sábado, 18 de novembro de 2017

Como o delegado Ricardo Larroyed, da Homicídios, também se tornou acupunturista


Segundo capítulo do romance de Ray Cunha, FOGO NO CORAÇÃO, trabalho de conclusão do curso de Medicina Tradicional Chinesa na Escola Nacional de Acupuntura (ENAc). FOGO NO CORAÇÃO está à venda na Amazon.com.br e no Clube de Autores.

O relógio despertou às 5 horas. Ricardo Larroyed desligou-o; o sabiá estava cantando. Ergueu-se da cama e olhou pela janela. Chovera. A madrugada quedava-se quieta como ave encharcada. Do seu quarto dava para ver as mangueiras à luz das luminárias públicas. Não dormira muito, pois deitara-se tarde. Levantou-se e foi ao banheiro; sentou-se no vaso e ficou lá um certo tempo. Habituara-se a urinar sentado quando ainda vivia com Mara. Levantou-se, acionou a descarga, lavou as mãos e o rosto, sacudiu água na boca e passou as mãos úmidas na cabeça. Era bastante calvo na frente e usava os cabelos aparados à máquina. Ajeitou o pijama, saiu do banheiro e se dirigiu à cozinha. Pôs água para ferver e preparou uma xícara média de Antonello Monardo, encorpado e sem açúcar. Excedera-se um pouco na noite anterior; devia ter tomado quase meia garrafa de Anísio Santiago. Dali da cozinha foi para a biblioteca. Herdara a casa de seu pai. Mais uma semelhança com seu sócio, Emanoel Vorcaro. Quando separara-se, Mara fora para o Rio, sua cidade natal e onde conhecera o novo marido, próspero empresário da área de alimentação, dono de três restaurantes na Cidade Maravilhosa. Ricardo sentia profunda gratidão por ela. Amigos de infância, começaram a namorar adolescentes. Naquela época, o talento, que não sabia ainda para quê, começava, de alguma forma, a agitá-lo, e ele não tinha o necessário direcionamento para canalizar aquela tremenda energia. Foi aí que Mara entrou, conduzindo-o, por circunstâncias que nunca lhe ficaram claras, aos cursos que Ricardo fizera. Casaram-se e logo depois sua missão se revelou com clareza solar. O gatilho que o levou a compreender sua missão deixara uma lembrança na sua barriga: uma cicatriz. Anos depois soube que tudo o que queria era seguir a carreira de policial. Três anos após seu casamento com Mara, ela se queixou de que não conseguia gozar com o travesseiro, desejou-lhe felicidade na polícia e se mandou para o Rio. Chefe de cozinha competente, conquistou não só a clientela do seu futuro marido, como principalmente a ele mesmo. No início, a dor da perda queria estrangular o coração de Larroyed; mas que policial seria se não conseguisse ignorar agulhadas em nervos expostos? O caso é que policiais não podem ter nervos expostos. Sua trama nervosa tem que estar agasalhada em meridianos de liga de aço e nióbio. Mas ainda pensou nela durante anos, até conhecer Greta Cantanhede.
Enquanto se vestia, Ricardo Larroyed olhava pela janela as mangueiras da rua. Morava sozinho, no coração do Cruzeiro Velho. Adorava mangueiras, e, naturalmente, manga era sua fruta predileta, daí que ficava possesso quando via, impotente, pessoas açoitando mangueiras, os frutos ainda verdes. As mangueiras públicas sempre o deixavam com um sentimento ambíguo, de prazer e revolta: prazer porque as amava, e de revolta porque estavam sempre podadas só de um lado, por causa da fiação elétrica, “que deveria estar debaixo do solo”.
Ricardo Larroyed era um espanto. Delegado especial da Polícia Civil, lotado na Coordenação de Repressão a Homicídios, fizera graduação simultânea em direito e medicina, com pós-graduação em medicina legal, além da graduação em programação em informática. Fora também alpinista, e quase perdera o joelho direito tentando escalar o Pico da Neblina, o que jamais conseguiu. Um ortopedista, amigo da família, lhe deu um conselho:
– Procura um acupunturista, agora! – e lhe forneceu o número de telefone do dr. Emanoel Vorcaro.
