esperma os lábios
sedentos.
Três pares de olhos
acompanhavam tudo, sem perder nada. Ao ver o suco espermático escorrendo da
boca da irmã, Angélica se despiu num piscar de olhos. Tinha a bundinha mais
linda do mundo. Estava gozando só de ver. Possuía o dom dos gozos múltiplos.
Pegou os cabelos de Alexandre e puxou-o para seu púbis. Cheirava a Mateus Rosé,
e o líquido que escorria pela sua coxa tinha sabor de acme. Ao ver o traseiro
de Angélica, Moacir Canto enfiou-se ali. Graciette masturbava-se com seus dedos
de garras e chorava.
Era meia-noite. Os cinco
estavam banhados, na sala, bebendo vodka e ouvindo os Beatles, quando a mãe das
meninas chegou. O pai delas, como sempre, fora a Belém. Dona Frênia deu um alô
para os garotos, a caminho do seu quarto.
– A velha está bêbeda –
Moacir Canto cochichou para Alexandre.
Foi neste momento que a
garrafa de Wyborowa do pai das meninas, que Alexandre bebeu, subiu de uma vez
para a cabeça dele.
– Vou fodê-la – disse,
ensaiando ir para o quarto da dona Frênia.
Moacir Canto estava em
melhor estado. Atirou-se de cabeça nele. As meninas jogaram-se também em cima
dele. Acabou tudo numa risada geral.
Quando Alexandre voltou a si
estava deitado no meio da Rua Cândido Mendes, de braços estendidos como Jesus
Cristo na cruz, gritando: fodam-se seus filhos da puta. Então começou a chover.
O chofer do táxi não estava vendo as coisas muito bem e pegou um susto ao
vislumbrar aquele vulto erguer-se do asfalto quase em cima do carro. Parou para
averiguar do que se tratava. Alexandre entrou no táxi. Moacir Canto veio
correndo da calçada, onde estivera vomitando, e entrou no carro.
– Bar Caboclo – Alexandre
disse ao motorista.
A chuva engrossara. Da mesa
onde estavam podiam ver a chuva estalar na calçada. Bebiam em silêncio a
meiota, em pequenos goles de apreciadores de bebida.
– Vamos voltar à casa das
meninas? – Alexandre sugeriu. Moacir Canto levantou-se incontinenti.
– Desta vez quem vai comer a
velha sou eu – disse.
– Está bem – Alexandre
concordou, chamando o garçom e pagando a meiota.
Saíram do bar na chuva, que
estava mais fina agora. Atravessaram a Rua Cândido Mendes na altura do antigo
Igarapé da Fortaleza. Escorregaram numa poça d’água no outro lado da rua.
Chapinharam lá dentro, até que Moacir Canto conseguiu levantar-se e arrastar
Alexandre para fora da poça. Andaram em direção ao rio Amazonas, mas pararam
logo adiante, ao verem que alguém passava a chuva debaixo de uma marquise.
Aproximaram-se. Era uma moça. Moacir Canto disse alguma coisa para a moça. Ela
tentou falar, mas era muda. Moacir Canto pegou-a e começou a se esfregar nela.
A moça tentava afastá-lo. Moacir Canto subiu a saia dela e depois desceu a
calcinha. A muda começou a rir e depois procurou beijar Moacir Canto. Ele se
desviava dos seus beijos e aquilo fazia Alexandre se torcer de rir. Quando
parou de rir não viu mais a muda. Moacir Canto estava com uma calcinha na mão.
De quem diabo era aquilo? Subiram por uma escada lá mesmo naquele prédio.
– Conheço um cara que mora
em um apartamento lá em cima – disse Moacir Canto. – É da polícia e é veado.
Bateram lá e logo um sujeito
branquela meteu a cara na porta entreaberta.
– Oh! você! – disse para
Moacir Canto, olhando também para Alexandre. – Entrem! Entrem! Vou preparar um
drink para vocês. Por que vocês não tomam banho?
Serviu duas doses generosas
de whisky e foi ver o frango que pusera no fogo. O cheiro da canja empestava o
ambiente, mas para os bêbedos nada importava. Sentaram-se, com o whisky ao
lado, e puseram-se a bater papo.
– Tenho roupas secas... –
interrompeu o escrivão, tentando atrair a atenção deles.
– Basta o teu whisky – disse
Moacir Canto.
– Isto aqui é um buraco –
dizia Alexandre, deixando o escrivão desconfiado. – Uma merda! Senão vejamos:
que escritor temos aqui? Nenhum! Há o R. Lima, mas o R. Lima não escreveu mais
do que um livro de poemas, que teve uma tiragem ridícula de quinhentos
exemplares. E por quê? Porque não temos editora, porque não temos público,
porque não temos aplauso.
O escrivão ficou menos
preocupado ao perceber que não falavam do seu apartamento.
– É uma sepultura... – disse
Moacir Canto.
– Uma sepultura e uma
fábrica de poetastros – disse Alexandre. – Vês o caso do Galego Demônio, que
lança um livro mimeografado por semana...
