O
relógio despertou às 5 horas. Ricardo Larroyed desligou-o; o sabiá estava
cantando. Ergueu-se da cama e olhou pela janela. Chovera. A madrugada
quedava-se quieta como ave encharcada. Do seu quarto dava para ver as mangueiras
à luz das luminárias públicas. Não dormira muito, pois deitara-se tarde.
Levantou-se e foi ao banheiro; sentou-se no vaso e ficou lá um certo tempo.
Habituara-se a urinar sentado quando ainda vivia com Mara. Levantou-se, acionou
a descarga, lavou as mãos e o rosto, sacudiu água na boca e passou as mãos
úmidas na cabeça. Era bastante calvo na frente e usava os cabelos aparados à
máquina. Ajeitou o pijama, saiu do banheiro e se dirigiu à cozinha. Pôs água
para ferver e preparou uma xícara média de Antonello Monardo, encorpado e sem
açúcar. Excedera-se um pouco na noite anterior; devia ter tomado quase meia
garrafa de Anísio Santiago. Dali da cozinha foi para a biblioteca. Herdara a
casa de seu pai. Mais uma semelhança com seu sócio, Emanoel Vorcaro. Quando
separara-se, Mara fora para o Rio, sua cidade natal e onde conhecera o novo
marido, próspero empresário da área de alimentação, dono de três restaurantes
na Cidade Maravilhosa. Ricardo sentia profunda gratidão por ela. Amigos de
infância, começaram a namorar adolescentes. Naquela época, o talento, que não
sabia ainda para quê, começava, de alguma forma, a agitá-lo, e ele não tinha o necessário
direcionamento para canalizar aquela tremenda energia. Foi aí que Mara entrou,
conduzindo-o, por circunstâncias que nunca lhe ficaram claras, aos cursos que
Ricardo fizera. Casaram-se e logo depois sua missão se revelou com clareza
solar. O gatilho que o levou a compreender sua missão deixara uma lembrança na
sua barriga: uma cicatriz. Anos depois soube que tudo o que queria era seguir a
carreira de policial. Três anos após seu casamento com Mara, ela se queixou de
que não conseguia gozar com o travesseiro, desejou-lhe felicidade na polícia e
se mandou para o Rio. Chefe de cozinha competente, conquistou não só a
clientela do seu futuro marido, como principalmente a ele mesmo. No início, a
dor da perda queria estrangular o coração de Larroyed; mas que policial seria
se não conseguisse ignorar agulhadas em nervos expostos? O caso é que policiais
não podem ter nervos expostos. Sua trama nervosa tem que estar agasalhada em
meridianos de liga de aço e nióbio. Mas ainda pensou nela durante anos, até
conhecer Greta Cantanhede.
Enquanto se vestia, Ricardo Larroyed
olhava pela janela as mangueiras da rua. Morava sozinho, no coração do Cruzeiro
Velho. Adorava mangueiras, e, naturalmente, manga era sua fruta predileta, daí
que ficava possesso quando via, impotente, pessoas açoitando mangueiras, os
frutos ainda verdes. As mangueiras públicas sempre o deixavam com um sentimento
ambíguo, de prazer e revolta: prazer porque as amava, e de revolta porque
estavam sempre podadas só de um lado, por causa da fiação elétrica, “que
deveria estar debaixo do solo”.
Ricardo Larroyed era um espanto.
Delegado especial da Polícia Civil, lotado na Coordenação de Repressão a
Homicídios, fizera graduação simultânea em direito e medicina, com
pós-graduação em medicina legal, além da graduação em programação em
informática. Fora também alpinista, e quase perdera o joelho direito tentando
escalar o Pico da Neblina, o que jamais conseguiu. Um ortopedista, amigo da
família, lhe deu um conselho:
– Procura um acupunturista, agora! – e
lhe forneceu o número de telefone do dr. Emanoel Vorcaro.