Não só foi curado, como fez o curso de medicina tradicional chinesa no Instituto Holístico e se tornou professor da instituição, além de fazer uma amizade tão sólida com Emanoel Vorcaro a ponto de em determinado momento passarem a almoçar juntos todo sábado, a menos, é claro, que motivos de força maior os impedissem. Acabaram abrindo a Clínica de Terapias Holísticas. Tanto a amizade quanto a sociedade eram inabaláveis, pois alicerçavam-se na empatia, na medicina chinesa e no mandarim. Estudioso de antigas confrarias, Larroyed lia em pelo menos doze idiomas, entre os quais o mandarim, e até línguas mortas, como latim e aramaico. Media 1,90 metro e pesava 90 quilos e fora pugilista amador na juventude. Aos 41 anos, evocava um boa-vida, com o devido ar cínico. Nada mais enganoso, pois cultivava disciplina espartana. Ao levantar-se e ao deitar-se fazia religiosamente a Meditação Shinsokan, criada pelo filósofo japonês Masaharu Taniguchi, fundador da Seicho-No-Ie, e vivia no que chamava de “a eternidade do agora”, filosofia que empregava ao extremo nos pegas amorosos com sua gata, a oncologista e urologista Greta Cantanhede, “a negra mais bonita do planeta, incluindo-se, para ficar mesmo redundante, a África!”
Começaram a namorar a partir de um check-up. Ricardo estava com sintomas de herpes simples no pênis e ainda não sabia o que era.
– Você já viu todo tipo de pinto, mas se apaixonou por mim quando viu o pinto mais bonito do mundo – dizia-lhe, rindo.
– Deixas de ser besta, rapaz, para a tua altura és quase aleijado; eu me apaixonei porque desde que te vi senti um cataclismo! – ela lhe respondia, no seu sotaque macapaense, rindo também com seus olhos grandes e escancarados, brilhando como uma prece, negros como o azul do céu ao anoitecer em julho em Macapá, e o beijava como na primeira vez. Era dessa parte que ele gostava.
Greta era filha de uma descendente de escravos usados na construção da Fortaleza de São José de Macapá, dona Joana, e de um pesquisador italiano, ginecologista e obstetra, que foi à Amazônia para estudar as parteiras e as condições em que nasciam ribeirinhos e índios. Era tão belo e tinha os olhos tão azuis que as mulheres, inclusive casadas, chegavam a se ajoelhar aos seus pés suplicando que as possuíssem. Até chegar em dona Joana, uma pérola autêntica, uma dessas mulheres que encerram a redenção de todos os homens. Aí terminou a pesquisa. O dr. Catanhede voltou casado para Roma, mas os romanos não aceitaram dona Joana; então, o casal mudou-se para Macapá. Greta tinha 17 anos quando o dr. Cantanhede foi chamado ao Ministério da Saúde, em Brasília, para criar e assumir o Departamento Nacional de Ginecologia e Obstetrícia. Greta já estava terminando a faculdade de medicina da Universidade Católica de Brasília quando o dr. Cantanhede foi diagnosticado com câncer na próstata. Foi então que a planejada residência em ginecologia e obstetrícia mudou para oncologia, além de uma especialização em urologia, na esperança de salvar o pai.
– Deus escreve por linhas tortas, minha filha! – foram as últimas palavras do cientista. Greta se tornou uma referência, uma luz para os pacientes acometidos de câncer ou das doenças horripilantes que se alojam no sexo masculino.
Dona Joana morreu na semana seguinte, simplesmente porque queria encontrar-se com seu querido no mundo espiritual. Morreu como um passarinho, que tomba de um momento para outro. Então Greta fez mais uma especialização: acolhimento de pacientes e familiares, também conhecido como paliativismo. Foi quando conheceu Ricardo Larroyed; o policial internara sua mãe, viúva, no Hospital Sírio-Libanês, e foram acolhidos pela dra. Greta Cantanhede. A gota d’água foi o herpes simples, e deu-se a magia das almas gêmeas.
