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Fernando Canto e Ray Cunha. O autor de Tempos Insanos amplia Macapá com a sua existência, torna-a mais rica em possibilidades, em aventura (01/2022 – orla do rio Amazonas) |
RAY CUNHA
BRASÍLIA, 11 DE FEVEREIRO DE 2022 – Conheci Fernando Canto por volta de 1969; tínhamos em torno de 15 anos e eu morava perto da casa do Fernando, no Morro do Sapo, Laguinho. Já frequentava, então, a casa do pai da minha geração perdida, Isnard Brandão Lima Filho, na Rua Mário Cruz, amava os Beatles e bebia como Ernest Hemingway.
Em dezembro de 1971, publiquei,
com Joy Edson e José Montoril, um livrinho de poemas, XARDA MISTURADA, e no ano
seguinte peguei o que pude de exemplares desse livro e me mandei de Macapá.
Peguei um barco para Belém e, de lá, consegui carona em um caminhão via
Belém-Brasília e de Brasília fui parar no Rio de Janeiro, onde convivi com o
músico Aimorezinho Nunes Batista e seu irmão, Itabaracy, com o compositor Luiz
Tadeu Magalhães, com o poeta e pintor Manoel Bispo e com o pintor Abenor Pena
Amanajas, até 1974, quando peguei de novo a estrada.
De volta a Macapá, tentei retornar
aos estudos, o quarto ano ginasial, mas eu continuava extremamente inquieto e a
estrada me atraía irresistivelmente, e assim tomei outro barco e desta vez
segui para Santarém e depois para Manaus, onde morava tia Izabel, irmã de meu
pai, João Raimundo Cunha. Em Manaus, consegui emprego como repórter policial do
Jornal do Commercio. Era o ano de 1975.
Vivi em Manaus até 1977.
Trabalhei, depois do Jornal do Commercio, em A Notícia e A
Crítica. Foram dois anos de farra, que me deram elementos para escrever o
conto A GRANDE FARRA. Mesmo assim sentia-me entediado. As coisas estavam
acontecendo mesmo em Belém, onde moravam o pintor Olivar Cunha, Isnard Lima e
Fernando Canto, além de vários amigos de Macapá.
A estrada novamente me tragou.
Peguei um avião e me mandei para Belém, onde consegui emprego como repórter em O
Liberal. Eu continuava com apenas o quarto ano ginasial, o equivalente,
hoje, ao último ano do ensino fundamental, mas as empresas jornalísticas ainda
aceitavam jornalistas sem diploma.
Foi nessa época que estreitei
minha amizade com Fernando Canto. Bebíamos e conversávamos muito. O Fernando
tinha um tio que era dono de bar e quando aparecíamos lá, bebíamos de graça.
Certa noite bebemos tanto gim no bar do tio do Fernando que no dia seguinte eu
rescendia a gim.
Em 1980, retornei ao Rio e em
1982, a Belém. Submetera-me ao supletivo de primeiro e segundo graus e ao
vestibular da Universidade Federal do Pará e passei no curso de Jornalismo.
Graduei-me em 1987 e retornaria ao Rio, mas, em Brasília, Walmir Botelho, então
diretor de redação do Correio do Brasil, me convidou para trabalhar com
ele como redator da capa do jornal. Aceitei, casei-me com a gata Josiane Souza
Moreira Cunha, nasceu minha princesinha Iasmim Moreira Cunha e até hoje moro em
Brasília.
Aqui e ali vou a Macapá, onde
tenho encontro marcado com Fernando Canto. A última vez que estive lá, de 11 a
16 de janeiro passado, foi uma grande farra. Estivemos juntos quase o tempo
todo, vagabundando por toda a orla, até o Curiaú, e parando em restaurantes e
bares da cidade. Encontrei com o Manoel Bispo e bati um longo papo ao telefone
com a Alcinéa Maria Cavalcante, musa da minha geração e a grande dama da poesia
macapaense.
A realidade é infinita como a
própria vida. Cada qual tem a sua própria realidade, assim como cada
circunstância e cada local e horário tem realidade específica, de modo que a realidade
é um labirinto infinito em sucessão e variação. A sensação de que só há uma
realidade é que só nos encontramos em um determinado ponto desse labirinto e em
determinado momento, de modo que aquele ponto e aquele momento criam a ilusão
de que só há aquela realidade.
De certa forma, isso se parece
com a observação do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), de que
só é possível chegar ao entendimento ao superar as próprias circunstâncias, que
estão, por sua vez, em permanente processo de mudança: “O homem é o homem e a
sua circunstância”. Acho que, em suma, esta foi a conversa que tive com
Fernando Canto, durante os quatro dias em que estive em Macapá, ora a bordo do
carrão tipo James Bond do Fernando, ora em bares, ora ao telefone.
Fui à Macapá para ver minha irmã
Linda, que está bem. Fernando Canto e eu batemos muito papo durante esses
poucos dias. Senti-me personagem de ficção, o Mundico dos TEMPOS INSANOS,
conto publicado inicialmente no livro O Bálsamo e Outros Contos Insanos, pela Editora
da Universidade Federal do Pará, em 1995. Na companhia do Fernando sinto a
velha sensação de aventura, de novas possibilidades, de coisa nova.
