Eram quatro horas da madrugada quando o iate Nossa Senhora de Nazaré, do Observador Amazônico, atracou no Ver-O-Peso. A maré atingira aquele momento de equilíbrio entre a enchente e a vazante. O atracadouro estava inchado como um tumor. Frutos, peixes mortos e toda sorte de lixo flutuavam na pelica do tumor. Isaías Oliveira permanecera a bordo até as cinco, fumando seus Hilton e observando o movimento no calçadão que circunda o cais, onde, em toda sua extensão, descarregava-se peixe, que carregadores levavam em gamelas na cabeça para o Mercado. O jornalista tinha cerca de um metro e sessenta e três e pesava setenta quilos em um físico que fora atlético até os quarenta anos. A barriga começava a transbordar por sobre o cinturão e apresentava calvície bastante acentuada. Seus olhos eram muito bonitos, castanhos, grandes e calmos. Os lábios eram belos também, como os de Marlon Brando aos vinte e um anos. Seu nariz adunco e o queixo quadrado transmitiam perseverança. Às cinco, resolveu desembarcar. Pegou a valise e, pulando de barco em barco, alcançou o calçadão, dirigindo-se ao Mercado de Peixe.
Dispostas no balcão de mármore, as piramutabas refletiam a luz das lâmpadas amarelas nos dorsos cinzentos e roliços. Capturadas ao largo da ilha de Mosqueiro, no dia anterior, haviam acabado de chegar ao mercado. As melhores são as de mais de um metro de comprimento. As menores, de quarenta centímetros, têm pitiú. O peixeiro apanhara uma de mais ou menos um metro e ia limpá-la. A barriga da piramutaba, eviscerada, formava dois lábios grossos de carne branca e gordura, tal qual a do delegado Capivara na pedra do necrotério. Isaías Oliveira detinha-se a observar as piramutabas tentando estabelecer diferenças entre elas, douradas e filhotes. Piramutabas frescas são sempre saborosas - fritas na manteiga, cozidas ou moqueadas. Douradas sabiam-lhe melhor em postas com vinagrete e farofa. Filhotes lembravam-no imediatamente o Remada, do seu amigo Zeca do Marajó, onde degustava o melhor caldo de filhote do mundo. O processo de preparo constitui-se no seguinte: Zeca do Marajó raspava o pitiú da pele do filhote com uma escovinha de cerdas duras. Depois de limpá-lo e cortá-lo em grossas fatias, dava-lhe um banho de limão, espargindo-lhe, a seguir, vinagre, pimenta-do-reino e alho. Dali, era pôr os pedaços na água quase fervendo, com sal e cheiro-verde. Gostava também de ver os meros de quatrocentos quilos, mas sempre sentia pena dos pirarucus, com suas escamas avermelhadas sobre o balcão de mármore, a cauda quase a tocar o chão. Os curimatãs e os tucunarés davam-lhe água na boca. Os tamuatás não eram bons de se ver, mas apenas de ser comidos ao tucupi e pirão de farinha-d’água.
À medida que a manhã avançava, sempre calorenta, a feira contígua ao Mercado de Peixe ia saindo do torpor da madrugada, no ar prenhe do aroma de café naquele momento em que está sendo coado. A negra da banca serviu meio copo de fumegante café e, como uma prestidigitadora, preparou, com grande habilidade, uma tapioquinha escorrendo manteiga. Passava das sete quando o passeio ciclístico promovido pela Prefeitura Municipal de Belém apontou no Boulevard Castilhos França. Milhares de ciclistas moviam-se lentamente. Ao atingirem a Avenida Portugal, alguém atirou um caranguejo morto no meio deles. O caranguejo estalou nas costas de um ciclista. Atiraram outros caranguejos, que se quebravam sob as rodas das bicicletas.
- Vai jogar na boceta da tua mãe, filha da puta!
O céu escureceu de tantos caranguejos mortos, enlameados e podres voando para cima dos ciclistas. Isaías Oliveira atravessou a rua coalhada de caranguejos esmigalhados. Para sentir-se saciado de manhã precisava comer pão com café e leite. Tomou a Rua Conselheiro João Alfredo até a Rua Santo Antônio com a Travessa Primeiro de Março e entrou na Excelência. A caixa da padaria era uma negra retinta, que lembrava um totem cheio de braços dentro da cabine. Pediu meio pão com manteiga e um café-com-leite, grande.
- Sai daí! Égua! – disse a negra.
Isaías pensou que era com ele; depois percebeu que a caixa dirigia-se a três índias.