Não só foi curado, como fez o curso de
medicina tradicional chinesa no Instituto Holístico e se tornou professor da
instituição, além de fazer uma amizade tão sólida com Emanoel Vorcaro a ponto
de em determinado momento passarem a almoçar juntos todo sábado, a menos, é
claro, que motivos de força maior os impedissem. Acabaram abrindo a Clínica de
Terapias Holísticas. Tanto a amizade quanto a sociedade eram inabaláveis, pois
alicerçavam-se na empatia, na medicina chinesa e no mandarim. Estudioso de antigas
confrarias, Larroyed lia em pelo menos doze idiomas, entre os quais o mandarim,
e até línguas mortas, como latim e aramaico. Media 1,90 metro e pesava 90
quilos e fora pugilista amador na juventude. Aos 41 anos, evocava um boa-vida,
com o devido ar cínico. Nada mais enganoso, pois cultivava disciplina
espartana. Ao levantar-se e ao deitar-se fazia religiosamente a Meditação
Shinsokan, criada pelo filósofo japonês Masaharu Taniguchi, fundador da
Seicho-No-Ie, e vivia no que chamava de “a eternidade do agora”, filosofia que
empregava ao extremo nos pegas amorosos com sua gata, a oncologista e
urologista Greta Cantanhede, “a negra mais bonita do planeta, incluindo-se,
para ficar mesmo redundante, a África!”
Começaram a namorar a partir de um
check-up. Ricardo estava com sintomas de herpes simples no pênis e ainda não
sabia o que era.
– Você já viu todo tipo de pinto, mas se
apaixonou por mim quando viu o pinto mais bonito do mundo – dizia-lhe, rindo.
– Deixas de ser besta, rapaz, para a tua
altura és quase aleijado; eu me apaixonei porque desde que te vi senti um
cataclismo! – ela lhe respondia, no seu sotaque macapaense, rindo também com
seus olhos grandes e escancarados, brilhando como uma prece, negros como o azul
do céu ao anoitecer em julho em Macapá, e o beijava como na primeira vez. Era
dessa parte que ele gostava.
Greta era filha de uma descendente de
escravos usados na construção da Fortaleza de São José de Macapá, dona Joana, e
de um pesquisador italiano, ginecologista e obstetra, que foi à Amazônia para
estudar as parteiras e as condições em que nasciam ribeirinhos e índios. Era
tão belo e tinha os olhos tão azuis que as mulheres, inclusive casadas,
chegavam a se ajoelhar aos seus pés suplicando que as possuíssem. Até chegar em
dona Joana, uma pérola autêntica, uma dessas mulheres que encerram a redenção
de todos os homens. Aí terminou a pesquisa. O dr. Catanhede voltou casado para
Roma, mas os romanos não aceitaram dona Joana; então, o casal mudou-se para
Macapá. Greta tinha 17 anos quando o dr. Cantanhede foi chamado ao Ministério
da Saúde, em Brasília, para criar e assumir o Departamento Nacional de
Ginecologia e Obstetrícia. Greta já estava terminando a faculdade de medicina
da Universidade Católica de Brasília quando o dr. Cantanhede foi diagnosticado
com câncer na próstata. Foi então que a planejada residência em ginecologia e
obstetrícia mudou para oncologia, além de uma especialização em urologia, na
esperança de salvar o pai.
– Deus escreve por linhas tortas, minha
filha! – foram as últimas palavras do cientista. Greta se tornou uma
referência, uma luz para os pacientes acometidos de câncer ou das doenças
horripilantes que se alojam no sexo masculino.
Dona Joana morreu na semana seguinte,
simplesmente porque queria encontrar-se com seu querido no mundo espiritual.
Morreu como um passarinho, que tomba de um momento para outro. Então Greta fez
mais uma especialização: acolhimento de pacientes e familiares, também
conhecido como paliativismo. Foi quando conheceu Ricardo Larroyed; o policial
internara sua mãe, viúva, no Hospital Sírio-Libanês, e foram acolhidos pela
dra. Greta Cantanhede. A gota d’água foi o herpes simples, e deu-se a magia das
almas gêmeas.
Uma hora depois Ricardo Larroyed
entrou na sua sala na Coordenação de Repressão a Homicídios, na sede da Polícia
Civil, Parque da Cidade, defronte para o Sudoeste, bairro de Brasília. Recebera
uma demanda nova e começaria naquela manhã a inteirar-se do caso. Três modelos foram
assassinadas ao longo daquele ano e havia indícios de ligação entre os crimes.
Ricardo começou a ler o primeiro caso, ocorrido em janeiro. Patrícia
Montenegro, 21 anos, de Belém do Pará, hospedada na suíte 1.134, décimo primeiro
andar do Grande Hotel, foi encontrada morta, por volta das 6h30 do dia 7 de
janeiro, no jardim do cinco estrelas, no Setor Hoteleiro Sul, coração de
Brasília. O caso foi investigado pela Primeira Delegacia de Polícia. Havia uma
foto de corpo inteiro de Patrícia Montenegro. Com 1,73 de altura, 60 quilos de
peso, morena de olhos verdes, fora eleita Musa Verão de Mosqueiro 2014, e iria
concorrer ao Miss Pará no concurso Beleza Brasil. Sonhava com o Miss Brasil 2015.