Acho que vale a pena transcrever
o conto OS TEMPOS INSANOS, comentado. Trata-se do melhor texto, o
mais criativo, de um escritor que vem, a cada dia, se assenhoreando mais e mais
do labirinto da vida, que já compreendeu que a verdadeira vida se passa em um
plano mais sutil do que o da matéria, pois ele, como eu, já aprendeu a voar na
luz.
“My friend Mundico (Mundico sou eu)
“Como vai, seu puto? Espero
encontrar você como sempre, lúcido e saudável. Eu estou indo, me arrastando
neste vale de adrenalina, sempre pensando na morte, nas coisas que deixei de
fazer e querendo-e-não-querendo me matar. É que os acontecimentos às vezes me
induzem a esse desatino.
“Mesmo sem tempo para escrever e
meio surdo pelo barulho vindo lá de fora, hoje, enfim, resolvi iniciar esta e
lhe contar o que está acontecendo, talvez como registro deste tempo insano.
Olha, é difícil para mim falar de tantas agruras num lugar onde tudo é
inopinado, como lâmina a se movimentar no escuro e a cortar meu coração cheio
de saudade. Uma coisa, entretanto, posso garantir: o velho coração é duro para
com as coisas duras. Eu aprendi a domá-lo e a dosar seu líquido nas
circunstâncias mais terríveis, graças àquilo de que sempre debochavas. O coração
ganha forças misteriosas quando é tempo da Grande Reverência, do ajoelhar
contrito do nosso sofrido povo. É que por aqui os dias passam como se
andássemos de mãos atadas em uma estrada cheia de buracos, sob os olhares
vigilantes de rottweilers.
“Lembra-se do Círio, my friend?
Da procissão que sacaneavas imitando o barulho de foguetes subindo e
explodindo? Ah, vê-lo e participar do seu clima são as únicas alegrias que
tenho e que me comovem, pois é indizível o fervor e a fé quando a Santa passa
no seu andor iluminado. Faço minhas preces e comungo das aspirações do povo,
mas não sou mais um sentimental. Hoje isso é luxo, coisa do passado. O que
existe mesmo é um grande sentimento de ira coletiva escamoteada por todos. Um
dia falarei a você sobre essas coisas.
“Mundico, como o Círio mudou! E
nós com ele. Pudera! O tempo passa e a gente só espera o fim da vida – o último
objetivo racional e grande referência da existência.”
Comentário: Para a personagem
narrador tempos insanos quer dizer tempos de desencanto, de cansaço. De muito
esforço para obter pouca coisa. Talvez o narrador sinta saudade do Mundico,
pois quando os dois se encontram há sempre bebida, comida e papo interminável,
ou seja, o prazer de descobertas infinitas.
Falar nisso, voltei a comentar com
o Fernando, no nosso último encontro, que namorei sua irmã, a Savina, por pouco
tempo. Já havia comentado isso com ele, mas ele havia esquecido. Talvez tenha
sido bom a Savina e eu não termos namorado por muito tempo, pois, assim, só
houve tempo para sentimos o perfume das flores na brisa do Trópico Úmido. Só
houve suavidade no nosso relacionamento. Não houve tempo para mais nada, pois
logo sumi no meu labirinto, e ela, como os beija-flores, continuou seu voo
atraída pelos jasmineiros e as orquídeas.
“Mund, parece que estou vendo a
tua cara irônica, cheia de deboche. Mas, porra, eu creio na pós-vida,
principalmente depois das notícias sobre as últimas descobertas científicas que
aqui chegam para mim clandestinas. Elas vêm para dirimir minhas dúvidas e
proporcionar algumas certezas, tirar meus pensamentos doentios de suicídio.
Ora, como qualquer imbecil que crê, procuro umas mil respostas para poucas
perguntas quase nunca formuladas – Oh, drama da existência.”
O narrador é uma personagem de
ficção, é claro, e as personagens de ficção, especialmente o narrador, mantêm
sempre alguma intimidade com o criador, de modo que se o narrador dos Tempos
Insanos influenciou o Fernando, notei, no nosso último encontro, que o
Fernando cada vez mais entende o que é a vida, que a vida é infinita, que a
matéria é o estado mais primitivo da vida e que há vários planos, portais, cada
vez mais sutis. Acho que já disse isso, mas gostei de repetir.
“Já é tarde, my friend. Não posso
garantir que esta carta chegue em suas mãos, mas, amanhã, eu prometo. Prometo:
continuarei a lhe
“Mundico.
“Hoje eu pensei seriamente em lhe
escrever de forma que só nós dois pudéssemos entender. Em mandar notícias em
Nhiengatoo ou Nhengatu, algo assim; em me comunicar em euroguês, Portullano,
qualquer porcaria de língua patuá. Depois, pensei: será covardia minha? Sei, é
possível a interceptação desta carta, mas nem por isso deixarei de escrevê-la.