            Uma hora depois Ricardo Larroyed entrou na sua sala na Coordenação de Repressão a Homicídios, na sede da Polícia Civil, Parque da Cidade, defronte para o Sudoeste, bairro de Brasília. Recebera uma demanda nova e começaria naquela manhã a inteirar-se do caso. Três modelos foram assassinadas ao longo daquele ano e havia indícios de ligação entre os crimes. Ricardo começou a ler o primeiro caso, ocorrido em janeiro. Patrícia Montenegro, 21 anos, de Belém do Pará, hospedada na suíte 1.134, décimo primeiro andar do Grande Hotel, foi encontrada morta, por volta das 6h30 do dia 7 de janeiro, no jardim do cinco estrelas, no Setor Hoteleiro Sul, coração de Brasília. O caso foi investigado pela Primeira Delegacia de Polícia. Havia uma foto de corpo inteiro de Patrícia Montenegro. Com 1,73 de altura, 60 quilos de peso, morena de olhos verdes, fora eleita Musa Verão de Mosqueiro 2014, e iria concorrer ao Miss Pará no concurso Beleza Brasil. Sonhava com o Miss Brasil 2015. Por volta das 21 horas do dia 6 de janeiro, Patrícia ligou para sua irmã ao telefone celular. Estava chorosa e pediu à irmã que guardasse as fotos de sua carreira de modelo. Às 5 horas do dia seguinte, Patrícia voltou a telefonar para casa e pediu à sua mãe que viesse buscá-la. Às 6h30, o corpo foi encontrado num pequeno jardim na frente do hotel, na direção do estacionamento de táxi no outro lado da rua, de onde ouviram gritos e o som da queda. Patrícia Montenegro morava no Sudoeste há um mês e fazia o famoso curso de modelo da qualificada agência Modelo Cerrado. Em torno das 6 horas do dia 7 de janeiro, o porteiro da noite teria visto um homem magro, de terno, panamá e óculos escuros tomar um dos elevadores, descendo no décimo primeiro andar, o que foi confirmado por uma camareira; o homem foi visto saindo meia hora depois.
As outras duas modelos eram da mesma agência. Em fevereiro, Roberta de Castro e Silva foi encontrada num dos banheiros do estacionamento do primeiro subsolo do Grande Hotel. Recebera uma punhalada no baço; coisa de cirurgião, e uma no púbis, perfurando o útero. Também não havia sinal de esperma. O terceiro caso ocorreu no início de dezembro. Dessa vez a estudante e modelo Gabriela Costa Médici fora encontrada na sua kitnet na Asa Sul, onde morava sozinha. Era ruiva e estava nua na cama, os cabelos espalhados em torno de um corpo que mesmo morto ainda exalava luz, especialmente os pelos pubianos, salpicados de sangue. Não havia indício de esperma, mas seu útero fora perfurado por punhal. Estava entupida de rupinol, o boa noite Cinderela, e morrera devido à hemorragia do ferimento no útero; sangrara até morrer, anestesiada pela grande quantidade de rupinol que ingerira.
Ricardo Larroyed pegou o telefone e ligou para o delegado Mariano Braga, da Primeira DP, que investigara os três casos. Ele estava lá. Identificou-se ao agente que atendera ao telefone e esperou um pouco.
– Delegado Mariano Braga – ouviu do outro lado da linha.
– Ricardo Larroyed, da Homicídios. Recebi o caso de três modelos assassinadas, uma das quais parece suicídio, e os três casos foram investigados por você. As modelos são Patrícia Montenegro, Roberta de Castro e Silva e Gabriela Costa Médici. Queria conversar com você sobre isso.
O delegado Mariano Braga pensou um pouco.
– Acho que o conheço da academia – disse. – Fiz o máximo que pude nos três casos, como você pode ver nos relatórios.
– De qualquer modo, se não se importa, eu gostaria de conversar com você; quem sabe não encontro mais alguma coisa que ligue os três casos? As três frequentavam a agência Modelo Cerrado, que fica no Grande Hotel.
– Poderemos conversar amanhã, o que lhe parece? – propôs o delegado Mariano Braga.
– Ótimo! Aí ou fora daí?
– Você gosta de café?
– Sou aficionado por café!
– Então vamos nos encontrar no Café Picasso, que fica no térreo do Grande Hotel? Às 19 horas? É lá que gosto de tomar um relaxante, e aí aproveitaremos para dar uma olhada no Grande Hotel.
– Fechado!
Ricardo Larroyed ligou para a Modelo Cerrado; identificou-se e pediu para falar com o diretor. Era diretora, Maíra da Matta. Marcaram para as 17 horas, na agência. Pegou o paletó e saiu. Pouco depois estacionava sua Chevrolet Blazer negra, modelo 2014, na Superquadra 410 Sul, por trás do restaurante Bali. Conseguiu uma mesa pequena e pediu tucunaré frito e arroz com espinafre. Frequentava o Bali por dois pratos: tucunaré e yakisoba, “os melhores de Brasília”. Gostava muito também da banana caramelada, mas raramente a pedia, pois um tucunaré com arroz, ou a tigela de yakisoba, que comia com gosto, não deixavam espaço para a banana.