Por volta das 21 horas do dia 6 de janeiro, Patrícia ligou para sua irmã ao
telefone celular. Estava chorosa e pediu à irmã que guardasse as fotos de sua
carreira de modelo. Às 5 horas do dia seguinte, Patrícia voltou a telefonar
para casa e pediu à sua mãe que viesse buscá-la. Às 6h30, o corpo foi
encontrado num pequeno jardim na frente do hotel, na direção do estacionamento
de táxi no outro lado da rua, de onde ouviram gritos e o som da queda. Patrícia
Montenegro morava no Sudoeste há um mês e fazia o famoso curso de modelo da
qualificada agência Modelo Cerrado. Em torno das 6 horas do dia 7 de janeiro, o
porteiro da noite teria visto um homem magro, de terno, panamá e óculos escuros
tomar um dos elevadores, descendo no décimo primeiro andar, o que foi
confirmado por uma camareira; o homem foi visto saindo meia hora depois.
As outras duas modelos eram da mesma
agência. Em fevereiro, Roberta de Castro e Silva foi encontrada num dos
banheiros do estacionamento do primeiro subsolo do Grande Hotel. Recebera uma
punhalada no baço; coisa de cirurgião, e uma no púbis, perfurando o útero. Também
não havia sinal de esperma. O terceiro caso ocorreu no início de dezembro.
Dessa vez a estudante e modelo Gabriela Costa Médici fora encontrada na sua
kitnet na Asa Sul, onde morava sozinha. Era ruiva e estava nua na cama, os
cabelos espalhados em torno de um corpo que mesmo morto ainda exalava luz,
especialmente os pelos pubianos, salpicados de sangue. Não havia indício de esperma,
mas seu útero fora perfurado por punhal. Estava entupida de rupinol, o boa
noite Cinderela, e morrera devido à hemorragia do ferimento no útero; sangrara
até morrer, anestesiada pela grande quantidade de rupinol que ingerira.
Ricardo Larroyed pegou o telefone e
ligou para o delegado Mariano Braga, da Primeira DP, que investigara os três
casos. Ele estava lá. Identificou-se ao agente que atendera ao telefone e
esperou um pouco.
– Delegado Mariano Braga – ouviu do
outro lado da linha.
– Ricardo Larroyed, da Homicídios.
Recebi o caso de três modelos assassinadas, uma das quais parece suicídio, e os
três casos foram investigados por você. As modelos são Patrícia Montenegro,
Roberta de Castro e Silva e Gabriela Costa Médici. Queria conversar com você
sobre isso.
O delegado Mariano Braga pensou um
pouco.
– Acho que o conheço da academia –
disse. – Fiz o máximo que pude nos três casos, como você pode ver nos
relatórios.
– De qualquer modo, se não se importa,
eu gostaria de conversar com você; quem sabe não encontro mais alguma coisa que
ligue os três casos? As três frequentavam a agência Modelo Cerrado, que fica no
Grande Hotel.
– Poderemos conversar amanhã, o que lhe
parece? – propôs o delegado Mariano Braga.
– Ótimo! Aí ou fora daí?
– Você gosta de café?
– Sou aficionado por café!
– Então vamos nos encontrar no Café Picasso,
que fica no térreo do Grande Hotel? Às 19 horas? É lá que gosto de tomar um
relaxante, e aí aproveitaremos para dar uma olhada no Grande Hotel.
– Fechado!
Ricardo Larroyed ligou para a Modelo
Cerrado; identificou-se e pediu para falar com o diretor. Era diretora, Maíra
da Matta. Marcaram para as 17 horas, na agência. Pegou o paletó e saiu. Pouco
depois estacionava sua Chevrolet Blazer negra, modelo 2014, na Superquadra 410
Sul, por trás do restaurante Bali. Conseguiu uma mesa pequena e pediu tucunaré
frito e arroz com espinafre. Frequentava o Bali por dois pratos: tucunaré e
yakisoba, “os melhores de Brasília”. Gostava muito também da banana caramelada,
mas raramente a pedia, pois um tucunaré com arroz, ou a tigela de yakisoba, que
comia com gosto, não deixavam espaço para a banana.