Uma carta faz um covarde desde que interprete de modo parcial o pensamento do
autor, porém fará um herói no futuro se o emissor e o receptor compactuarem da
mesma angústia nela perpassada, e caso sobreviva aos tempos insanos. Mas, veja
bem, estou apenas dando o meu testemunho a você. Juro pela Virgem Santa. Pensei
mesmo em lhe escrever pelo código que inventamos no tempo de escola, lembra?
“My friend.
“O Santa pa ça na cêu andorp. Ot
cointhy pirn aki tom maiatuk e utek duriming: ji argor trasrej doz mirramtro qh
coabre mem nuh tripro sessirâmpulo ou entião fautla poqo prwerry dz-q
bariinobaldi. Axoêu qe tâm botango nu nozo kuul. Aqredt, Mundico, Ecoaxo q tamo
futidoo.
“Como não sei se você se lembra
desta forma de comunicação, tentei de outro jeito. Leia:
“Friend
“No Munduruquis cam Paricus os
poanduba txucarramaram las mães des curumins pu cause das xerimbabos cuê
igarapeavam os quatiaras des mures de todes las ocas. Vil? The robots-paranás
das oillos pequenos a tucurussu coameng poracaçaramente des nozas rayces. La
Zantyzima Zante Nassarrê cunham puranga putera poranga nahy aé. Nas Zommes
tupam moeteçaba. Yané renodé. Poraiam kiririm. Oh, Mundico! Oh, Mundico! OOOh,
i am sad because unz poraquês dãumz xoqes nas meos cullões! Valhai-nos Virgo
Zanta!
“Desisti, mano. Vou narrar as
coisas do meu jeito, sem precisar de artifícios. Dê no que der eu já a iniciei
mesmo. Um dia vou terminá-la, isto é, se os pequenos urubus-laranjas não a
descobrirem e aqui virem me beliscar com seus bicos de
“Friend
“De uns tempos para cá a Grande
Festa deixou de ser uma manifestação de pura fé. É uma farsa consagradora do
poder dos governantes, reunião de fantasmas que carregam o desejo de
realizações como armas individuais. É a trajetória de uma multidão de zumbis a
buscarem o segredo da História, pois dela se ausentaram há tamto tempo que se
torna impossível pensar em outra explicação senão esta. Outro dia deu no jornal
fibroso – o Diário de Nazaré – que era necessário repensar o conceito de
Círio, o conceito de fé e sobretudo as abstrações sobre teos e seu
intermediários entre os homens. A Santa Virgem era o objeto maior da discussão.
Dizia o editorial que os romeiros a ela só se dirigem para pedir a
concretização de seus desejos e pouco ou nada dão em troca. Dissimulava nas
entrelinhas o desinteresse da Corporação Nazarena ao apoio material do povo a
la Chiesse-í. Adiante o editorialista enfatizava que na realidade ela não
precisava desse apoio menor porque o Governo Departamental subsidia o Círio e as
festividades do ano inteiro. Ora, ora... Pra cima de nós! Os Demiurgos
Nazaristas Seniors são homens prósperos, principalmente após a publicação da
Bula Bispal sobre o celibato facultativo.
“Famílias abastadas – os
recém-ricos – voltaram a enviar seus filhos aos seminários e isso vem
proporcionando um franco crescimento do Cristianismo Católico Puro, com sede
mundial ainda em Brasília, um território neutro, no planalto central do
continente. Convém lhe dizer que essa religião ganhou e consolidou seu espaço
junto ao povo porque feriu, atacou e esfacelou dezenas de seitas
pentecostalistas e místicas ao longo dos anos. Digo-lhe mais, my friend, a
oportunista Chiesa-í vive de mãos dadas com o poder de forma acintosa. E não se
trata de falar assim por mero moralismo. É a revolta me batendo por ver a
História correr como um rio e a gente aqui sem forças para desviar a água. Para
você ter uma ideia, cinicamente alguns dignitários são homenageados com
comendas criadas especialmente para eles. Há homenagens e homenagens
recíprocas. E eles gostam. Acho eu, nenhum governante em tempo ou lugar algum
do planeta impediu por livre vontade que o narcisismo tomasse conta de suas
faculdades mentais. Adoram o fato de serem adorados. Daí a tirania, porque o
verdadeiro tirano emite um raio energético sobre seus governados e se torna um
ímã em busca de corpos menores para se fortalecer contra os inevitáveis
inimigos.
“Olha, brother, não há nada de
novo nesta afirmação, mas considero verdade que todo governante é tirano no
limite de sua sanidade. Na medida em que extrapola esse limite, torna-se um
deus impregnado de poderes, que o leva a fazer parte da História. Mas sua
glória é ou será efêmera, ainda que o mérito de ter sido eficaz durante todo o
tempo de seu mandato. Este é o papel do tirano, desse modelo abrasível da
escória humana. Daí a minha ira. Minha vontade, agora, é
“My
“A
mágoa, o medo, a revolta... são elementos vivos que só consigo dominar em mim
através da Mega meditação Cósmica e da profunda admiração e fé que sinto pela
Virgem Nazarena. Pelo seu espírito de luz eu levito, me desdobro, me
quintessencio. Sempre a vejo nesta época sombria, só amenizada pelo emanar de
sua energia, quando ela passa no andor iluminado a lêiser. Eu sei e afirmo, ela
sempre anda no meio da multidão, anônima. Sua luz espiritual é forte, mas
imperceptível para a maioria. Só a percebe quem pratica o trans da Mega
meditação.
