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Lili e Márcio (sobrinhos), Linda (irmã), Marina (mãe), Olivar Cunha e Mel (irmã), na casa da família, na Avenida Presidente Vargas, em Macapá/AP |
RAY
CUNHA
BRASÍLIA,
30 DE MARÇO DE 2024 – JAMBU, deste escriba, é, ao mesmo
tempo, um thriller policial e um ensaio sobre a Amazônia, misturando
personagens de ficção e reais, vivas ou mortas. Como grande parte da ação do
romance se passa em Macapá/AP, a cidade do meio do mundo, faço uma homenagem a
algumas personagens que escreveram e escrevem a História do estado do Amapá.
Olivar Cunha é um desses personagens. Neste 31 de março, ele
completa 72 anos de idade. Atualmente, Olivar Cunha mora na grande Vitória, no
litoral do Espírito Santo. Além de um dos maiores expressionistas da Amazônia,
o pintor é também restaurador; cumpriu curso de restauração no Museu Nacional
de Belas Artes, no Rio de Janeiro, onde, também, estudou no Parque Lage e foi
aluno do professor Charles Watson. Pois bem, Olivar Cunha se tornou conhecido
em várias cidades históricas no litoral do Espírito Santo como restaurador de
imagens sacras, naquela região.
Em JAMBU, faço uma homenagem à família Cunha, e, em
especial, a Olivar Cunha. Segue-se o capítulo com a saga da família Cunha na
Amazônia.
ALÉM de
estudantes e expectadores em geral, que disputaram uma das duas mil poltronas
da luxuosa casa de espetáculos, a aristocracia amapaense estava em peso no
Teatro Açaí, do Hotel Caranã, muitos deles em roupas de luxo, algumas,
espalhafatosas, lembrando sapos encasacados, inchados de tanta comida e
dinheiro, guardado em bancos e malas; se fossem postos de cabeça para baixo não
cairia um níquel sequer, pois quem é viciado em dinheiro esconde-o. Alguns
estavam tão inchados que se alguém ficasse olhando para eles esperaria ouvi-los
coaxar.
Quando a professora Walkíria
Ferreira Lima entrou no palco, os músicos da Orquestra da Escola de Música do
Amapá levantaram-se e o público também, aplaudindo-a em pé. De porte frágil,
agigantava-se no púlpito. Nascera em Manaus, onde se formou em música,
começando os estudos de piano aos 10 anos de idade. Chegou a Macapá na década
de 1950, e começou a lecionar canto orfeônico na Escola Barão do Rio Branco e na
Escola Industrial do Amapá, antes da criação do Conservatório Amapaense de
Música, onde ensinou piano e solfejo. Walkíria Lima foi ainda uma das
fundadoras da Academia de Letras do Amapá, patrocinando a cadeira 40. Casou-se
com o mágico Isnard Brandão Lima e teve um único filho, o poeta
manauara-macapaense Isnard Brandão Lima Filho, autor de Rosas Para a Madrugada e Malabar
Azul. Isnard sentara-se na primeira fila. Pálido, olhos amendoados e olhar
intenso, cabeleira penteada como a de Castro Alves, bigode, fumante inveterado
e dipsomaníaco, lembrava um misto de toureiro e dançarino de tango. Ao lado
dele, sentara-se o gênio do pincel e da espátula Olivar Cunha, que assinava os
21 painéis que compunham a exposição oficial do Festival de Gastronomia do Pará
e Amapá.
A etimologia da palavra “cunha”
é remota. Vem do latim “cuneus”. Colonizadores romanos fixaram-se na Península
Ibérica, que, mais tarde, foi invadida pelos visigodos e depois pelos árabes,
em 711 DC. No decorrer dos séculos e várias invasões, a língua latina foi
perdendo a pureza, surgindo as línguas neo-latinas, entre as quais o português.