Filho de um clínico médico carioca e que
viveu durante dez anos na China, o dr. Reinaldo Larroyed, transferido do Rio
para Brasília, onde conheceu a paraense Karina Monarcha, promotora pública,
Ricardo Monarcha Larroyed se tornou apreciador da Amazônia Azul e dos rios da
Hileia, e, naturalmente, de peixes e frutos do mar. Costumava ir a Belém duas
vezes por ano, repetindo o que faziam seus pais. Ia em julho, auge do verão
amazônico, quando as praias fluviais do subcontinente surgem em toda a sua
exuberância, e durante o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em outubro. Também a
família ia sempre que podia ao Rio e a Cabo Frio, e Ricardo repetia esse
périplo, ano após ano. Outros lugares que lhe interessavam, e aonde ia de vez
em quando, eram Hong Kong, Pequim, Tóquio, a Europa de um modo geral, o Caribe
e os Estados Unidos, especialmente Nova Orleans e Miami. Em outras palavras, o
planeta inteiro lhe despertava apetite. Era daquele tipo que curte tudo, e que
pode trabalhar o dia inteiro, dia após dia, sem sentir-se cansado, e Greta não
lhe dava descanso. Sabia, contudo, de onde vinha aquela energia. Seu pai fora
uma espécie de missionário, pois fez da sua carreira médica uma missão; nunca
deixava de atender um paciente, mesmo sabendo que ele não poderia pagá-lo, e
fazia trabalho voluntário num centro de triagem no Rio, por onde passava todo
tipo de derrotados: moradores de rua, vagabundos, alcoólatras, drogados de
todas as espécies, suicidas, assassinos se escondendo, loucos varridos. Atendia
cada um, não importando seu fedor, com a mesma atenção, e tinha sempre, na manga,
uma palavra de conforto, um elogio, capaz de extrair luz do meio da podridão. Podia
atender, ao longo do dia que reservava na semana para trabalhar ali, 10, 40, 70
pessoas, 100, se fosse preciso, e no fim mostrava a mesma energia inicial, o
que deixava seus colegas intrigados e ciumentos. Quanto à dra. Karina Monarcha,
quando investigava e fazia acusação a um bandido, dormia muito pouco, mas
jamais Ricardo vira-a cochilando. Pensando bem, ele não se lembrava de ter
contraído sequer um resfriado. Dava-se conta agora disso. Os únicos problemas
de que se lembrava foram o joelho, na sua tentativa frustrada de escalar o Pico
da Neblina (“Poderia ter escolhido o Pão de Açúcar, mas, não, fui logo ao Pico
da Neblina!”), e herpes simples, “provavelmente contraída durante o encontro
fortuito com uma loira escultural, e casada, num restaurante chique do Lago
Sul, e que me inoculou uma carga de vírus capaz de atravessar a parede de aço e
nióbio dos meus meridianos neuronais” – como dizia para si mesmo. Havia também
a cicatriz na barriga, embora não fosse proveniente de doença. E depois, a
autoacupuntura, a alimentação baseada em princípios da medicina tradicional
chinesa, e a meditação, produziram-lhe um efeito paradoxal: ao mesmo tempo em
que se sentia rijo como liga de aço e nióbio, experimentava a flexibilidade de
um galho de goiabeira. Só perdia o humor quando se deparava com casos de
discriminação, étnica, social, geográfica, de peso corporal, de gênero, de
escolha sexual, financeira, qualquer tipo de discriminação. Para ele,
discriminação era o ponto mais baixa da imbecilidade humana. Também sentia
horror a ladrões. Mas o que o fez decidir-se a ser policial especializado em
homicídios foi um caso que ainda o visitava em pesadelos, embora cada vez mais
esparsos.
Na época, era um fedelho, mas por
ser alto, bem apessoado e intelectualmente brilhante, atraía as mulheres, e foi
assim que se tornou confidente de uma professora que tivera no Elefante Branco.
Ela apresentava olheiras e tristeza. Ele podia sentir isso. Até que um dia,
depois da aula, foram para um motel no Núcleo Bandeirante.
– Nunca tinha sentido o que senti
hoje – ela disse. – Na noite de núpcias, quando meu marido pressentiu que eu ia...
gozar, ele saiu de cima de mim e me olhou pela primeira vez com aquele olhar
assassino e me bateu, bateu na boca, e depois me deu outros tapas até eu
suplicar que não me batesse mais, e depois fez todas as coisas, torpes, que ele
vem fazendo desde então. A minha lua de mel foi assim, uma lua de fel. Ele me
bate quase todos os dias, e faz coisas repugnantes comigo. Quando o meu pai era
vivo, não tinha coragem de contar para ele, porque era ele que batia em mim,
antes de eu casar, e minha mãe fazia tudo o que meu pai mandasse ela fazer. A
sorte é que, quando nos casamos, eu já era professora, embora o meu salário seja
todo entregue a ele, apesar de que ele é um empresário cheio da grana. Já
pensei em matá-lo! Mas como? – Ela o abraçou. Era uma mulher ainda bonita, apesar
das marcas roxas pelo corpo todo, especialmente as de quem abandona a si mesma.