“Porra,
brother, sou
um energúmeno da nova era! Deixe-me contar: Há tempos, vi um dos mais bonitos
Círios de minha vida. A santa era a minha única esperança de continuar vivendo
depois de tantas lutas esvanecidas. Ali estava Maria de Nazaré rindo em sua
Glória, mesmo cansada pelo peso de Iesus Baby nos braços. Linda, radiosa no andor,
parecia rir ao povo dedicado à sua adoração, não obstante o canto da boca vez
por outra expressar um muxoxo de deboche a muitos dos que ali estavam apenas
por uma obrigação anual. Ela sentia a esperança pulsar no coração de todos e a
sinceridade de seus verdadeiros devotos. (Os santos, my friend, se
satisfaziam com bem pouco, por isso nada cobram do que realizam na matéria dos
homens). De vez em quando a Senhora estendia os olhos sobre a multidão e
desaprovava a ação dos que se autoflagelavam na quilométrica e pesada corda de
promessas. Ao fim da caminhada, a corda seria lambida pelos cães famintos, pois
nela se grudavam, inúmeros pedaços de pele das mãos e dos ombros de toda aquela
gente crente. No correr dos anos tomou-se um grande respeito popular por esse
ritual criado ao acaso. O chamam até hoje de Ceia dos Cães da
Santa.
“Dessa
vez eu fiquei um tanto confuso, veja só: vi a Santa como uma mulher. Não sei se
por causa das vestes ou do sorriso cativante. Devo confessar, Mundico, o
sorriso encantava, e eu me apaixonei por ele. É rara a imagem do santo que
sorri. Mas a dela... Talvez pelo fato de ser considerada virgem, carregando um
menino no colo eu tinha tido tanta ternura e excitação. Lembro-me: tirei o
menino adormecido de seus braços, a desnudei do seu rico manto e a acariciei
por longo tempo. Estava linda sobre seu vestido adornado de pedras preciosas. Iesus Baby
dormia a nossos pés sobre pétalas das mais variadas flores da ornamentação do
andor. Ficamos juntos grande parte do lento trajeto. Só eu e ela. Sem ninguém
perceber minhas carícias e o meu amor. Uma paixão explosiva, inesperada... Ah,
eu fiquei libidinoso, me envolvendo de tal maneira que na loucura de meu
devaneio ejaculei num gozo profundo.
“No
túnel da onda humana eu tombei. Na rua. Ciente de que ninguém percebera minha
polução onírica. Não, não poderia caracterizar meu ato involuntário como um
pecado vulgar. Já lhe disse, sou um energúmeno. Sou um instrumento da possessão
da energia cósmica. Minha fé não estava ausente. Eu a adorava literalmente. A
proibição do sexo na realidade e o velho conceito de pecado original foram
abolidos, você sabe, desde os tempos da regulamentação do casamento endogâmico
entre Demiurgos e Demiurgas, reconhecidamente autoridades do Catolicismo Puro.
"Eu
não quis ofender nem a ela nem minha fé. Nem sou o que chamavam de herege.
Mesmo assim pus em prática, por um período de dez meses, o ato do onanismo
consciente e salutar com fixação pela Virgem Santa. Devo-lhe dizer, brother, que
reconduzi em sonho Iesus Baby para os braços da mãe. Ela continuava
virgem na simbolização dos mistérios sagrados, embora penetrada, violada pela
minha incontida paixão de um homem por uma mulher. Isso faz tempo, mon ami,
nessa época eu já pensava em me matar. Eu estava muito triste, pensava que
“Brother Dico
“O
manto da Santa Amada, não sei se você sabe, agora é confeccionado pelas
mulheres dos governantes. Elas nada fazem o ano inteiro a não ser isso. É uma
atividade artesanal de resultado esplêndido que consome muitos valores e meses
de trabalho entre fofocas e dedos sangrados. A tradição foi quebrada por força
da Lei Departamental ao delegar essa tarefa à primeira-dama e as mulheres dos
capitães de Divisão (denominação equivalente hoje aos antigos secretários de
Estado). Tratava-se de uma honra.