- Vai tomar no cu! – disse a do meio.
- Vai te foder – seguiu-lhe a mais jovem, de uns treze anos. A mais velha permaneceu calada.
- Esses diabos vêm cedo pra cá encher o saco – a caixa reclamou.
- Teu cu – esgrimiu a do meio.
- Vou mandar jogar água em vocês, querem ver? – a caixa ameaçou.
- Preta escrota! Só mando o Cara de Catarro pra ti – vituperou a velha, ao mesmo tempo em que estendeu a mão para Isaías Oliveira. A caixa havia apanhado um naco de pão, com um de seus inúmeros braços, e o levou à boca enquanto passava o troco a Isaías Oliveira, que o deu à velha.
- Égua! Sai pra lá, tracajá! - ouviu a preta dizer.
Tracajá. Vira um barco com esse nome no Ver-O-Peso.
Da Excelência, Isaías Oliveira foi para o jornal. O Observador Amazônico ficava num prédio de linhas neoclássicas, de três andares, na Rua Gaspar Viana com a Travessa Primeiro de Março, dando de fundos para o Boulevard Castilhos França. Naquela hora, na redação, não havia ninguém. A redação do Observador era um dos locais onde Isaías Oliveira gostava de ir. A temperatura estava sempre em torno dos vinte e cinco graus. Podia-se dizer que, ali, o antiquado encontrava-se com o moderno, pois, ao mesmo tempo em que o jornal utilizava as mais avançadas tecnologias, conservavam-se móveis antigos, testemunhas do fausto da borracha, origem da riqueza das famílias Rocha e Bastos. O jornal vendia cinqüenta mil exemplares diariamente - quarenta e cinco mil em Belém, devido aos classificados. O caderno de cidades era responsável pela venda de quatro mil exemplares no interior do Pará e em Macapá. O caderno Enfoque Amazônico vendia os restantes mil exemplares nas capitais do país. Os destaques daquele dia eram sobre o tráfico de peças marajoaras e a fuga de Cara de Catarro para o Marajó. Isaías Oliveira enviara as matérias ainda do Marajó, via internet, de bordo do Nossa Senhora de Nazaré. Um novo sítio arqueológico fora descoberto no rio Anajás Grande, num ponto fronteiriço entre os municípios de Anajás, Ponta de Pedras e Muaná. O sítio vinha sendo pilhado e as peças de cerâmica eram enviadas para a Europa por uma tal de Bethania Wanzeller.
Estava fumando com Dashiell Rocha, o editor do caderno Enfoque Amazônico, quando Pena Branca chegou. Pena Branca era o apelido do diretor de redação, Otávio Botelho. A mecha branca que dera origem ao apelido sumira na cabeleira prateada.
- Vai pra casa, boa vida! - disse Pena Branca, metendo o nariz pela porta entreaberta. - Alguma mentira nova? Só fica aí bocejando... Cuidado com o Cara de Catarro - disse para Isaías Oliveira.
O telefone tocou.
- Porra, o Cara de Catarro foi visto desembarcando num iate de nome Tracajá, hoje de madrugada no Ver-O-Peso - disse Rocha.
Isaías Oliveira telefonou ao celular para sua filha, Ana Carolina, pegou a Veraneio Chevrollet verde-escuro no estacionamento do jornal e foi para casa. Gostava muito de tudo o que possuía: Ana Carolina, seu pai, Todo Feio, o casarão onde morava e o trabalho no jornal. Ana Carolina tinha catorze anos. Chamava-o de Velhinho. Era magra, delicada, tinha os olhos e a boca do pai, e cabelos dourados, que se moviam em ondas até a cintura. O casarão fora construído numa antiga rua de Batista Campos. Além de Isaías Oliveira e Ana Carolina moravam ainda na casa uma velha senhora maranhense, dona Iracema, que fora babá de Ana Carolina mãe, e Jacaré, que cuidava dos serviços gerais. Isaías Oliveira não ganhava muito no jornal. Seu pai, Todo Feio, proprietário de uma empresa em Mosqueiro, a Companhia de Pesca Maré Alta, funcionava como banqueiro do filho.
O quarto de Isaías Oliveira era amplo, arejado e silencioso. Tirou a roupa, foi ao banheiro e escovou os dentes. Depois deitou-se. Dormiu imediatamente. Dormiu toda a tarde. Despertou com Ana Carolina debruçada sobre ele, a beijá-lo, os cabelos roçando-lhe o rosto.