Aquilo durou todo um trimestre, até
o dia em que ela garantiu que seu marido viajara e que eles podiam ir à casa
dela, no Lago Sul, naquele domingo, pois não haveria nenhum empregado. No
domingo, Ricardo estava lá. Assim que ele chegou, no fim da manhã, foram
imediatamente para a alcova. O rapaz já ia mergulhar no acme quando recebeu a
cacetada na nuca. Acordou solidamente amarrado numa cadeira e com uma fita na
boca.
– Primeiro vou matar essa vagabunda
e depois extirpar teus bagos – disse o sujeito à sua frente, empunhando uma
faca de caça.
Ricardo olhou para a cama e a viu.
Estava fortemente amarrada e com uma fita na boca, os olhos arregalados,
aterrorizados. Olhou novamente para o sujeito. Era um cara bombado, parecia
mais jovem do que a esposa, e bem vestido.
– Planejei tudo, sujeitinho escroto;
ela pensou que eu tinha viajado mesmo. Nunca viajo. Segui vocês dois até me
certificar que essa vagabunda dá até para cachorro – e aplicou a primeira
facada na mulher, na vagina.
Ricardo ergueu a cadeira e se arremessou
contra o tipo, conseguindo atingi-lo com a cabeça no queixo; quando a cadeira
caiu quebrou uma perna, afrouxando as amarras. Entupido de adrenalina, o rapaz
livrou-se das amarras frouxas e da fita num urro leonino de agonia e partiu
para cima do sujeito, que havia perdido a faca. Mas o cara sabia bater e o
atingiu na boca do estômago. Ricardo dobrou-se em dois e quando recobrava-se
levou um coice na boca. Sem dúvida, aquele empresário não sabia só ganhar
dinheiro e bater na esposa; batia, e muito bem, nos fedelhos que ela levava
para a cama. Um soco na nuca quase o pôs a nocaute pela segunda vez naquela
manhã, mas a dor aguda que sentiu no ventre o acordou de vez. Pôs a mão em cima
do ferimento onde fora esfaqueado e olhou para a cama. O corno estava degolando
a mulher. Dessa vez o urro saiu-lhe da alma; voou para cima do sujeito e só
parou de socá-lo quando ele desfaleceu. Na cama, a cena dantesca: a cabeça
praticamente separada do corpo.
O caso foi parar na Delegacia da
Mulher e depois no Júri Popular, onde o assassino pegou pena máxima, mas não
cumpriu sequer metade disso, pois encontrou na cadeia um sujeito ainda mais
violento do que ele, e que não suportava o convívio com quem bate em mulher; se
a mata, então, é porque já portava passagem só de ida para o inferno. Durante
os processos policial e judicial, Ricardo tomou contato com o mundo dos
assassinos, inclusive comprou um livro sobre a mente dos psicopatas e soube,
então, que estava destinado a identificar e afastar do convívio da sociedade
todos aqueles que atentam contra a obra de Deus e que atravessassem seu caminho.
Do restaurante, foi fazer uma
pesquisa nos arquivos da Polícia Civil e dar alguns telefonemas. Às 17 horas
chegou à agência de modelos, que ocupava várias salas naquele misto de shopping,
centro empresarial e hotel no Setor Hoteleiro Sul, o Grande Hotel, ponto de
encontro de mariposas esculturais. Foi introduzido numa sala de espera onde
havia pelo menos meia dúzia de garotas, todas lindas, conversando. Uma senhora
de avental perguntou se ele aceitaria água e café. Sim. A água estava fresquinha
e o café era um ótimo blend. Não demorou quase nada para que Ricardo Larroyed
fosse chamado. Quando entrou na sala da senhora Maíra da Matta não havia
ninguém. Sentou-se num sofá, de onde dava para ver a Torre de TV. Não demorou
muito a diretora surgiu de uma entrada atrás da ampla escrivaninha. Ricardo se
levantou para cumprimentá-la. A mulher lembrava uma ave de rapina e sua voz era
aguda, quase uma sequência de piados.
– Conforme eu disse à senhora ao telefone, a
morte misteriosa de três modelos, e todas elas desta agência, nos levou a
desconfiar que pode haver um assassino comum – disse o policial.