Filho de um clínico médico carioca e que viveu durante dez anos na China, o dr. Reinaldo Larroyed, transferido do Rio para Brasília, onde conheceu a paraense Karina Monarcha, promotora pública, Ricardo Monarcha Larroyed se tornou apreciador da Amazônia Azul e dos rios da Hileia, e, naturalmente, de peixes e frutos do mar. Costumava ir a Belém duas vezes por ano, repetindo o que faziam seus pais. Ia em julho, auge do verão amazônico, quando as praias fluviais do subcontinente surgem em toda a sua exuberância, e durante o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em outubro. Também a família ia sempre que podia ao Rio e a Cabo Frio, e Ricardo repetia esse périplo, ano após ano. Outros lugares que lhe interessavam, e aonde ia de vez em quando, eram Hong Kong, Pequim, Tóquio, a Europa de um modo geral, o Caribe e os Estados Unidos, especialmente Nova Orleans e Miami. Em outras palavras, o planeta inteiro lhe despertava apetite. Era daquele tipo que curte tudo, e que pode trabalhar o dia inteiro, dia após dia, sem sentir-se cansado, e Greta não lhe dava descanso. Sabia, contudo, de onde vinha aquela energia. Seu pai fora uma espécie de missionário, pois fez da sua carreira médica uma missão; nunca deixava de atender um paciente, mesmo sabendo que ele não poderia pagá-lo, e fazia trabalho voluntário num centro de triagem no Rio, por onde passava todo tipo de derrotados: moradores de rua, vagabundos, alcoólatras, drogados de todas as espécies, suicidas, assassinos se escondendo, loucos varridos. Atendia cada um, não importando seu fedor, com a mesma atenção, e tinha sempre, na manga, uma palavra de conforto, um elogio, capaz de extrair luz do meio da podridão. Podia atender, ao longo do dia que reservava na semana para trabalhar ali, 10, 40, 70 pessoas, 100, se fosse preciso, e no fim mostrava a mesma energia inicial, o que deixava seus colegas intrigados e ciumentos. Quanto à dra. Karina Monarcha, quando investigava e fazia acusação a um bandido, dormia muito pouco, mas jamais Ricardo vira-a cochilando. Pensando bem, ele não se lembrava de ter contraído sequer um resfriado. Dava-se conta agora disso. Os únicos problemas de que se lembrava foram o joelho, na sua tentativa frustrada de escalar o Pico da Neblina (“Poderia ter escolhido o Pão de Açúcar, mas, não, fui logo ao Pico da Neblina!”), e herpes simples, “provavelmente contraída durante o encontro fortuito com uma loira escultural, e casada, num restaurante chique do Lago Sul, e que me inoculou uma carga de vírus capaz de atravessar a parede de aço e nióbio dos meus meridianos neuronais” – como dizia para si mesmo. Havia também a cicatriz na barriga, embora não fosse proveniente de doença. E depois, a autoacupuntura, a alimentação baseada em princípios da medicina tradicional chinesa, e a meditação, produziram-lhe um efeito paradoxal: ao mesmo tempo em que se sentia rijo como liga de aço e nióbio, experimentava a flexibilidade de um galho de goiabeira. Só perdia o humor quando se deparava com casos de discriminação, étnica, social, geográfica, de peso corporal, de gênero, de escolha sexual, financeira, qualquer tipo de discriminação. Para ele, discriminação era o ponto mais baixa da imbecilidade humana. Também sentia horror a ladrões. Mas o que o fez decidir-se a ser policial especializado em homicídios foi um caso que ainda o visitava em pesadelos, embora cada vez mais esparsos.
            Na época, era um fedelho, mas por ser alto, bem apessoado e intelectualmente brilhante, atraía as mulheres, e foi assim que se tornou confidente de uma professora que tivera no Elefante Branco. Ela apresentava olheiras e tristeza. Ele podia sentir isso. Até que um dia, depois da aula, foram para um motel no Núcleo Bandeirante.
