sábado, 15 de setembro de 2012

Gritos e sussurros

A tarde desmaiava, assaltada por flocos negros, invisíveis, acamando-se na cidade, e logo os anúncios luminosos, as luzes dos postes e os faróis dos carros começaram a povoar as ruas. Dentro do bar, onde eu estava, de repente a vida recomeçou. Podia ver parte do Setor Hoteleiro Sul, o Pátio Brasil e alguns prédios do Setor Comercial Sul. Em primeiro plano, o anoitecer me ofertava o passa-passa de mulheres tão lindas que eram, estou certo disso, miragens. Lá fora, o tempo estava seco e quente como um soco na boca do estômago, mas dentro do bar o ar refrigerado e o umidificador funcionavam ajustados como um foguete tripulado.
- O Mensalão começou a respingar no Chefão – disse meu amigo, velho jornalista que não conseguiu se adaptar aos novos tempos. Quanto a mim, ainda logrei ajustar-me a treinamento motivacional, coaching, como se diz, voltada para o que eu chamaria de “escravidão mansa”. Lembrei-me de William Faulkner: “É uma vergonha que haja tanto trabalho no mundo. Uma das coisas mais tristes é que a única coisa que um homem pode fazer durante oito horas diárias, dia após dia, é trabalhar. A gente não pode comer, beber ou fazer amor durante oito horas diárias: só o que se pode fazer, durante oito horas, é trabalhar. Eis aí a razão por que o homem torna a si próprio e a todos os demais tão miseráveis e infelizes”.
- Mas não te iludas; gente como o Chefão está tão blindado que nem Klark Kent conseguiria prova contra ele – disse-lhe. – Continuará chiando sua algaravia.
Uma jovem entrou no bar do hotel. Remetia imediatamente a jambo maduro, com sua alva pele cafuza, e longos cabelos de índia descendo-lhe como ervas daninhas até a garupa de DNA africano. Trajava vestido de seda branco, estampado de amarelo e vermelho. Foi direto para o balcão e se aboletou num tamborete, os quadris maravilhosos enchendo meus olhos, e os do meu velho amigo jornalista, que perdeu, de repente, o interesse pelo Chefão. Duas jovens europeias, com suas peles brancas, rosadas, quase vermelhas, inflamadas pelo sol tropical, também olharam para a cafuza, que deixou um rastro de jasmineiros chorando em noites tórridas em Macapá, cidade que flutua na boca do maior rio do mundo, o Amazonas. A cafuza pediu água tônica. Inadvertidamente, levei minha água tônica à boca. Gelada, refrescante, a bebida assumiu sabor de Caribe, ao som da voz da mulher improvável, que tinha sotaque francês. “Será da Guiana Francesa?” – pensei, referindo-me à colônia que os franceses mantêm vizinha ao estado do Amapá, que o senador Zé Sarney, o dos Atos Secretos, anexou ao Maranhão.
Meu velho amigo jornalista suspirou. Parecia o último suspiro de décadas de álcool, cigarro, noites indormidas, desregramento.
- Produto genuíno do trópico – cochichou-me, quase babando. Fiz sinal ao garçom para que levasse mais uma garrafa de água tônica para mim e uma Cerpinha para meu amigo. Cerpinha é a melhor cerveja do mundo. Quando eu era alcoólatra e ia a Belém, começava a beber Cerpinha enquanto tomava banho e depois observando a cidade pela janela do quarto de hotel, de modo que ao mergulhar nas veias da Cidade Morena já estava pronto.
- É da Guiana Francesa – disse-lhe. – Ou de Macapá, há muito tempo morando em Caiena.
- Conheci uma assim no Acre – confidenciou-me.
De repente, lembrei-me de Gabriela, Cravo e Canela, em cartaz na Globo. A mulata, a mulher cor de canela, a negra, a índia, mulheres produzidas para a libidinagem dos europeus e brasileiros de sangue azul. Um paradoxo. Mesmo com 10 mil anos de polimento, levado ao paroxismo em países como a Grã-Bretanha, a natureza masculina conserva o animal irracional que a habita. Se queres conhecer a verdadeira personalidade de um homem, lança-o à guerra, ou enche-o de cachaça, ou observa seu comportamento ao assalto de uma mulher fatal.