– Não sei como aquele
traficante que banca as baboseiras dele ainda não percebeu que se trata de um
psicopata mitomaníaco e megalomaníaco.
– No seu livro mais recente
ele resgata os últimos estupros que cometeu – disse Alexandre.
– Nem a irmã dele escapou –
disse Moacir Canto. – E com aquela gonorreia crônica...
– Quis comer o diretor do
Colégio Amapaense, o professor Olhudo.
No dia em que isso
aconteceu, Alexandre estava estudando em casa para fazer quatro provas logo
mais à noite quando Galego Demônio chegou com seu livro Eu Imortal debaixo do braço.
– Vamos já para Serra do
Navio – disse a Alexandre.
– Tenho quatro provas hoje à
noite.
– O estudo formal embota os
neurônios. Já está tudo certo: vagão-leito especial no trem, suíte no hotel e
duas professoras mineiras para uma bacanal.
Alexandre ficou calado.
– Partamos já para a
aventura! A rotina é um veneno lento. O bar nos espera. Serra do Navio é um
apelo irresistível com suas fêmeas mineiras.
– Resolvi ir, mas não porque
Galego Demônio tivesse me convencido a ir, com aquele papo dele. Estava
entediado só de pensar nas quatro provas.
Moacir Canto serviu novas
doses de whisky e Alexandre pôs-se a contar o resto do caso. Já anoitecia
quando ele e Galego Demônio saíram da casa de Alexandre, entraram no bar da
esquina e pediram uma meiota. Não demoraram lá e foram a seguir para o Picolé
Amigo, um bar onde R. Lima bebia de vez em quando. Com efeito, encontraram-no
lá.
– Lembro-me que no Picolé
Amigo houve uma discussão entre R. Lima e Galego Demônio. Galego Demônio estava
botando muita banca e R. Lima disse que seu livro deveria se chamar Eu Idiota, porque ao ler os originais de
Eu Imortal encontrara jacaré com g.
– Do ponto de vista da linguística
é possível - Galego Demônio se defendeu. - Sobretudo para um niilista igual a
mim.
– E foi com o niilismo dele
que eu tomei no rabo - disse Alexandre para Moacir Canto. Acabara resolvendo,
no Picolé Amigo, que deveria fazer as quatro provas, e não teve quem o
dissuadisse da ideia. Galego Demônio foi com Alexandre para matar algumas
questões. Ao chegarem ao Colégio Amapaense um inspetor disse-lhes que não
podiam entrar senão uniformizados. Alexandre pediu para falar com o diretor.
Impressionado, ou melhor, narcotizado com o bafo de bebida, o inspetor não opôs
objeção em anunciá-los ao diretor, que estava ali perto fiscalizando ele
próprio se os seus meninos encontravam-se devidamente uniformizados. Quando
Alexandre e Galego Demônio se aproximaram do diretor ele estava atendendo um
recruta do Exército que saíra do quartel diretamente para o Colégio Amapaense,
de modo que não pudera vestir o uniforme de estudante. Levado pelo hábito, o
rapaz se perfilou.
– Ô idiota! Esse gajo não
passa de um professor de História! - observou Alexandre para o recruta.
– O quê?! – gaguejou o
diretor.
– Seu merda, foste tu que
levaste A Galinha para o governador,
aquele ditador do caralho – disse Alexandre, referindo-se ao jornalzinho que
lhe rendera dez dias de suspensão.
– Vou chamar a polícia – disse o diretor, com seus olhos que eram esbugalhados de nascença.
Galego Demônio tinha visto
umas fêmeas gostosas e tentou pegar no rabo de uma delas. A moça deu um grito
que chamou a atenção do diretor; ele passou uma reprimenda em Galego Demônio. A
reprimenda foi mesmo que nada. Galego Demônio já estava com o pau para fora e
tentou metê-lo no diretor.
– Foi uma cena muito
engraçada aquele veado de uma figa correndo com o Galego Demônio atrás, com
aquele pau mole dele, pingando gonorreia. Descemos correndo a escada, pois a
polícia já fora chamada, e voltamos ao bar onde deixáramos R. Lima. Pedimos
mais uma garrafa de Pitú. Iríamos cedo para Santana e de lá embarcaríamos para
Serra do Navio. Mais ou menos à meia-noite R. Lima foi embora e ficamos só nós
dois no bar. Tomamos mais duas e zarpamos. Daí não me lembro mais de quase
nada.
Alexandre cochilou. Acordou
com uns respingos quentes no braço. Moacir Canto tinha se levantado, aberto a
panela de canja e levou-a para a sala, quando a panela virou, espalhando canja
pelo chão. O escrivão cantava alegremente no banheiro. Moacir Canto pegou o que
ainda restava da canja na panela, foi até a porta do banheiro e jogou a canja
lá para dentro. O escrivão deu um berro. Ao ouvir o grito, Alexandre
levantou-se rapidamente pronto para correr. Antes de ir embora Moacir Canto
olhou em volta e depois, como se lembrasse de algo, pegou a chave da porta.
Nestas alturas o escrivão saiu do banheiro chorando e todo melado de canja.