            – Nunca tinha sentido o que senti hoje – ela disse. – Na noite de núpcias, quando meu marido pressentiu que eu ia... gozar, ele saiu de cima de mim e me olhou pela primeira vez com aquele olhar assassino e me bateu, bateu na boca, e depois me deu outros tapas até eu suplicar que não me batesse mais, e depois fez todas as coisas, torpes, que ele vem fazendo desde então. A minha lua de mel foi assim, uma lua de fel. Ele me bate quase todos os dias, e faz coisas repugnantes comigo. Quando o meu pai era vivo, não tinha coragem de contar para ele, porque era ele que batia em mim, antes de eu casar, e minha mãe fazia tudo o que meu pai mandasse ela fazer. A sorte é que, quando nos casamos, eu já era professora, embora o meu salário seja todo entregue a ele, apesar de que ele é um empresário cheio da grana. Já pensei em matá-lo! Mas como? – Ela o abraçou. Era uma mulher ainda bonita, apesar das marcas roxas pelo corpo todo, especialmente as de quem abandona a si mesma.
            Aquilo durou todo um trimestre, até o dia em que ela garantiu que seu marido viajara e que eles podiam ir à casa dela, no Lago Sul, naquele domingo, pois não haveria nenhum empregado. No domingo, Ricardo estava lá. Assim que ele chegou, no fim da manhã, foram imediatamente para a alcova. O rapaz já ia mergulhar no acme quando recebeu a cacetada na nuca. Acordou solidamente amarrado numa cadeira e com uma fita na boca.
            – Primeiro vou matar essa vagabunda e depois extirpar teus bagos – disse o sujeito à sua frente, empunhando uma faca de caça.
            Ricardo olhou para a cama e a viu. Estava fortemente amarrada e com uma fita na boca, os olhos arregalados, aterrorizados. Olhou novamente para o sujeito. Era um cara bombado, parecia mais jovem do que a esposa, e bem vestido.
            – Planejei tudo, sujeitinho escroto; ela pensou que eu tinha viajado mesmo. Nunca viajo. Segui vocês dois até me certificar que essa vagabunda dá até para cachorro – e aplicou a primeira facada na mulher, na vagina.
            Ricardo ergueu a cadeira e se arremessou contra o tipo, conseguindo atingi-lo com a cabeça no queixo; quando a cadeira caiu quebrou uma perna, afrouxando as amarras. Entupido de adrenalina, o rapaz livrou-se das amarras frouxas e da fita num urro leonino de agonia e partiu para cima do sujeito, que havia perdido a faca. Mas o cara sabia bater e o atingiu na boca do estômago. Ricardo dobrou-se em dois e quando recobrava-se levou um coice na boca. Sem dúvida, aquele empresário não sabia só ganhar dinheiro e bater na esposa; batia, e muito bem, nos fedelhos que ela levava para a cama. Um soco na nuca quase o pôs a nocaute pela segunda vez naquela manhã, mas a dor aguda que sentiu no ventre o acordou de vez. Pôs a mão em cima do ferimento onde fora esfaqueado e olhou para a cama. O corno estava degolando a mulher. Dessa vez o urro saiu-lhe da alma; voou para cima do sujeito e só parou de socá-lo quando ele desfaleceu. Na cama, a cena dantesca: a cabeça praticamente separada do corpo.
            O caso foi parar na Delegacia da Mulher e depois no Júri Popular, onde o assassino pegou pena máxima, mas não cumpriu sequer metade disso, pois encontrou na cadeia um sujeito ainda mais violento do que ele, e que não suportava o convívio com quem bate em mulher; se a mata, então, é porque já portava passagem só de ida para o inferno. Durante os processos policial e judicial, Ricardo tomou contato com o mundo dos assassinos, inclusive comprou um livro sobre a mente dos psicopatas e soube, então, que estava destinado a identificar e afastar do convívio da sociedade todos aqueles que atentam contra a obra de Deus e que atravessassem seu caminho.
            Do restaurante, foi fazer uma pesquisa nos arquivos da Polícia Civil e dar alguns telefonemas. Às 17 horas chegou à agência de modelos, que ocupava várias salas naquele misto de shopping, centro empresarial e hotel no Setor Hoteleiro Sul, o Grande Hotel, ponto de encontro de mariposas esculturais. Foi introduzido numa sala de espera onde havia pelo menos meia dúzia de garotas, todas lindas, conversando. Uma senhora de avental perguntou se ele aceitaria água e café. Sim. A água estava fresquinha e o café era um ótimo blend. Não demorou quase nada para que Ricardo Larroyed fosse chamado. Quando entrou na sala da senhora Maíra da Matta não havia ninguém. Sentou-se num sofá, de onde dava para ver a Torre de TV. Não demorou muito a diretora surgiu de uma entrada atrás da ampla escrivaninha. Ricardo se levantou para cumprimentá-la. A mulher lembrava uma ave de rapina e sua voz era aguda, quase uma sequência de piados.