- Temos mulheres assim em toda a Amazônia – comentei, pois sabia que meu amigo conhece a Hileia tanto quanto eu, o que quer dizer que ambos já mergulhamos na alma da mulher amazônida, e sentimos o mundo girar, a mesma experiência de tomar tacacá às 6 horas da tarde na banca do Colégio Nazaré. Jambu! Jasmineiros chorando! Cerpinha! O céu, tão azul que sangra! Maresia! O balanço de uma rede! Leite da mulher amada! Jambo, doces como seios!
A cafuza fazia, agora, anotações em um caderno tipo Moleskine, e vi que era da Tilibra. Seria jornalista também? Ou secretária executiva de algum bilionário do ramo dos hotéis fazendo prospecções para a Copa do Mundo de 2014? Seja lá o que for, era tão linda que causava dor. Eu estava tão concentrado nela, que a mulher improvável se voltou para mim. Só então vi seus olhos, de clorofila, duas pedras preciosas a me engolirem. Fiquei petrificado, com o mesmo terror que deve acometer as presas na boca do jacaré. Depois percebi que o olhar da cafuza fora ocasional, que ela sequer me viu, nem à sua saída, deixando um banzeiro de romance e aventura na noite. Meu amigo e eu ficamos calados. Eu sabia o que ele estava pensando e ele também sabia perfeitamente o que eu sentia. Logo depois saímos. A noite era como um relicário de joias. Mais tarde, em outro bar, ouvi, quase inaudível, vindo de algum lugar, Zorba, o Grego, de Mikis Theodorakis.
 
Brasília, 15 de novembro de 2012

sábado, 8 de setembro de 2012

Rio de Janeiro

Cheguei ao Rio de Janeiro num dia de semana, sem lenço e sem documento, em 1972. Tinha 17 anos e não portava sequer carteira de identidade, e contava apenas com o terceiro ano do antigo curso ginasial, hoje, ensino fundamental. Queria sair de Macapá. Tomei um barco para Belém e de lá viajei de carona para Brasília e depois tomei um ônibus para o Rio de Janeiro, levando comigo alguns exemplares de Xarda Misturada, livro de poemas que publiquei em 1971, em Macapá, com Joy Edson (José Edson dos Santos) e José Montoril. Lembro-me que cheguei no meio da tarde e na rodoviária pedi informações e tomei um ônibus para o coração do Rio de Janeiro, o cruzamento das avenidas Presidente Vargas e Rio Branco, onde fica a antiga catedral da cidade de São Sebastião. Levava comigo o endereço de trabalho de uma amiga do pintor e poeta Manoel Bispo, de Macapá, e a confiança inabalável de um garoto ribeirinho de que a amiga do Manoel Bispo me receberia de braços abertos. Localizei-a quase à saída do trabalho; já na rua ela me olhou e me disse que eu não poderia ficar na casa dela, desejou-me boa sorte e sumiu na multidão.
Eu levava também comigo o endereço de um amigo que conheci no Colégio Amapaense, Sílvio, paulistano que fora para Macapá com o pai, um americano que trabalhava na Indústria e Comércio de Minérios de Ferro e Manganês (Icomi), que, juntamente com a Bethlehem Steel, transportou do município de Serra do Navio, para os Estados Unidos, a jazida do melhor manganês do planeta, a preços vis, e deixou uma imensa cratera no Amapá.
Na época, o Sílvio morava com os tios na Alameda São Boaventura 208, Fonseca, Niterói. Cheguei lá à noite. O Sílvio, sua tia e seus primos me receberam muito bem. Em novembro daquele ano apresentei-me na Primeira Região Militar do Exército. Eu meço 1,64 metro de altura, e creio que pesasse, naquela época, 50 quilos (hoje, peso 64 quilos), também a mudança de clima e a poluição causaram uma coceira no meu corpo todo, de modo que fui dispensado do serviço militar, e vi meu propósito de morar no quartel esfarinhar-se.