– E o senhor acha que o assassino
trabalha aqui, na agência! – ela exclamou.
– Quando a senhora soube da morte
das três modelos não achou estranho que três se foram só neste ano, e todas
assassinadas? – Ricardo perguntou-lhe.
– Sim, achei. Li tudo sobre a
investigação de cada caso, além de conversar longamente com familiares delas. A
Patrícia Montenegro se envolveu com o professor de dança da nossa academia, o
professor Sebastião Estrela, o que levou, inclusive, o noivo de Patrícia
Montenegro a terminar com ela. Sei disso porque a mãe dela, que me ligava toda
semana, estava preocupada e me falou sobre tudo isso, pormenorizadamente, em
longo telefonema. O namorado dela era muito ciumento, e foi por uma besteira
que ele pôs fim ao noivado; isso deixou a Patrícia deprimida. Parece que ela o
amava e sofria por tê-lo perdido por causa do professor Sebastião Estrela, com
quem havia apenas flertado, como de resto nos dois outros casos.
– O professor se envolveu também com as
outras duas modelos mortas? – o policial perguntou.
– Como eu disse, foram apenas flertes. O
delegado que investigou todos os casos esquadrinhou a vida do professor, a
ponto de Sebastião Estrela ter ficado com esgotamento nervoso. Mas não
encontrou nada que pudesse comprometê-lo. Em todos os casos ele tinha álibi,
que inclusive eu mesma chequei. Pessoalmente, estou certa de que o flerte entre
o professor e minhas três meninas, e a morte delas, foi coincidência, uma
infeliz coincidência. Mas voltando à Patrícia Montenegro, o quadro psicológico dela
se agravou com o anúncio do casamento do ex-noivo, logo depois do rompimento
deles. Parecia até que ele só estava esperando um motivo para terminar com ela.
Isso a deixou agressiva, nervosa, quando, normalmente, era um doce de pessoa.
Sabe, delegado, tenho o dom de atrair pessoas com necessidade de desabafar, e
também de as ouvir e lhes dar conselhos. O que já ouvi das minhas meninas o
senhor nem imagina; seria material farto para Honoré de Balzac. Porém o mais intrigante
é que as três tinham mioma, e eram tratadas com acupuntura – a mulher lembrava
um falcão, e seus olhos pareciam ocupar toda a sala.
O policial quase cai da cadeira, uma
cadeira sólida, construída por marceneiro; ajeitou-se.
– As três eram tratadas com
acupuntura? Então o assassino
poderá ser acupunturista? – balbuciou.
– Cabe ao senhor comprovar isso. Quanto
a mim, vou lhe dar todo o apoio possível para que encontre esse psicopata. Uma
das meninas, Gabriela Costa Médici, a última que foi morta, era filha de uma
amiga minha, do Rio Grande do Sul, a quem eu devo muito; uma pessoa altruísta.
Nunca a vi fazendo mal a alguém; minha amiga está sofrendo muito! Muito! Mas
que não seja por isso; eram moças muito jovens, que estavam começando a vida,
cheias de sonhos, e também de ilusões, como é comum nessa idade, sobretudo na
profissão que elas haviam abraçado.
– Naturalmente a senhora investigou
para ver se há alguém, aqui na agência, que seja versado em acupuntura?
– Sim! Não há nenhum acupunturista aqui.
– Precisamos descobrir por quem as três
eram tratadas.
– A Patrícia Montenegro tratava-se
em Belém, mas as duas daqui, eu sei onde foram tratadas – disse a mulher.
– Onde? – Ricardo perguntou,
ansioso.
– No Instituto Holístico.
Pela segunda vez Ricardo Larroyed quase
cai da cadeira. Olhou para o relógio. Às 19 horas teria uma reunião de
professores no Instituto Holístico.
– Gostaria de conversar com o professor
Sebastião Estrela – disse à senhora Maíra da Matta.
– Pode ser amanhã à tarde, por volta das
16 horas? – os cabelos tingidos de negro, a blusa também negra e a saia branca
da diretora a deixavam ainda mais parecida a um falcão-peregrino. – O senhor
poderá conversar com ele aqui mesmo, na minha sala.
– Combinado! – ele disse, levantando-se.
Pouco depois encontrou vaga na 203 Sul,
distante uns 500 metros da Fundação Holística, um prédio de dois andares e
subsolo no Bloco A. Eram ainda 18 horas, o que lhe dava uma hora para dar uma
olhada nos arquivos do ambulatório. A secretária-executiva da escola, dona
Maria das Dores Craveiro, estava na portaria. Seu nome caía-lhe como uma luva.