“Muita
coisa mudou, você deve saber. A procissão do Círio é realizada durante a noite
por causa do calor insuportável do dia. Tudo ou quase tudo mudou por Decreto
após a Revolução Separatista ou
secessão Brasiliensis, como
dizem alguns historiadores. Os prejuízos causados pela guerra foram tantos que
a floresta amazônica deixou de ser heterogênea para dar lugar a matas de
monocultura, economicamente mais rentáveis. Salvaram-se apenas alguns hectares
isolados, logo transformados em ricas reservas ecológicas para estudos
científicos. Implantaram laboratórios de genética vegetal nesses lugares que
são coordenados pelos amarelinhos, nossos aliados na guerra. Sim, eles vieram
devagar, imigrando, e agora representam um contingente de 36% da população. É
incrível como se reproduzem rápido. Integram em sua maioria a Corporação
Militar do Departamento de Estado. Mas uma coisa se faça justiça: é
interessante o quanto gostam do Círio da Padroeira.
“Desde
esse período negro, ao darem autonomia aos Departamentos Geopolíticos, o Círio
perdeu um pouco o seu charme ao menos para mim. Chamavam-me de purista – é a
saudade –, mas esta velha cabeça entende que as tradições mudam com o tempo, e
com naturalidade, não por Decretos. Entendo que a velocidade do tempo e a mão
do homem permitem a contradição das vontades. Uma luta de contrários, algo
chamado Dialética, lembra? Posso até entrar fundo nessa teoria. É preciso tempo
até mesmo para resgatar nossa própria memória individual.
“Nos
dias de hoje a Santa é levada em um andor descomunal, cheio de flores, por
luzes artificiais internas e intensificadas na medida em que a imagem se
aproxima do Lar Basilical. As luzes são tão fortes que ali só a vê bem quem usa
os óculos especiais pluridimensionais para não correr o risco de atrofiar a
visão. A imagem da Santa se transforma do início ao fim da procissão com efeito
especial de raios lêiseres e de arte visual holográfica. Os óculos especiais à
bateria solar são frágeis e caríssimos. Também são largamente alugados aos turistas
estrangeiros pelos Demiurgos Seniores, detentores dos direitos de invenção e de
comercialização. Mas nós aqui continuamos dando um jeitinho em tudo.
Construímos os nossos, improvisados, à base de produtos reciclados do lixo
industrial e hospitalar: vidros, fibras, velhas baterias de celulares e chapas
de raios X, aqueles usados antigamente para ver eclipses, lembrou? Que tempos.
Eu rio. Meu avô dizia que na sua infância os eclipses de la-moon eram
quase sagrados. Seus contemporâneos acreditavam que um espírito mau morava
dentro dela e, para afugentá-lo, batiam latas e tambores, davam tiros para o
alto e gritavam como loucos. Acho que nunca imaginaram que la-moon pudesse
se afastar tanto do planeta. Perdoe-me, Mundico, eu me lembro dessas coisas e
divago.
“Bom,
me deixa continuar a narrativa: todos os anos têm muitas novidades. Por conta
disso, há apenas quatro anos houve uma tragédia. Um dos heliomóveis-mãe da
Corporação Militar que amenizava o calor com finíssimos cristais de água
chocou-se contra o 9º andar do shopping Departamental, antigo hotel do centro da
cidade, e caiu explodindo sobre a multidão: 14.334 mortos, dezenas de feridos.
No ano seguinte resolveram cantar o Hino Perene invertendo as palavras desse
jeito:
“sov sios o
oiril osomin/Od siam evaus emufrep/ eup ao od otnas osopse/A edaditsac emuser
o megriv eãm
asoroma/etnof ed roma e ed éf/son – iád a oãçneb asodnob/arohneS ed érazaN...”
“Brother,
não sei se foi homenagem aos mortos, protesto ou gracinha da Gerência da Festa.
Mas a novidade não agradou. Fiquei meio abobalhado, embora tenha aprendido a
cantar o Hino Perene assim mesmo. Tenho guardada na minha coleção ciriana uma
ventarola de plásticos gaseificado, com a letra impressa dessa forma.
“Os
operários das Permutas Marítimas ano ímpar espocam seus foguetes maravilhosos
para colorir a noite, ano par gritam aos milhares, em uníssono imitando uma
sirene – haja fôlego, já que as sirenes de verdade são de uso exclusivamente
militar. Não sei o que deu na cabeça desses homens, mon ami.
Certo ano fizeram cair de dentro de um heliomóvel-mãe, em paraquedas de tecido
invisível, 800 anjinhos de todas as cores sobre a massa humana. O espetáculo
agradou sobretudo aos turistas, apesar de alguns anjinhos terem se engatado nas
parabólicas dos edifícios e nos galhos das mangueiras que ora pareciam
recomeçar a folhear. A banda de Metais e Acrílicos dos amarelinhos acompanha a
procissão desde o fim da guerra, mas até hoje não se familiarizou com o ritmo,
talvez por excesso de músicos: 1.200 integrantes. A gerência da Festa já
declarou sua preocupação com o problema e pretende resolvê-lo com inserção de
um pelotão dos melhores percussionistas da Liga das Universidades de Samba da
capital. O chefão do Departamento de Estado introduziu o uso da roda-gigante
para convidados especiais; durante o trajeto uma jamanta colorida de luzes a
movimenta, sendo isso possível porque nas ruas não há mais túneis de árvores
nem fios condutores de energia, agora subterrâneos. Na estação A-004 do metrô,
próximo ao conhecido Parque de Lazer da Elite Corporativa da Novíssima
República, todos os anos um grupo de mulheres lesbiotranscendentalistas (na
realidade são novos drag queens) canta o Hino Perene em ritmo de rock, o
velho rock
imorredouro, acompanhado de sofisticados instrumentos de som e luz
computadorizados. Mais adiante uns”
Dá
para notar que o narrador do Tempos Insanos vive numa Belém
distópica e que Mundico é um amigo, que mora em Brasília, a capital do Brasil,
mesmo, e com quem conviveu na juventude, tudo regado a muito álcool e papo, que
pode até ter sido papo furado, mas o que é papo furado?