             – Conforme eu disse à senhora ao telefone, a morte misteriosa de três modelos, e todas elas desta agência, nos levou a desconfiar que pode haver um assassino comum – disse o policial.
            – E o senhor acha que o assassino trabalha aqui, na agência! – ela exclamou.
            – Quando a senhora soube da morte das três modelos não achou estranho que três se foram só neste ano, e todas assassinadas? – Ricardo perguntou-lhe.
– Sim, achei. Li tudo sobre a investigação de cada caso, além de conversar longamente com familiares delas. A Patrícia Montenegro se envolveu com o professor de dança da nossa academia, o professor Sebastião Estrela, o que levou, inclusive, o noivo de Patrícia Montenegro a terminar com ela. Sei disso porque a mãe dela, que me ligava toda semana, estava preocupada e me falou sobre tudo isso, pormenorizadamente, em longo telefonema. O namorado dela era muito ciumento, e foi por uma besteira que ele pôs fim ao noivado; isso deixou a Patrícia deprimida. Parece que ela o amava e sofria por tê-lo perdido por causa do professor Sebastião Estrela, com quem havia apenas flertado, como de resto nos dois outros casos.
– O professor se envolveu também com as outras duas modelos mortas? – o policial perguntou.
– Como eu disse, foram apenas flertes. O delegado que investigou todos os casos esquadrinhou a vida do professor, a ponto de Sebastião Estrela ter ficado com esgotamento nervoso. Mas não encontrou nada que pudesse comprometê-lo. Em todos os casos ele tinha álibi, que inclusive eu mesma chequei. Pessoalmente, estou certa de que o flerte entre o professor e minhas três meninas, e a morte delas, foi coincidência, uma infeliz coincidência. Mas voltando à Patrícia Montenegro, o quadro psicológico dela se agravou com o anúncio do casamento do ex-noivo, logo depois do rompimento deles. Parecia até que ele só estava esperando um motivo para terminar com ela. Isso a deixou agressiva, nervosa, quando, normalmente, era um doce de pessoa. Sabe, delegado, tenho o dom de atrair pessoas com necessidade de desabafar, e também de as ouvir e lhes dar conselhos. O que já ouvi das minhas meninas o senhor nem imagina; seria material farto para Honoré de Balzac. Porém o mais intrigante é que as três tinham mioma, e eram tratadas com acupuntura – a mulher lembrava um falcão, e seus olhos pareciam ocupar toda a sala.
O policial quase cai da cadeira, uma cadeira sólida, construída por marceneiro; ajeitou-se.
            – As três eram tratadas com acupuntura?         Então o assassino poderá ser acupunturista? – balbuciou.
            – Cabe ao senhor comprovar isso. Quanto a mim, vou lhe dar todo o apoio possível para que encontre esse psicopata. Uma das meninas, Gabriela Costa Médici, a última que foi morta, era filha de uma amiga minha, do Rio Grande do Sul, a quem eu devo muito; uma pessoa altruísta. Nunca a vi fazendo mal a alguém; minha amiga está sofrendo muito! Muito! Mas que não seja por isso; eram moças muito jovens, que estavam começando a vida, cheias de sonhos, e também de ilusões, como é comum nessa idade, sobretudo na profissão que elas haviam abraçado.
            – Naturalmente a senhora investigou para ver se há alguém, aqui na agência, que seja versado em acupuntura?
– Sim! Não há nenhum acupunturista aqui.
– Precisamos descobrir por quem as três eram tratadas.
            – A Patrícia Montenegro tratava-se em Belém, mas as duas daqui, eu sei onde foram tratadas – disse a mulher.
            – Onde? – Ricardo perguntou, ansioso.
– No Instituto Holístico.
Pela segunda vez Ricardo Larroyed quase cai da cadeira. Olhou para o relógio. Às 19 horas teria uma reunião de professores no Instituto Holístico.
– Gostaria de conversar com o professor Sebastião Estrela – disse à senhora Maíra da Matta.
– Pode ser amanhã à tarde, por volta das 16 horas? – os cabelos tingidos de negro, a blusa também negra e a saia branca da diretora a deixavam ainda mais parecida a um falcão-peregrino. – O senhor poderá conversar com ele aqui mesmo, na minha sala.
– Combinado! – ele disse, levantando-se.