Era uma mulher empertigada e encarangada; sentia dores nas mãos, como se fossem
transpassadas por cravos. Fora tratada por todos os professores, mas só
encontrava alívio nas mãos do professor Bartolomeu Amado, o Bafo de Onça.
A Fundação Holística fora criada pelo professor
Marcelo Quintela, um boa-vida de família endinheirada. Tinha 21 anos quando
começou a perder massa muscular na coxa esquerda, após um acidente
automobilístico. Nenhum tratamento estava dando certo quando foi encaminhado
para um velho médico chinês, em São Paulo. Logo na primeira sessão o chinês deu
uma espécie de beliscão na coxa do paciente e a perna deu um salto. Em dez
sessões a perda de massa muscular cessou. Isso deixou o jovem empresário do
ramo automobilístico tão empolgado que ele resolveu fazer o curso de medicina
tradicional chinesa, com especialização na China. Ao assistir a uma conferência
de Giovanni Maciocia em Londres, decidiu criar uma escola em Brasília. Ricardo
Larroyed, que o conhecia desde o Elefante Branco, lembrou-se do dia em que foi
convidado para lecionar na Fundação Holística. Naquele dia, foram almoçar num
daqueles restaurantes da 404 Sul. Marcelo Quintela ainda não se convencera de
que Ricardo Larroyed aceitara lecionar no Instituto Holístico, e puxava
assunto; então, começou a contar uma história.
– Certo dia dos anos de 1960, o
jornalista e escritor Joy Hyams almoçava com Bruce Lee num restaurante chinês
no centro de Los Angeles. Não era sempre que Hyams tinha esse privilégio, de
modo que aproveitou a oportunidade para queixar-se a Bruce, confessando-lhe que
andava desanimado, sentindo-se velho, embora só tivesse 45 anos. Achava-se
rígido demais para o Jeet Kune Do, a arte marcial criada por Bruce.
– Você jamais aprenderá nada de novo se
não estiver disposto a aceitar-se com suas limitações – disse-lhe Bruce. – Você
precisa aceitar o fato de que é capaz em algumas coisas e limitado em outras, e
que precisa desenvolver suas aptidões.
Hyams retrucou que aos 35 anos podia
facilmente aplicar um golpe de pé acima de sua cabeça. Bruce fez uma pausa na
mastigação e olhou para Hyams.
– Isso foi há dez anos – disse Bruce. –
Agora você está mais velho e seu corpo mudou. Todos têm limitações físicas a
vencer.
Hyams continuou argumentando,
comparando-se a Bruce.
– Isso é fácil para você dizer. Se
alguma vez alguém nasceu com habilidade natural para as artes marciais, esse
alguém é você – insistiu.
– Vou lhe contar algo que pouca gente
sabe: tornei-me um praticante de arte marcial apesar das minhas limitações –
confidenciou-lhe Bruce, com um sorriso. – Por certo você não se deu conta, mas
minha perna direita é quase 2,5 centímetros mais curta que a esquerda. Isso
determinou minha melhor postura: o comando do pé esquerdo. Percebi, então, que,
devido à perna direita ser menor, eu levava vantagem em certos golpes de pé,
pois a pisada desigual deva-me um impulso maior. Além disso, uso lentes de
contato. Desde criança sou míope, o que significa que, quando estava sem
óculos, tinha dificuldade em ver meu adversário à distância. No início,
voltei-me para o estudo de wing chun, que é uma técnica ideal para a luta
corpo-a-corpo. Aceitei minhas limitações como elas eram e tirei proveito delas.
É isso que você precisa aprender. Você diz que é incapaz de dar golpes de pé
acima da cabeça antes de longo aquecimento, mas o problema efetivo é: importa
realmente dar golpes dessa altura? A verdade é que, até recentemente, os
praticantes de artes marciais raramente davam golpes de pé acima dos joelhos.
Esses golpes à altura da cabeça são em sua maioria para exibição. Por isso,
aperfeiçoe seus golpes de pé no nível da cintura e eles se tornarão tão
formidáveis que você nunca precisará de golpes mais altos. Em vez de tentar fazer
tudo bem, faça com perfeição apenas as coisas que pode. Embora a maioria dos
praticantes de artes marciais competentes tenha gasto anos dominando centenas
de técnicas e movimentos, num ataque, ou kumite, um campeão não usa
efetivamente mais do que quatro ou cinco técnicas, sempre. São essas técnicas
que ele aperfeiçoou e das quais sabe que depende.