“Caro Friend
“Não
me indague sobre a tradição gastronômica da Grande Festa. Eu lhe conto apenas
que os elementos originais foram substituídos por outros mais saudáveis. Não há
mais pato nem tucupi. Come-se hoje chester assado e posteriormente cozido numa
mistura líquida amarelada com o mesmo sabor do tucupi. Bom, não é a mesma
coisa. O jambu é um produto sintético. Anestesia os lábios. Uma delícia!
“Há
algo, Mundico, que gosto muito. É o Ritual das
Oferendas, realizado horas depois do término da
procissão. Pela manhã, com o objetivo de amenizar o cheiro de podridão do rio,
os romeiros oriundos do interior do Departamento de Estado vão despejar as
flores do andor na baía dos Heróis Desaparecidos, junto ao Memorial dos
Inscritos – um monumento imaginado, ora veja, por um grande escritor marajoara
que esteve em I Love New York e
impinimou para que fizessem aqui um semelhante ao de lá. Após sua morte
acidental num passeio à reserva 3-B40 do Marajó, descobriram o projeto e
construíram o monumento, mas muito diferente da concepção original. Bem, as
ofertas se prolongam até a noite do dia seguinte à procissão. No início, de
manhã, os reservistas das estações ecológicas chegam em jamantas abarrotadas de
raízes, ervas e flores para o ritual. Após a chegada do andor, o Demiurgo Emérito
do Lar Basilical eleva uma prece à Virgem e joga a primeira flor nas águas da
baía. Mãos se movem para o rio num movimento espetacular. O andor, antes uma
enorme ikebana
elaborada durante meses por artistas anônimos, é destruído em horas pela mesma
força energética emanada de dentro do coração. Assim, jogam no rio um grande
arsenal de beleza:
“Gérbaras, liziantos, buvardias, bocas-de-leão,
goivos, piracantas, orquídeas e bromélias. Lírios, aspargos, galhos de chorão e
ixoras. Cravos, cáspias, hortências e chuvas-de-pratas. Folhas de ráfia,
angélicas, heras, ramos de cipreste, camélias, gardênias, gerâneos e
rododentros. Dálias, margaridas, rosas verdes, rosas amarelas. Rosas brancas,
rosas-rosas, rosas púrpuras, rosas pigmentadas, rosas-meninas e rosas lilases.
Cristas-de galo, bicos-de-guará, açucenas, girassóis e violetas. Lírios,
lírios, lírios...
“A
oferta à Santa, friend,
também significa um excepcional banho-de-cheiro na cidade. Sinta o perfume das
ervas aromáticas no ar:
“Manjericão, pega-rapaz, cedro, umiri,
macaca-poranga, alfazema, jasmim, buiçu, preciosa, catinga-de-mulata, japana,
casca-sagrada, benjoin, oriza, macaquinho, manjerrona, patchuli, arruda,
muirapuama, raiz de jurema, hortelã, aratauçu, fava, olho-de-boto, caraxió, cipó-carimbo,
raiz-de-mão-de-onça, capim santo, pataqueira, baunilha, beliscão, priprioca,
casa de pau-rosa, sândalo, mirra, mucuracaá, uirapuru, vindecaá, cipó-catinga,
capim comprido, malva-rosa, amor-perfeito...
“Lindo,
mesmo, é a pureza da fé: “Vós sois o lírio mimoso...” o Hino, sob a foguetearia,
é cantado:
“De
vossos olhos o pranto...” E os fiéis despejam as ervas para simbolizar a
intenção de cura pelo rio poluído: “Em vossos lábios divinos...” Os líquidos no
líquido barrento – chás/urinas/cuspes/óleos/suores: “Vós sois a flor da
inocência...” A fé renovada para o futuro incerto: “Vós sois a ridente
aurora...” O espelhar-se na conduta da Virgem Protetora: “Quando em suspiros e
ais...” A fé, sobretudo a fé insofismável: “sede bendita senhora...” A vida transformada
no ritual: “E lá na celeste altura...” O pedido para as curas individuais e
pelo restabelecimento da natureza. Ação/ervas de cura/expectativa:
“cinamono, camomila, erva-moura, taxi-preto,
tarumã, copaíba, timbó-branco, malva-preta, artemísia, cainca, corno-godinho,
cipó-d’alho, avezinho, carqueja, jurubeba, aniz, pau-pra-tudo, boldo,
cerefólio, urtiga-branca, azedeira, calindônia, fumária, cardo-santo,
jacareúba, timo, calêndula, eucalipto, jatobá, salva, mastruz, quintoco,
aramina, casca-de-anta, aturiá, cabacinha, quebra-pedra, losna, gaiaco,
fedegoso, enjo, poevo, saponária, prímula, açiota-cavalo, lúpulo, babosa,
amor-perfeito, alfazema, guaraná, funcho, canafístula, agrião, anaconda,
manacá, aninga-pari, erva-cedreira-verdadeira, açafrão, trevo-cheiroso,
cabeça-de-negro, epadu, confrei, mil-em-rama, agoniada...