O tio do Sílvio era um oficial da Aeronáutica, negro, coisa rara na Ditadura dos Generais (1964-1985). Acho que o episódio que aconteceu naquela noite foi reflexo daqueles anos de chumbo. O tio do Sílvio chegou mais cedo. Eu estava tocando violão na sala. Aprendera-o em Macapá com um amigo de adolescência, Ribamar Teixeira. O tio do Sílvio ordenou que fôssemos todos dormir. Eu dormia num sofá, na varanda. Continuei tocando violão. Então o tio do Sílvio veio do quarto dele e ordenou que eu pegasse minhas coisas e fosse embora. Juntei meus pertences – algumas roupas e exemplares de Xarda Misturada – e fui para a rodoviária central de Niterói. Foi uma longa noite. Só senti mais frio na estação aeroviária de Buenos Aires, em certa noite que lá passei, e da qual surgiu o poema Noite Horrível, publicado no livro Sob o Céu nas Nuvens (edição do autor, Belém, 1982).
Só quem passa uma noite dessas é que sente o quanto o sol do alvorecer é vivificante. Nem bem o dia amanheceu, lavei o rosto, tomei café com leite e pão com manteiga e me mandei para a representação do governo do Território Federal do Amapá, no centro do Rio de Janeiro. O representante, Couto, era conhecido por ajudar amapaenses. Conversamos. Ele me perguntou se eu conhecia o Itabaraci, que é de uma geração ligeiramente antes da minha, de Macapá (onde hoje vive); contudo, seu pai, Aimore (em tupi, não leva acento agudo na última sílaba) Nunes Batista, era padrinho da minha irmã caçula, Rosa Maria. Disse ao Couto que sim, conhecia o Itabaraci, e ele me deu um conselho.
- Vai procurar o Itabaraci; ele mora num apartamento em Copacabana, onde a senhoria, dona Maria Antônia, aluga vagas – disse-me ele, e me deu o endereço: Rua República do Peru 210, Apartamento 204, entre as ruas Tonelero e Barata Ribeiro, Copacabana. Vivi dois anos lá.
Dona Maria Antônia, paraense, funcionária dos Correios, há muito radicada no Rio, foi uma das mulheres mais bacanas que encontrei. Ela simplesmente me acolheu, e só passei a pagar vaga depois que ela mesma conseguiu emprego para mim, como ajudante de carteiro numa agência dos Correios em Copacabana, e depois como faz-tudo numa empresa de conserto e venda de peças de eletrodomésticos, primeiramente numa loja em Ipanema e depois em Copacabana. Quanto ao Itabaraci, e seu irmão, o violonista e pianista Aimorezinho, que nessa época tocava na banda do Raul Seixas (hoje, vive em fortaleza), trataram-me como a um príncipe. Por isso sou eternamente grato a eles.
Logo depois, o compositor amapaense Luiz Tadeu Tavares Magalhães, que estava morando no Rio e trabalhava na White Martins, conseguiu para mim uma vaga como contínuo na filial de Jacaré, na Zona Norte. O Tadeu era músico e radialista em Macapá, e me entrevistara várias vezes, na condição de escritor. Em 1971, antes de publicar Xarda Misturada, participei de um jornalzinho colegial anarquista, A Rosa, de modo que eu tinha ideia de como fazer um house organ, e foi o que eu fiz, o jornalzinho da filial. Além disso, eu pagava mensalmente uma empresa que fornecia entradas a pelo menos quatro peças teatrais por mês. O gerente da filial, dr. Arlindo, também era cliente da mesma empresa, e andamos nos encontrando nos teatros. Conclusão: ele morava em Ipanema e passou a me dar carona para Copacabana quando saíamos juntos. O jornalzinho e o interesse comum por teatro entre o gerente da filial e eu, além da companhia do Luiz Tadeu, tornavam o ambiente pesado de multinacional da White Martins em um convívio bastante agradável.