Pouco depois encontrou vaga na 203 Sul, distante uns 500 metros da Fundação Holística, um prédio de dois andares e subsolo no Bloco A. Eram ainda 18 horas, o que lhe dava uma hora para dar uma olhada nos arquivos do ambulatório. A secretária-executiva da escola, dona Maria das Dores Craveiro, estava na portaria. Seu nome caía-lhe como uma luva. Era uma mulher empertigada e encarangada; sentia dores nas mãos, como se fossem transpassadas por cravos. Fora tratada por todos os professores, mas só encontrava alívio nas mãos do professor Bartolomeu Amado, o Bafo de Onça.
A Fundação Holística fora criada pelo professor Marcelo Quintela, um boa-vida de família endinheirada. Tinha 21 anos quando começou a perder massa muscular na coxa esquerda, após um acidente automobilístico. Nenhum tratamento estava dando certo quando foi encaminhado para um velho médico chinês, em São Paulo. Logo na primeira sessão o chinês deu uma espécie de beliscão na coxa do paciente e a perna deu um salto. Em dez sessões a perda de massa muscular cessou. Isso deixou o jovem empresário do ramo automobilístico tão empolgado que ele resolveu fazer o curso de medicina tradicional chinesa, com especialização na China. Ao assistir a uma conferência de Giovanni Maciocia em Londres, decidiu criar uma escola em Brasília. Ricardo Larroyed, que o conhecia desde o Elefante Branco, lembrou-se do dia em que foi convidado para lecionar na Fundação Holística. Naquele dia, foram almoçar num daqueles restaurantes da 404 Sul. Marcelo Quintela ainda não se convencera de que Ricardo Larroyed aceitara lecionar no Instituto Holístico, e puxava assunto; então, começou a contar uma história.
– Certo dia dos anos de 1960, o jornalista e escritor Joy Hyams almoçava com Bruce Lee num restaurante chinês no centro de Los Angeles. Não era sempre que Hyams tinha esse privilégio, de modo que aproveitou a oportunidade para queixar-se a Bruce, confessando-lhe que andava desanimado, sentindo-se velho, embora só tivesse 45 anos. Achava-se rígido demais para o Jeet Kune Do, a arte marcial criada por Bruce.
– Você jamais aprenderá nada de novo se não estiver disposto a aceitar-se com suas limitações – disse-lhe Bruce. – Você precisa aceitar o fato de que é capaz em algumas coisas e limitado em outras, e que precisa desenvolver suas aptidões.
Hyams retrucou que aos 35 anos podia facilmente aplicar um golpe de pé acima de sua cabeça. Bruce fez uma pausa na mastigação e olhou para Hyams.
– Isso foi há dez anos – disse Bruce. – Agora você está mais velho e seu corpo mudou. Todos têm limitações físicas a vencer.
Hyams continuou argumentando, comparando-se a Bruce.
– Isso é fácil para você dizer. Se alguma vez alguém nasceu com habilidade natural para as artes marciais, esse alguém é você – insistiu.
– Vou lhe contar algo que pouca gente sabe: tornei-me um praticante de arte marcial apesar das minhas limitações – confidenciou-lhe Bruce, com um sorriso. – Por certo você não se deu conta, mas minha perna direita é quase 2,5 centímetros mais curta que a esquerda. Isso determinou minha melhor postura: o comando do pé esquerdo. Percebi, então, que, devido à perna direita ser menor, eu levava vantagem em certos golpes de pé, pois a pisada desigual deva-me um impulso maior. Além disso, uso lentes de contato. Desde criança sou míope, o que significa que, quando estava sem óculos, tinha dificuldade em ver meu adversário à distância. No início, voltei-me para o estudo de wing chun, que é uma técnica ideal para a luta corpo-a-corpo. Aceitei minhas limitações como elas eram e tirei proveito delas. É isso que você precisa aprender. Você diz que é incapaz de dar golpes de pé acima da cabeça antes de longo aquecimento, mas o problema efetivo é: importa realmente dar golpes dessa altura? A verdade é que, até recentemente, os praticantes de artes marciais raramente davam golpes de pé acima dos joelhos. Esses golpes à altura da cabeça são em sua maioria para exibição. Por isso, aperfeiçoe seus golpes de pé no nível da cintura e eles se tornarão tão formidáveis que você nunca precisará de golpes mais altos. Em vez de tentar fazer tudo bem, faça com perfeição apenas as coisas que pode. Embora a maioria dos praticantes de artes marciais competentes tenha gasto anos dominando centenas de técnicas e movimentos, num ataque, ou kumite, um campeão não usa efetivamente mais do que quatro ou cinco técnicas, sempre. São essas técnicas que ele aperfeiçoou e das quais sabe que depende.