“Ah,
Mundico, é lindo o Ritual das Ofertas. Mistura de odores, e um movimento
ondeante. A claridade e o calor me lembram: vou por aqui porque já
“Mundico, my friend,
“Desde
que voltei da guerra, inconsciente, sem saber se venci e maltrapilho, foi
difícil conseguir emprego. Virei ladrão. Eu, herói condecorado, mas civil e
ladrão. O roubo era perigoso e se constituía crime mortal, mesmo assim nunca
fui pego porque aprendera a lutar para sobreviver na guerra. E tive, mais
tarde, que me fazer de religioso para conseguir algo honesto para o sustento. A
vida de ladrão era uma droga e me cansava à beça. Aceitei ser Meio Oficial
Ajustador no Complexo da Circunscrição Produtiva. Era o que havia (os melhores
empregos eram reservados aos catolicistas puros). Por anos a fio limei, cortei
e dobrei peças de metais para encaixe naquele lugar longe da cidade, cheio de
indústrias de beneficiamento de minérios. Fui considerado operário exemplar até
começar a faltar às Falações Demiúrgicas dos domingos. A essa altura já havia
aderido à hermética e venerável Sociedade Neomilenarista. Nossa doutrina
acredita na reencarnação dos avatares de mil em mil anos (podendo estes
inclusive se transfigurarem em vegetais). Estamos à espera do tempo certo para
que nos guiem à saída de nosso infortúnio planetário. Acreditamos que a Santa,
despojada dos símbolos imputados pelos catolicistas, seja nosso esperado
avatar. Nós trabalhamos a energia cósmica e a vidência. Cremos, e temos a fé
mais pura de sua presença entre nós. Ela é uma mulher linda, que menstrua e
defeca como qualquer jovem mulher, até chegar a hora da revelação.
“Friend,
os catolicistas puros se dividem em duas facções: a dos zykoanos, que têm em
primeiro plano a adoração de Teos, depois Iesus Baby e depois a Virgem Santa, e a dos
ramiístas, que adoram primeiramente a Santa Maria, que é a Mãe, depois Teos e
por fim Iesus Baby. As
duas facções aboliram os outros santos, justificando teologicamente, a
existência dos Demiurgos Sêniores e dos Juniors, portanto, desnecessário outros
intermediários, mesmos mortos. Ambas divergem apenas teologicamente, mas se
aliam contra o surgimento de qualquer religião ou seita. Influenciam o Governo
a decretar leis terríveis, até mesmo seus prosélitos são penalizados ao final
dos meses por suas transgressões. Os covardes esdrúxulos são banidos para as
ilhas e ali tratados até se recuperarem. O medo é proibido, nenhum catolicista
puro pode ser covarde. O Círio, para eles, é uma das purgações do medo brando e
a renovação da coragem.
“Certa
vez, numa praça, acompanhei uma leitura de sentença feita por oficial da
Corporação, sob a fiscalização de um Demiurgo. Eram doze os acovardados: uma
médica com nosofobia, uma jornalista com grafobia, um enfermeiro com
acarofobia, um Demiurgo Júnior com lalofobia, uma mergulhadora com potamofobia,
um carteiro com efodiofobia, um mineiro com tatofobia, um policial militar com
nictofobia, um contador com clopofobia, um guarda sanitário com belenofobia, um
soldado raso com basofobia e um jamanteiro com gefirofobia. Todos tiveram como
pena o banimento e uma parte do corpo decapitada: dedo, nariz, língua etc.
“Friend,
eu já esperava o que iria me acontecer, mas não tive o cuidado necessário. Fui
traído com vários companheiros operários por um zykoano infiltrado em nossa
secretíssima seita. Era um ritual ao pôr-do-sol, na plataforma do píer nº 3 do
porto das Permutas Marítimas. Fomos presos e algemados – Que vergonha!