Às sextas-feiras, principalmente após recebermos o salário, eu saía com o Luiz Tadeu. Às vezes, íamos para a casa do nosso colega de White Martins, Frank Loiola Matos, em Padre Miguel. O fato é que bebíamos muito. Também foi nessa época que conheci o Luiz Loyola, Lula, irmão do Frank, no Curso de Interpretação Teatral no antigo Teatro de Comedia do Estado da Guanabara (Teco), na turma do professor e ator Jorge Paulo. A prova final do curso foi a encenação de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, com músicas de Chico Buarque de Holanda, no extinto Teatro de Arena no Largo da Carioca. Fiz um dos coveiros. Nessa mesma época, começamos leituras e laboratório da peça Miolo de Pão, texto de Luiz Loyola e que expressava “a realidade conflitante, festiva e utópica de uma família do subúrbio carioca” – como diz o próprio Loyola. Nós nos reuníamos na casa do Jamil Viana, na Pavuna; na casa da belíssima Beth Bello, na Ilha do Governador; e na Vila Valqueire.
No quarto do Loiola, BOE (Boite Onda Estudantil), na casa em Padre Miguel, “aconteciam reuniões com muita música, teatro, poesia, happenings, num clima underground e ambiente psicodélico, cheio de posters de vanguarda, caricaturas, painel com capas de LP, objetos antigos, como um armário centenário com um enorme espelho de cristal na frente da porta, que encantava os narcisistas, uma luminária em formato de chapéu mexicano vermelho, iluminada por uma tênue luz azul opaca, lembrando cabarés da Avenida Prado Júnior, no Leme; no chão, havia um espelho retrovisor redondo, de aproximadamente um metro de diâmetro, do serviço de trânsito do Rio, apelidado de “poço” pelo companheiro de trabalho Paulo Cesar Americano do Brasil, da Remington Rand, onde trabalhei com Luiz Tadeu no inicio da década de 70” – lembra Luiz Loiola.
“Num desses eventos, em uma noite festiva, tive o prazer de receber o amigo Ray Cunha, sutilmente trajando: calça jeans do Lixo (boutique cult de Copa), camisa mangas compridas com gola rolé cor roxa e sapatos bicolor vermelho e amarelo... a figura tinha cabelos ruivos black-power no melhor estilo saltimbanco do ator do filme musical Gospell... em sua companhia chegaram Luiz Tadeu e Iara Picanço, depois de uma viagem de trem da Central do Brasil, direto do subúrbio do Lins de Vasconcelos” – recorda Luiz Loila.
“Numa única visita à casa de Ray Cunha, na Rua República do Peru, em Copacabana, na década de 70, o poeta me recebeu em seu quarto (vaga), onde havia uma cama beliche e o seu estado de saúde era gripal e febril, e driblamos aquele quadro e resolvemos sair pra respirarmos uma brisa do mar caminhando pelo calçadão, depois paramos numa lanchonete e tomamos um delicioso café e suco de laranja com sanduíche, e serpenteando pelas ruas sombrias do bairro, o poeta fez uma citação irreverente dizendo que "Copacabana era uma enorme cama, onde nordestinos descansam...” – Luiz Loiola mergulha mais naqueles anos dourados, referindo-se ao poema Essa Copacabana Triste Mulher, publicado no livro Sob o Céu nas Nuvens.
“Não posso deixar de relatar, uma noite quando eu e o poeta chegamos em minha casa em Padre Miguel fomos para a cozinha e nos deliciamos com café com bolo, pães, cuscuz de fubá preparados por minha mãe, dona Maria Amélia (in memorian); foi quando o poeta, degustando uma banana, começou a declamar versos de Xarda Misturada, dando um toque tropicalista romântico àquela noite de inverno tímido” – registra meu caríssimo amigo Luiz Loiola.
Nessa mesma época, Manoel Bispo foi fazer um curso de pintura no Parque Lage, e foi vizinho do Luiz Tadeu, no Lins. Havia fins de semana que o Bispo e eu saíamos para bater perna. Parávamos para ver os pintores que expõem nas ruas da Zona Sul, entrávamos nas galerias, íamos a cinema e conversávamos sobre tudo. Eu ia muito a teatro, cinema de arte, circos como o Moscou e a grandes shows, como o Santana. Ia muito, também, aos programas de auditório da extinta TV Tupi. Varava o Rio noite adentro. Em 1974, já como balconista da filial da White Martins de Jacaré, pedi demissão e voltei para Macapá.