Hyams protestou.
– Mas permanece o fato de que o meu verdadeiro adversário é a idade – insistiu.
– Pare de se comparar, aos 45 anos, com o homem que você era aos 20 ou 30 – disse Bruce. – O passado é uma ilusão. Você precisa aprender a viver no presente, aceitando-se como você é agora. O que lhe falta em flexibilidade e agilidade cabe-lhe suprir com conhecimentos e exercício permanente.
– Depois dessa conversa, Hyams não perdeu mais tempo tentando golpear com os pés acima da cabeça; em vez disso, trabalhou golpes à altura da cintura, até agradarem ao próprio Bruce. Em fins de 1965, Bruce foi até a casa de Hyams, despedir-se, pois partiria para Hong Kong, onde pretendia se tornar um astro do cinema – disse Marcelo Quintela.
– Lembra-se da nossa conversa sobre limitações. Pois bem, estou limitado pelo meu tamanho e dificuldades no inglês, além de ser chinês e nunca ter havido um grande astro chinês nos filmes americanos. Gastei os últimos três anos estudando cinema e creio que chegou a hora para um bom filme de artes marciais, e eu sou o mais qualificado para estrelá-lo. Minhas aptidões superaram minhas limitações – disse Bruce.
– As aptidões de Bruce superaram efetivamente suas limitações, e, até sua morte prematura, ele foi um dos maiores astros do cinema. Sua carreira foi um exemplo perfeito do seu ensino: na medida em que descobrimos e desenvolvemos nossos pontos fortes, eles se impõem às nossas fraquezas – conclui Hyams, no seu livro O Zen nas Artes Marciais.
– Pois bem – disse Marcelo Quintela – quando fiz o curso de medicina chinesa em São Paulo, entre os meus extraordinários professores havia um, o professor Camarão, um japonês que era ouvido e procurado até pelos seus colegas de cátedra. Ele dominava um modo único de pegar as agulhas durante uma sessão, todas as dez de um pacotinho, colocando-as entre os dedos anelar e mindinho, e aplicando-as em questão de segundos. Tentei imitá-lo na minha primeira tentativa, tendo como paciente uma gata que eu estava comendo. Uma semana depois eu ainda encontrava agulhas no chão da sala do meu apê. Desisti de imitar o professor Camarão. Ele também introduz as agulhas numa batida seca, com a ponta do dedo médio, que apoia na unha do indicador, soltando-o como um martelo, bam!, e assim introduzindo a agulha, por meio do mandril, em milésimos de segundo. Isso eu tentei, gostei, e é o que faço – continuou Marcelo Quintela, que gostava muito de falar. – A medicina tradicional chinesa, que se baseia no Tao, o caminho, o equilíbrio entre yin e yang, conta com know-how em torno de 5 mil anos. Holística, trata o paciente como um todo, e considera a dimensão da matéria tão somente energia, como, aliás, confirmou o físico alemão Albert Einstein. Só as possibilidades com as agulhas já são ilimitadas, quando mais se considerarmos outros pilares da MTC, como alimentação correta, fitoterapia, tuiná, tai chi chuan, que é meditação em ação, e um mundo de conhecimentos terapêuticos da filosofia oriental, que é, também, religião. Assim, o acupunturista terá inesgotável manancial de possibilidades para tratar o paciente. E da mesma forma como pensava Bruce Lee, o acupunturista não deve perder tempo com algo que o Tao está a lhe dizer que não é importante; precisa somente concentrar-se naquilo em que mais sente fluir seu talento, mesmo que seja apenas sorrir – disse, entremeando o monólogo com grandes garfadas do saboroso bacalhau.
O prédio da Fundação Holística pertencia à família do professor Marcelo Quintela, e fora adaptado para a escola. Bem conservado e iluminado, o ambiente era silencioso e fresco. O arquivo ficava numa sala no térreo, pegada à secretaria. Maria das Dores Craveiro mostrou a Ricardo Larroyed o armário onde eram guardados todos os documentos do ambulatório. O policial remexeu o armário durante pelo menos meia hora. Às 19, Maria das Dores o avisou que Marcelo Quintela acabara de chegar. Ricardo guardou na sua pasta algumas cópias que fizera na impressora Xerox e se dirigiu para a sala dos professores. Estavam todos lá. Havia alguma coisa diferente em Emanoel Vorcaro. Os olhos dele brilhavam.

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