A palavra “cunha” tem conotação guerreira: fender, ferir madeira e pedra. O avô
paterno de Olivar Cunha se chamava Manuel Raimundo Cunha, nasceu em 1875, em Portugal,
e migrara para Pernambuco; e sua avó paterna, Rosa Maria Cunha, nasceu em 1882,
em Sobral, Ceará, e faleceu em Manaus, em 1973, aos 91 anos, vítima de
congestão; era negra. Os bisavós maternos do grande pintor eram Domingos
Pereira Silva, pernambucano, e Francisca de Oliveira Bessa, cearense; e seus
avós maternos eram Pedro Pereira Silva (1895-1952), apelidado de Pedro Correto,
pela sua retidão de caráter, e Alice Pereira Silva (1898-1961), nascida na
cidade do Crato, Ceará. Pedro Correto era moreno-claro e de cabelos
encarapinhados, feição negroide, cearense; migrou, ainda rapaz, para a
Amazônia, atraído pela febre da borracha no início do século 20. Quando se
casou, tornara-se fazendeiro abastado e residia em Porto Velho, mas vendeu
todos os seus bens e entrou na Companhia Ford Motors, em Fordlândia, então
distrito de Santarém, Pará. Em 1932, separou-se da esposa, Alice Pereira Silva,
e mudou-se para Belém, onde morreu. Nos últimos anos da sua vida foi
guarda-costas do general Magalhães Barata, nas suas andanças políticas pelo
interior do Pará. Magalhães Barata foi revolucionário do Movimento Tenentista,
duas vezes governador e duas vezes interventor federal no Pará. Alice Pereira
Silva continuou em Fordlândia. Branca, loura e de olhos claros, era uma mulher
com a fibra necessária para enfrentar o Inferno Verde. O início da vida do
casal foi nas proximidades do rio Abunã, tributário pela margem esquerda do rio
Madeira, no extremo oeste da Amazônia; tiveram nove filhos, a maioria deles natimortos,
assassinados ou mortos por doença na juventude. A caçula era Marina Pereira
Silva Cunha, “a mulher mais bonita, forte, corajosa, poderosa e eterna como as
rosas que eu já tive a oportunidade de conhecer” – escreveu João do Bailique,
irmão de Olivar Cunha.
Marina Pereira Silva Cunha
nasceu na região do rio Abunã, em 2 de março de 1924. Ela se casou em Belterra,
em 22 de junho de 1947, com João Raimundo Cunha, que nasceu em 16 de maio de
1915, em Sobral, Ceará. Ainda criança, migrou para Santarém, com a mãe, Rosa
Maria Cunha, e três irmãs; seus irmãos morreram em tenra idade. Perdeu cedo o
pai e começou a trabalhar na lavoura. Foi capataz de quadreiro, que era o
capinador de campo de seringal, e serrador, na Companhia Ford Motors, no
distrito de Belterra, e depois começou a trabalhar nos Serviços
Aéreos Cruzeiro do Sul, em Belterra, em 1 de setembro de 1946; depois na cidade de
Santarém, e, finalmente, em Macapá, onde chegou em janeiro de 1950, sucedido
pela família, em outubro do mesmo ano. Trabalhou nos Serviços Aéreos Cruzeiro
do Sul até 15 de outubro de 1972. Em 1 de maio de 1973, começou a trabalhar na
empresa Irmãos Zagury e Cia. Ltda., como ajudante de mecânico, até 6 de março
de 1977, quando se aposentou, somando 35 anos de serviço ativo.
Alguns trechos da crônica “Papai
faz 100 anos”, que João do Bailique publicou na Trópico
Úmido:
“Alguns dos meus ídolos – Ernest
Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry – manifestam duas características
em comum: são escritores classe A e foram homens de ação. Um homem de ação é
aquele que pensa e age simultaneamente, e também não vive quieto, pois está
sempre metido em alguma aventura. A própria vida é sua grande aventura, até
que, no caminho, é derrotado pela barreira da dimensão física, mas não é
vencido, e passa a povoar o universo azul. Meu pai, o maior dos meus ídolos,
não era escritor, mas era homem de ação, e me contou histórias eternas.
“Meu pai media 1,68, era seco e forte,
o rosto oval, olhos castanhos e oblíquos, e usava uma loção à base de pinho
após raspar, com navalha, o rosto, deixando apenas o bigode. Foi o homem mais
corajoso que já encontrei; nada o intimidava. Internava-se na selva dias
seguidos, sozinho, e era capaz de meter uma bala no buraco de outra, a mais de
100 metros de distância. Ele não era escritor, mas escreveu alguns poemas, que
se perderam no tempo.
“Um dia, peguei os originais dos poemas
que o papai escrevia de vez em quando e li alguns na Rádio Educadora, em um
programa do Luiz Tadeu Magalhães. Papai soube e me passou uma reprimenda. Mas
senti, ali, naquele momento, que, de alguma forma, ele não se importou muito
que eu tivesse lido publicamente seus poemas, e isso me deixou feliz, pois
agradar o ídolo é para o fã o sonho mais ousado.