Desfilamos cabisbaixos sob os olhares dos rottweillers, dos urubus-laranjas e do povo: eu, o
traçador Lew, o garibador Argew, o lemista corte solda Qwy, o rosqueador
Artemyr, a fresadora Gwyy, o mandrilador Wylsw, o forneiro Jwaw, a cronoalista
Gwully, o conciliador Romew, o gardmanger Robertw, a contatólaga Bertolletia
Excelsa, o pantografista Andrew e o meu amigo e guru Joaqwy, um dos mais
competentes extrusores de polipropileno de todas a Circunscrição Produtiva. Por
isso ainda choro muito, Mundico, esse episódio me
“Oh, Mundico! Oh, friend
“Ou
lhe conto ou fico louco. Três dias após nossa prisão fomos julgados e
condenados em praça pública. Os Demiurgos Sêniores da Corporação Nazarena, numa
cabal demonstração de poder, nos perguntaram: – Vocês têm fé? E nós
respondemos: – Temos (balançamos nossas cabeças com ardor puro)! Aí os verdugos
amarelos nos puseram de joelhos sobre uma longarina de ferro semelhante a um
trilho e cortaram nossas pernas. Não houve dor ou medo entre nós, apenas um
estranho sentimento misto de impotência e revolta. Em seguida, em meio aos
gritos da população ignorante, sepultaram nossas pernas nas águas da baía.
“Quando
saramos, saímos pelas ruas movendo inutilmente nossa fé. Éramos um bando de
mutilados a pedir esmolas aos cidadãos respeitáveis na Feira-do-Porto, onde
outrora havia um prédio de ferro que era o orgulho da cidade, hoje apenas
escombros sob viadutos.
“Um
dia, brother, os homens amarelinhos da Corporação
Militar estavam juntos aos transeuntes e uma turba excitada. Eu me aproximei
devagar por entre as pernas dos homenzinhos. E vi. Vi como todos os presentes
um cardume de botos (desde muito considerados apenas lenda) saltitando nas
águas poluídas da baía. Os cetáceos vibraram os brilhantes bicos como se
estivessem rindo ou debochando de todos ou como se quisessem se comunicar
conosco. Um deles surgiu, pasme, friend, com
uma imagem da Virgem Santa na cabeça. A multidão, em uníssono, exclamou:
“–
Ooooh!
“Os
soldadinhos ameaçaram atirar com seu rifle Taurus Computer-L2AK, mas o número de pessoas engrossou
muito. Não houve jeito de aprumarem as armas. Os botos, belíssimos, de súbito
mergulharam, exceto o da imagem, que permanecia com meio corpo acima d’água.
Segundos depois outro grito de admiração e perplexidade:
“–
Ooooh!
“Atrás
do líder, o da imagem, às dezenas, os botos surgiram em saltos sincronizados,
trazendo entre os bicos, cada um, uma perna humana. Fui o primeiro a me livrar
do susto e a pular sem hesitação na água. Compreendi que aqueles animais eram a
resposta concreta de nossa fé e que estavam devolvendo nossas pernas há meses
enterradas na lama do rio. Com elas devolvidas, eu e meus companheiros nadamos,
nadamos entre os botos misteriosos, sob uma tempestade de balas, até nos
refugiarmos nas várzeas da reserva das Onças, do outro lado do rio.
“Juramos
voltar um dia para agradecer à Santa. Um milagre, Mundico, um milagre do Grande
Avatar, a Virgem Santa de Nazaré.
“Tenho
vida dupla, de dia removo as pernas para me sustentar com esmolas e à noite
ando disfarçado, recrutando simpatizantes para a nossa causa.
“Caro
amigo, perdoe-me por não mandar ainda esta carta sempre interrompida e
interminável. Talvez a passe para um pendrive. É menos perigoso que o papel. Se
não mando logo não é por covardia, lhe asseguro. Receio lhe comprometer.
“Devo
lhe dizer que ontem o Círio passou novamente com seus caminhões abarrotados de
ex-votos – notadamente pilhas de pernas de cera. Daqui a pouco flores jorrarão
nas águas da baía quando iniciar o lindo “Ritual das Ofertas”.
“Estive
no parque vasculhando o lixo varrido pelo vento. Havia ainda panfletos de
protestos jogados do alto dos edifícios – amassados, rasgados, picotados,
caindo para ninguém. Papéis e papéis: confetes, serpentinas, tiras e folhas de
jornal – o lixo humano sobre o lixo dos humanos – rolavam nos redemoinhos pelo
largo e pousavam nas escadarias da estação do metrô.
“Estou
triste, my friend. Bate novamente em mim a paradoxal ideia
do suicídio. Ideia do asno, pois tenho que
“Mundico.
“Puta
que pariu! Acho que fui descoberto pelos urubus-laranjas. Help! Os
amarelinhos estão vindo.
“Eu
os vejo pela janela. Posso ser preso a qualquer momento. Nem a Virgem desta vez
vai me”
Quero dizer ao narrador deste
conto-pesadelo que os tempos insanos passaram, que, agora, podemos vagabundar
em Macapá a bordo do carro do James Bond a qualquer hora do dia e da noite, que
podemos comer e beber do bom e do melhor, que nossos papos são cada vez mais
ricos, que podemos nos dar ao luxo de telefonar para a Alcinéa tarde da noite e
ela nos atende e podemos ouvir seu riso cristalino e sentir o azul dos seus
poemas, e que estamos no caminho de descobrir o segredo da luz.
Fernando, dá um abraço apertado
na Alcinéa.