Moacir Canto saiu e fechou a porta por fora. Lá embaixo, jogou a chave no
esgoto que cortava a rua longitudinalmente.
– Vamos pegar um ar lá na
amurada? – disse Alexandre.
– Vamos pegar um rato podre
no pescoço? – disse Moacir Canto, atirando nas costas de Alexandre uma ratazana
morta, que encontrara na calçada, correndo depois para a amurada que dava para
o rio, ao lado da Fortaleza São José de Macapá.
Alexandre abaixou-se numa
poça de água e lavou o pescoço. Depois andou em direção a um depósito de
madeira. Moacir Canto veio também e entrou no depósito. Alexandre adormeceu
recordando de A Galinha, o
jornalzinho que não passou do primeiro número. Havia, em sala de aula, um
ricaço. O pai era dono de boa parte da cidade. Ele se ofereceu para financiar o
jornal. Foram, então, uma noite, para a casa do ricaço. O filho dele os levou
para o gabinete de trabalho do velho. Lá pelas tantas Alexandre tirou o
telefone do gancho e discou um número qualquer. Nestas alturas, o velho estava
tomando soro no quarto dele e apanhou a extensão para saber do que se tratava
àquela hora da noite, quase onze horas.
– Alô! – disse uma voz de
mulher, sonolenta.
– Quem é?
– Solange – disse a voz.
– Oh! Solange! Minha doce
cadelinha, vaquinha linda, minha bocetinha fedendo a merda, vou já aí para
empurrar meu caralho na doçura do teu jardim de trás...
O ricaço arrancou a agulha
da veia, pegou um cinto e irrompeu no escritório. O velho entrou dando lambada
no filho dele. Havia, além de Alexandre, outro redator, um garotão de cabeça
raspada, que montou na sua bicicleta e se evaporou.
O primeiro número do jornal,
e único, saiu com uma matéria sobre o governador, o general ditador do Amapá.
Dizia que ele passava o dia de binóculos por trás das persianas da sua sala, no
Palácio do Setentrião, tentando ver, do outro lado da Praça da Bandeira, as
calcinhas das estudantes que se sentavam sobre o muro do Colégio Amapaense.
Sobre o diretor do educandário dizia que tinha um acordo tácito com algumas de
suas alunas, de modo que lhes dava nota dez se elas se arreganhassem e o
deixassem ver suas calcinhas nas aulas de História. Na mesma edição foram
escolhidos os dez mais punheteiros. O diretor enviou um exemplar do jornal ao
secretário de Educação, que o enviou ao governador. Mas nesse trâmite o
exemplar desapareceu. Houve um inquérito e os responsáveis por A Galinha, que na expectativa dos
rapazes deveria pôr ovos de ouro, acabou rendendo-lhes dez dias de suspensão.
Quanto a Galego Demônio,
naquele mesmo dia tropical úmido em que Alexandre ganhou as obras completas dos
irmãos Grimm, o poeta entrou no Gato Azul e pediu uma dose de rum Montilla.
Fazia aquilo ordinariamente e bebia até o anoitecer. Então voltava para casa,
jantava e saía. Naquele dia bebera além do normal. Ao retornar a casa não
encontrou ninguém. Estava sozinho. O pai fora comprar açaí no arquipélago do
Marajó; a mãe estava em Belém; a irmã, sabe Deus. Foi ao fogão. Comeu nas
próprias panelas. Sentia-se pesado. Foi ao quarto. Deitou-se. Dormiu. Canguru
Sem Freio, a irmã, estivera escondida, espreitando-o. A claridade da luminária
do poste vencia o piche da noite sem estrelas e entrava no quarto, banhando os
móveis com um manto irreal. Galego Demônio dormia de peito para cima. Assim,
dormindo, era belo como qualquer jovem da sua idade. A primeira machadada pegou
no lado do pescoço. Galego Demônio acordou como se estivesse impulsionado por
molas. Tentou agarrar-se em alguma coisa e começou a gorgolejar como porco
sangrando. Canguru Sem Freio ligou a lâmpada e olhou para Galego Demônio.
Ergueu de novo o machado. Galego Demônio fitou-o aterrado e começou a
arrastar-se para um dos lados da cama, já empapada de sangue. Canguru Sem Freio
depôs o machado no chão, com o cabo encostado na cama, desafivelou o cinto de
Galego Demônio e arriou sua calça, juntamente com a cueca. O pênis de Galego
Demônio estava com os curativos purulentos como sempre. A machadada deixou-o
apenas pendurado pela pele do escroto. A próxima machadada seccionou-o. Depois,
Canguru Sem Freio aprumou bem o machado, como se fosse dar o golpe final em um
tronco que estivera tentando partir ao meio, e desceu-o. A cabeça de Galego
Demônio pulou e foi bater na parede. Canguru Sem Freio arrastou o corpo
mutilado, desceu as escadas, caminhou até o monturo e atirou-o sobre o monte de
caroços de açaí. Chovia como o diabo. Canguru Sem Freio voltou ao quarto de
Galego Demônio, levando seu pistom, e pôs-se a tocar O Silêncio.