Em 1982, em Belém, com o matrimônio fracassado, parti novamente para o Rio de Janeiro. Mas era como se eu estivesse sonhando. Lembro-me que fui com o Luiz Tadeu para Pedra de Guaratiba, onde o Luiz Loiola festejou seu aniversário, com muita batida do Primo, vinho, cerveja, happenings e a bela voz do Luiz Tadeu. Dessa vez, minha estada no Rio durou pouco tempo. Retornei para Belém e concluí o curso de jornalismo.
Nos anos 1990, eu estava novamente no Rio quando o pintor Olivar Cunha expôs na Fiesp, em Botafogo, defronte ao Shopping Rio Sul. Ao coquetel de abertura estavam presentes Luiz Tadeu e sua filha e minha querida amiga Luciana Magalhães, e Luiz Loyola.
Em 1992, fui ao Rio para lançar A Grande Farra (edição do autor, Brasília, 1992, contos). Foi uma estada etílica.
Em 2000, fui participar da Bienal do Livro, com Trópico Úmido – Três Contos Amazônicos. Num domingo de manhã eu acabara de sair da praia de Ipanema, com Luciana Magalhães, quando houve o primeiro arrastão televisionado - cenas aterrorizantes. Também dessa vez foi como se eu estivesse mergulhado num sonho etílico.
Em 2010, passei uma semana com a minha gata, Josiane, no Rio. Ela é psicóloga e foi participar do décimo primeiro Congresso Brasileiro de Psicooncologia e do quarto Encontro Internacional de Cuidados Paliativos em Oncologia, de 22 a 25 de setembro, no Centro de Convenções do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC), em Botafogo. Hospedamo-nos no Hotel Inglês, ao lado do Museu da República, onde Getúlio Vargas se matou, no Flamengo. Jantávamos num restaurante defronte ao Museu, quase sempre camarão. Todas as comidas daquele restaurante são deliciosas. Aquela parte do Flamengo, até Botafogo, passando pelo Largo do Machado, é a Europa no trópico – fantástico. Durante o dia, enquanto a Josiane estava no CBC, eu incursionava pela Zona Sul, num resgate memorialístico redentor da cidade que eu tanto amo. Durante aquela semana eu esquadrinhei a Zona Sul, agora com o olhar maduro do homem de 56 anos de idade e que não mergulhava mais em bebedeiras mortais.
Perambulei por muitas ruas da Zona Sul, observei a arquitetura, a Lagoa Rodrigo de Freitas à noite, bati perna em Copacabana, Ipanema, Leblon, Barra da Tijuca, Flamengo, Botafogo, centro do Rio, e retornei ao Pão de Açúcar, com minha amada. Lá de cima sabemos de pronto por que o Rio é a Cidade Maravilhosa. Há cidades que aonde quer que eu vá estarei sempre nelas, porque elas, como o Rio de Janeiro, vivem para sempre no relicário do meu coração.

sábado, 1 de setembro de 2012

Cavalgada na luz

BRASÍLIA, 1 de setembro de 2012 – Eu tinha 17 anos quando saí de Macapá, em 1972. Era uma cidadela ribeirinha, sitiada pela selva, igualzinha a Macondo, com a diferença de que à sua frente passa o rio Amazonas. Quando é maré cheia e o vento sopra forte, ondas de mais de dois metros rebentam no muro de arrimo defronte da cidade, e quando a maré está baixa, o leito do rio surge, negro, numa faixa de quase um quilômetro de largura. Hoje, é a urbe que engole a floresta, numa caminhada de concreto, derrubando árvores e soterrando igarapés, em marcha de terra arrasada. Mas as cidades físicas são ilusórias; somente as que construímos em nosso coração eternizam-se.
Em dezembro de 1971, havia publicado, juntamente com Joy Edson (José Edson dos Santos) e José Montoril, Xarda Misturada, um livrinho de poemas adolescentes no qual o poeta Isnard Lima Filho encontrou um veio de pedras preciosas (certamente os poemas do Joy) e me batizou, então, de Ray Cunha, profetizando que um dia entrarei no mercado livreiro norte-americano. Meu nome é Raimundo, do gótico “sábio protetor”, e uma homenagem a meu avô paterno, Manoel Raimundo Cunha, e a meu pai, João Raimundo Cunha, além de uma promessa de vovó Rosa Maria Cunha a São Raimundo Nonato, padroeiro das parteiras e obstetras.