Hyams protestou.
– Mas permanece o fato de que o meu verdadeiro
adversário é a idade – insistiu.
– Pare de se comparar, aos 45 anos, com
o homem que você era aos 20 ou 30 – disse Bruce. – O passado é uma ilusão. Você
precisa aprender a viver no presente, aceitando-se como você é agora. O que lhe
falta em flexibilidade e agilidade cabe-lhe suprir com conhecimentos e
exercício permanente.
– Depois dessa conversa, Hyams não
perdeu mais tempo tentando golpear com os pés acima da cabeça; em vez disso,
trabalhou golpes à altura da cintura, até agradarem ao próprio Bruce. Em fins
de 1965, Bruce foi até a casa de Hyams, despedir-se, pois partiria para Hong
Kong, onde pretendia se tornar um astro do cinema – disse Marcelo Quintela.
– Lembra-se da nossa conversa sobre
limitações. Pois bem, estou limitado pelo meu tamanho e dificuldades no inglês,
além de ser chinês e nunca ter havido um grande astro chinês nos filmes
americanos. Gastei os últimos três anos estudando cinema e creio que chegou a
hora para um bom filme de artes marciais, e eu sou o mais qualificado para
estrelá-lo. Minhas aptidões superaram minhas limitações – disse Bruce.
– As aptidões de Bruce superaram
efetivamente suas limitações, e, até sua morte prematura, ele foi um dos
maiores astros do cinema. Sua carreira foi um exemplo perfeito do seu ensino:
na medida em que descobrimos e desenvolvemos nossos pontos fortes, eles se
impõem às nossas fraquezas – conclui Hyams, no seu livro O Zen nas Artes Marciais.
– Pois bem – disse Marcelo Quintela – quando
fiz o curso de medicina chinesa em São Paulo, entre os meus extraordinários
professores havia um, o professor Camarão, um japonês que era ouvido e
procurado até pelos seus colegas de cátedra. Ele dominava um modo único de
pegar as agulhas durante uma sessão, todas as dez de um pacotinho, colocando-as
entre os dedos anelar e mindinho, e aplicando-as em questão de segundos. Tentei
imitá-lo na minha primeira tentativa, tendo como paciente uma gata que eu
estava comendo. Uma semana depois eu ainda encontrava agulhas no chão da sala do
meu apê. Desisti de imitar o professor Camarão. Ele também introduz as agulhas
numa batida seca, com a ponta do dedo médio, que apoia na unha do indicador,
soltando-o como um martelo, bam!, e assim introduzindo a agulha, por meio do
mandril, em milésimos de segundo. Isso eu tentei, gostei, e é o que faço –
continuou Marcelo Quintela, que gostava muito de falar. – A medicina tradicional
chinesa, que se baseia no Tao, o caminho, o equilíbrio entre yin e yang, conta
com know-how em torno de 5 mil anos. Holística, trata o paciente como um todo,
e considera a dimensão da matéria tão somente energia, como, aliás, confirmou o
físico alemão Albert Einstein. Só as possibilidades com as agulhas já são
ilimitadas, quando mais se considerarmos outros pilares da MTC, como
alimentação correta, fitoterapia, tuiná, tai chi chuan, que é meditação em ação,
e um mundo de conhecimentos terapêuticos da filosofia oriental, que é, também,
religião. Assim, o acupunturista terá inesgotável manancial de possibilidades
para tratar o paciente. E da mesma forma como pensava Bruce Lee, o
acupunturista não deve perder tempo com algo que o Tao está a lhe dizer que não
é importante; precisa somente concentrar-se naquilo em que mais sente fluir seu
talento, mesmo que seja apenas sorrir – disse, entremeando o monólogo com
grandes garfadas do saboroso bacalhau.
O prédio da Fundação Holística pertencia
à família do professor Marcelo Quintela, e fora adaptado para a escola. Bem
conservado e iluminado, o ambiente era silencioso e fresco. O arquivo ficava
numa sala no térreo, pegada à secretaria. Maria das Dores Craveiro mostrou a
Ricardo Larroyed o armário onde eram guardados todos os documentos do
ambulatório. O policial remexeu o armário durante pelo menos meia hora. Às 19, Maria
das Dores o avisou que Marcelo Quintela acabara de chegar. Ricardo guardou na
sua pasta algumas cópias que fizera na impressora Xerox e se dirigiu para a
sala dos professores. Estavam todos lá. Havia alguma coisa diferente em Emanoel
Vorcaro. Os olhos dele brilhavam.