“Papai não era escritor, mas foi um
extraordinário contador de histórias. Leu Tarzan,
de Edgar Rice Burroughs, e contava a história para nós, meus irmãos e eu, como
se Tarzan fosse real. Porém o que mais me fascinava eram as aventuras do
próprio papai, especialmente quando se internou na selva profunda e foi atraído
por uma sucuri. Tonto, quase desmaiando, foi salvo pelo seu anjo da guarda;
conseguiu avistar a cabeça da sucuri, apoiou o rifle numa forquilha e estourou
a cabeça da serpente, uma cabeçorra do tamanho de uma lata de leite Ninho.
“Papai chefiava todo o trabalho pesado
no Aeroporto de Macapá, nos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, como faz-tudo,
oficialmente como feitor de pista, sinalizando a descida e subida dos Douglas
DC-3, abastecia os aviões e os despachava. A primeira vez que o vi fazendo isso
fiquei deslumbrado, e quando fui autorizado a entrar no avião foi como se
houvesse entrado numa nave espacial. Meu pai conversava com os pilotos da nave
e entrava no avião como se estivesse em casa, e serviram-me sanduíches e
biscoitos inimagináveis.
“Apenas uma vez o vi fraquejar. Foi
quando a tragédia invadiu a Casa Amarela, a casa da minha infância, na esquina
das ruas Iracema Carvão Nunes e Eliézer Levy, onde hoje uma seringueira
plantada por meu pai no ano de nascimento do gênio do pincel Olivar Cunha,
intercepta o muro do Colégio Amapaense. Foi quando anunciaram a morte do meu
irmão Francisco Pereira Cunha. Era 22 de novembro de 1965. Francisco tinha 18
anos e era belo como Zeus, e imortal como todo jovem. Meu pai foi atingindo por
um raio. Caiu numa cadeira, mole, sem tônus, os olhos, sempre tão interessados
pela vida, gritavam de dor. E logo depois veio o segundo choque: o corpo
chegando. Não compreendi bem aquilo. Para mim, a matéria era para sempre, e só
fui entender o que se passara quando, no Cemitério São José de Macapá, vi todos
se sacudindo em choro, como chuva que não passa nunca.
“Meu pai morreu com a mesma idade que
Ernest Hemingway, aos 61 anos, mas, naquela época, eu já conversava com Papa
nos bares da mente, quando o desejo de também bater longos papos com papai
começou a se avolumar na minha alma. Meu quarto, na Casa Amarela, a casa da
minha infância, era conhecido como Quartinho; é lá que costumo encontrar-me com
papai, Ernest Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry e todos os
mortos que amo, num bate-papo interminável.”
Em outro artigo de memórias, João do
Bailique escreveu sobre o gênio Olivar Cunha:
“Nasceu pesando 3,5 quilos e
mamou até aos dois anos. Depois que começou a articular as primeiras palavras,
quando queria mamar, pedia “piti”. Pode ser por isso que se tornou o xodó da
mãe, a bela Marina Pereira Silva Cunha. Morávamos na Rua Iracema Carvão Nunes,
esquina com a Rua Eliezer Levy, numa casa amarela, remanescente do antigo
aeroporto, ao lado do Colégio Amapaense. No dia do nascimento do Olivar, 31 de
março de 1952, nosso pai, João Raimundo Cunha, plantou a Seringueira que
intercepta o muro oeste do Colégio Amapaense, na Rua Eliezer Levy, e que
escapou de ser decepada graças à intervenção do engenheiro florestal Luiz
Guilherme Dias Façanha, nascido em 18 de julho de 1952, e amigo de infância do
Olivar.
“Em 1983, Luiz Façanha
trabalhava como especialista em seringueira (Hevea brasiliensis) na extinta
Superintendência da Borracha (Sudhevea), um dos órgãos federais absorvidos pelo
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(Ibama). A Seringueira apresentava uma grande lesão no tronco. Debilitada, foi
atacada por fungos e insetos. Segundo Luiz Façanha, estudantes fizeram forte
pressão junto à Prefeitura de Macapá e ao Governo do Estado para que
autorizassem abater a árvore, alegando risco de vida para quem por ali
transitava. Foi então que o repórter da Rede Globo, Antônio de Pádua, solicitou
a Luiz Façanha que fizesse uma gravação no local, para dar sua opinião sobre o
caso. Após minuciosa inspeção, Façanha verificou que a árvore estava se
recuperando do ferimento, embora muito lentamente, e em razão disso posicionou-se
contrário ao abate. “É claro que pesou na minha decisão todo o histórico da
nossa infância brincando em volta daquela árvore: Olivar, João, Chico e eu.” O
fato é que a Rede Globo e Luiz Façanha salvaram a Seringueira. Minha
convivência com o Olivar foi, basicamente, no nosso período de infância.