Pois bem, naquela época, em Macapá, artistas eram vistos como vagabundos. Então achei que deveria me mandar, e me mandei. Peguei minha cota de Xarda Misturada, tomei um barco no trapiche de Macapá e parti rumo a Belém, onde, com ajuda do meu irmão Paulo Cunha e de amigos, peguei carona pela Belém-Brasília, ainda em construção, e fui bater em Brasília, onde consegui, no antigo Ministério da Educação e Cultura (MEC), passagem para o Rio de Janeiro. De lá, queria ir a Paris e cheguei a conversar isso com o dramaturgo Paschoal Carlos Magno, que me aconselhou a me aquietar no Rio mesmo. Depois, vivi em Buenos Aires, Manaus, Belém e, finalmente, Brasília.
Nessa peripécia, passei por inúmeras situações e circunstâncias insalubres ou perigosas, e conheci pessoas maravilhosas, com o que delineei meu perfil, que terá, sempre, base naquilo que recebi dos meus pais: amor incondicional – pois todo amor verdadeiro é incondicional.
Em 1975, comecei a trabalhar como repórter, o que faço até hoje, 37 anos depois. Ler, leio desde os 5 anos de idade, maravilhado com os gibis do meu irmão Paulo Cunha, e, depois, aos 14 anos, com os livros da estante dele, na qual fiz o primeiro contato com Ernest Hemingway.
Recentemente, assumi a chefia de redação de uma agência de comunicação de Brasília, predominantemente de jovens. Aos 58 anos de idade, cheguei ao requinte de auscultar a alma dos jovens. Geralmente são inquietos, dramáticos, desesperados e trágicos. Pensam que são imortais, no sentido de que serão sempre jovens, e veem a velhice como câncer em metástase. Ignoram que jovens também adoecem, sofrem acidentes e morrem, e que se sobreviverem até uma idade provecta lembrarão maracujá de gaveta, ou múmia, dependendo do número de intervenções plásticas ou procedimentos médicos a que se submeterem. E que os órgãos de todos nós, belos ou feios, falirão, e que a morte é inevitável.
Há exceções, óbvio ululante (uma homenagem a Nelson Rodrigues, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos). O americano Ernest Hemingway foi uma delas. Tinha 21 anos quando decidiu demitir-se do cargo de correspondente do Toronto Star em Paris para dedicar-se exclusivamente à literatura, mesmo sabendo que passaria fome. E passou. Aos 26 anos, publicou um romance revolucionário e maravilhoso: O sol também se levanta. É que aos 18 anos quase morre na Primeira Grande Guerra, e reavaliou sua vida.
Aos 21 anos, quando comecei a trabalhar como repórter, em Manaus, lindas gatas faziam fila à porta da minha alcova, mas só mergulhei inteiramente nos misteriosos abismos femininos depois de velho, ou seja, depois da peripécia. Então, se formos dar um sentido verdadeiro para velhice, ela quer dizer experiência, sabedoria, requinte. Mas vou lhes dizer uma coisa que pouca gente sabe verdadeiramente: nós, seres humanos, somos movidos pela mente. É a mente que vivifica nosso corpo. O tempo cronológico é, tão somente, uma convenção. Portanto, a mente não tem idade. Somos todos, jovens e velhos, mentes sem idade. Neste contexto, os velhos recebem mais sol nos jardins de Deus.
Nosso corpo é simplesmente um amontoado de átomos (Albert Einstein deixou isso bem claro), que se unem enquanto há vida (Éter, como nominam os cientistas; Deus, para quem desenvolveu a intuição). Creio que todos conhecem o adágio: Orai e vigiai! Por meio da oração entramos em contato com Deus, e por meio da vigília, isto é, da prática do bem, nos alinhamos com o Universo. Só então podemos cavalgar a luz.