Estudamos juntos no então Grupo Escolar Anexo da Escola Normal e lá fizemos
todo o Curso Primário, nos idos dos anos 1950/1960. Após as aulas, dividíamos
nosso tempo brincando pelos quintais do seu João (pai do Olivar), correndo por
cima dos muros e se pendurando nas árvores do quintal. Tempo bom que não volta
mais” – lembra Luiz Façanha.
“Olivar Cunha foi uma dessas
crianças que as mulheres adoram apertar nos braços, beijar, acariciar. Não
lembro quantos anos ele tinha quando sua então professora, que morava sozinha e
que se manifesta, hoje, na minha memória, como uma mulata sensualíssima, se
ofereceu para dar reforço escolar a ele na sua casa e ele não quis de jeito
algum, porque, segundo pude intuir, mais tarde, de declarações suas, ela era
exageradamente carinhosa para com ele, e ele ainda muito criança. O gênio do
artista plástico começou a se revelar no curso primário; seus trabalhos eram
formalmente impecáveis, e já revelavam criatividade. Encarava também os
trabalhos de educação artística de sua irmã Lindomar Cunha, então se preparando
para trabalhar no jardim de infância. Pré-adolescente, começou a brincar com
seu pequeno prato de massas coloridas e pincéis de tamanhos variados.
“Aos 14 anos, em 1966, ele já
pintava profissionalmente, saía à noite e bebia. Aos 15, expôs pela primeira
vez, e andava na companhia dos artistas mais conhecidos da cidade: o poeta
Isnard Brandão Lima Filho, o escritor Alcy Araújo e o pintor Raimundo Peixe,
além do nosso irmão Pedro Cunha, então com 22 anos, e que era, naquele momento,
uma espécie de guru para o Olivar.
“Olivar Cunha se tornou um rapaz
muito bonito, apolíneo, ariano, bom de porrada que só ele mesmo, hedonista, e
que cada vez mais dominava as cores e a luz. Sua filosofia era: “Viver é um
tesão”. Podia tomar um litro de Run Bacardi sozinho ao longo de um bate-papo,
podia sair para a porrada contra dois oponentes e se saía bem, podia fumar três
maços de cigarros em uma noite, beber durante 48 horas seguidas, pintar
madrugada adentro. Na juventude, era beberrão, machão, idealista, bom de
porrada, belo, amado, adorado, incansável como Pablo Picasso e esquizofrênico
como Van Gogh.
“Uma madrugada, um marchand
francês acordou todo mundo, em casa, porque teria que viajar para a França
naquela manhã e queria porque queria levar alguns quadros do Olivar, e levou o
que estava disponível. Acho que foi mais ou menos por essa época que ele pintou
os Beatles, 1969. Juntou na tela vários momentos diferentes do Beatles,
recortando fotos de várias revistas, reproduzindo-as naquele óleo. Mais ou
menos em 1970, vendeu o quadro dos Beatles para Luiz Façanha, que o mantém na
casa dele, no Recife, onde mora.
“Nas décadas de 1970/1980,
casado com Maria da Glória Nascimento Cunha, o artista morou em Belém, quando
produziu algumas dezenas de telas que o colocam como um dos mais importantes
artistas plásticos contemporâneos: seus mendigos do Guamá, subúrbio da Cidade
das Mangueiras, são chocantes. Olivar e Glória namoraram durante 7 anos e foram
casados por 7 anos. Ela partiu cedo para o mundo espiritual. Em Belém, Olivar
ganhou um novo nome: Lili, batizado pela sua filha Tatiana, assim que ela
aprendeu a falar, e que lhe deu um neto: Bernardo Cunha Barros. Lili teve outra
princesa com Glória: Taiana, que lhe deu um neto: Alexandre Cunha de Sousa.
“Viúvo, Lili foi para o Rio de
Janeiro, estudar artes plásticas no Parque Lage. De volta a Macapá, conhece a
capixaba Célia Maria Rocha Cunha, em 1986, casam-se no ano seguinte, e, em
agosto de 1988, mudam para o Espírito Santo, onde nascem os filhos Ângelo
Ticiano Rocha Cunha e Luciano Rocha Cunha.
“Nos anos de 1990, consolida sua
posição como um dos grandes expressionistas contemporâneos, com a série de
animais agonizando nos esgotos das grandes cidades, como na impressionante
acrílica sobre tela Tuiuiú Crucificado,
sobre a baía de Guanabara – talvez o berro mais fovista, o grito mais
expressionista de Olivar Cunha. Ele pintou esse quadro em três meses, em 1992,
em seu apartamento na praia atlântica de Jacaraípe, distrito do município de
Serra, na grande Vitória do Espírito Santo. Trata-se de uma acrílica sobre
tela, em espátula e pincel, de 120 por 100 centímetros. Pertence à fase que o
pintor chama de Habitat Transform, desenvolvida no Rio de Janeiro e em
Jacaraípe, após pesquisa sobre a devastação da flora e da fauna do Amapá, do
Pará e do Pantanal. Depois que se mudou para Jacaraípe, começou também a
recuperar obras sacras de igrejas da região.
“Apesar de contar com o mar onde
foi fisgado o maior marlim azul do mundo, o Atlântico ao largo do Espírito
Santo, é a Amazônia que pulsa nas telas do gênio, recriada à base de
espilantol, o princípio ativo do jambu. O tacacá, que leva jambu, é gostoso
servido naquele momento de transição em que a tarde escoa como um rio de
planície, que vai se esvaindo, lentamente, ao mergulhar nas luzes do anoitecer.
É o espilantol que dá aquela sensação de dormência nas papilas gustativas,
ativando as papilas da alma. Então, sentimos gosto de Cerpinha, Run Bacardi, a
vertigem do beijo, som de merengue.
“O gênio pinta a alma das suas
criaturas, sejam elas pessoas ou paisagens. Assim, as telas de Olivar Cunha
gritam como o coração das trevas, mas também pulsam no rio da tarde, prenhes do
perfume dos jasmineiros noturnos. O artista dá à luz a Amazônia eternamente
viva, a Hileia que só os cabocos entendem – os apreciadores de merengue, de
mapará assado na brasa servido com pirão de açaí, os que se emocionam com o
trotar da mulher amazônida no calor equatorial, o mergulho no rio que deságua
na tarde, os segredos que se encerram na Fortaleza de São José de Macapá, no
Trapiche Eliezer Levy, no Ver-O-Peso, na Estação das Docas, em Mosqueiro, em Salinas,
no Bailique, em Caiena.
“A presença dele, sua simples
lembrança, me causa sempre alegria, uma espécie de sensação de coisa nova, de
descoberta, de novas possibilidades, de viagem, de aventura. Ele emana uma
força poderosa até no repouso, no silêncio, na simplicidade. Mas seu grande
poder se manifesta ao usar a paleta, o pincel e a espátula, ao conceder à luz o
triunfo”.
No palco, Uirapuru, de Heitor Villa-Lobos. Trata-se de um poema ou balé
sinfônico, composto em 1917 e concluído em 1934, com 20 minutos e 33 segundos
de duração, que teve sua gênese em um poema sinfônico de 15 minutos, intitulado
Tédio de Alvorada, composto em 1916. Uirapuru foi incluído no programa do
último concerto de Villa-Lobos, em 12 de julho de 1959, no Empire State Music
Festival, em Nova York. O impressionante é que quem conhece a selva amazônica
profunda, sente, nesta composição de Villa-Lobos, o tédio que a grande floresta
pode provocar, pela mesmice do terror que o Inferno Verde impõe a quem não se
familiariza com o ventre da besta. Mas, para quem ama o abismo, ouvir o próprio
uirapuru, na eternidade da grande floresta, é como ouvir Mozart, o som da Terra
girando sobre si mesma, gravitando em torno do Sol a 108 mil quilômetros por
hora, o sistema solar girando em volta do núcleo da Via Láctea a 830 mil
quilômetros por hora, a Via Láctea indo para o Grupo Local a 144 mil
quilômetros por hora, o Grupo Local voando para o aglomerado de Virgem a 900
mil quilômetros por hora, tudo isso seguindo em direção ao Grande Atrator, a
2,2 milhões de quilômetros por hora; o Grande Atrator fica para além de
Centauro, a 137 milhões de anos-luz da Terra. Walkíria Lima deixou o palco e
voltou sob uma avalanche de aplauso.
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A Seringueira, símbolo da família Cunha, é imortalizada na capa do romance A CASA AMARELA, ambientado na Macapá dos anos 1960 |