- Oh! oncinha - disse Isaías Oliveira. - Estava sonhando precisamente com uma onça da família dos felídeos, por isso sou muito grato pela tua intervenção. Escapei de ser comido por ela. Já sentia seu hálito respingando no meu pescoço. - Espreguiçou-se. Ana Carolina riu. Isaías Oliveira agarrou-a e ambos ficaram rolando na cama, morrendo de rir. Flocos invisíveis de escuridão acamavam-se como neve. Ainda podia-se ver nesgas douradas no firmamento, logo tingidas pela tinta azul-escuro que ia tomando conta de tudo, e as estrelas povoaram o céu, sempre piscando e piscando.
A casa era cercada por um muro de dois metros de altura. No quintal, havia uma pequena piscina e um pomar. No meio da varanda, no andar térreo, um grande jasmineiro agarrado a uma viga espalhava-se e subia até a varanda do andar de cima, exalando, nas noites tórridas, seu perfume embriagador. No primeiro andar, ficavam a cozinha, grande como um salão, e infinitos cômodos. Em cima, havia um labirinto de quartos e a biblioteca. A luz lateral entrava pela janela da biblioteca iluminando-a fracamente. Isaías Oliveira estava sentado, fumando, quando olhou instintivamente para a janela e julgou ter visto Cara de Catarro.
Cara de Catarro media um metro e noventa de altura. Era maciço como um búfalo; um búfalo graduado em filosofia na Universidade Federal do Pará, onde vira-o pela vez, pois cursaram juntos uma disciplina. Cara de Catarro era taciturno e brilhante nas respostas. Alto, forte e belo, atraía as mulheres, que eram, assim que se aproximavam dele, agredidas por um palavreado rico e sinistro. Depois Isaías Oliveira conheceu-o melhor.
Naquela manhã, em Serra Pelada , houve briga cedo. Cara de Catarro, que ainda não tinha esse apelido, mas era apenas Gilberto Moraes Rego, estava tomando café numa birosca quando chegou um arigó dos seus trinta anos com sua mulher, uma potra loura, de olhos verdes, um belo exemplar pernambucano de sangue holandês. As narinas de Cara de Catarro dilataram-se. Isaías Oliveira, que estava ali fazendo uma reportagem para o Observador, já havia tomado café e fumava a uma certa distância do balcão. Cara de Catarro aproximou-se da mulher e lambeu-lhe o rosto. O marido dela puxou fundo o muco do nariz e deu uma cusparada no rosto de Cara de Catarro. O catarro escorreu-lhe pela cara. Não teve quem não risse. A partir daí, Gilberto Moraes Rego passou a chamar-se Cara de Catarro. Ele limpou o rosto, com um lenço branco, de linho, que sacara do bolso lateral da calça, e foi embora.
Às dez horas partiria um teco-teco para Marabá. Isaías Oliveira iria nele. Já havia embarcado quando chegou Cara de Catarro carregando o arigó que lhe cuspira no rosto. O homem estava todo amarrado, amordaçado e com uma venda nos olhos.
- Ele vai tomar umas lições de asa delta - disse Cara de Catarro, encostando um trinta e oito duplo na cabeça do piloto. O piloto tentou dizer alguma coisa, mas Cara de Catarro engatilhou o revólver. O piloto ficou calado e deu início aos preparativos de vôo. - Nada mais convincente... - disse Cara de Catarro. Acomodara o arigó no banco traseiro, para onde Isaías Oliveira fora convidado a mudar-se. Cara de Catarro sentou-se ao lado do piloto.
- Tu, aí atrás, quietinho e bico fechado, a não ser que tu gostes também de voar como jabuti.
Isaías Oliveira ficou ainda mais quieto. Com meia hora de vôo, Cara de Catarro abriu a porta do teco-teco e puxou, com a mão direita, o arigó. Sentindo que alguma coisa diabólica ia lhe acontecer, o arigó agitou-se desesperada, mas inutilmente. A floresta parecia um manto verde-escuro, pintalgado de árvores floridas e cortado, aqui e ali, por pequenos rios. O homem caindo tornou-se um ponto mais escuro de encontro à floresta, até sumir no verde-escuro das copas das árvores.
- Volta para Serra Pelada - Cara de Catarro ordenou.
- Não tem combustível - disse o piloto, com medo de morrer ao chegar à Serra Pelada.
- Escolhe, sujeitinho escroto: voltar e viver, ou seguir para Marabá e morrer aos poucos com uma bala alojada nesse cu de cágado - Cara de Catarro propôs.
O piloto voltou.
- Gostei de ti, amigo - disse Cara de Catarro a Isaías Oliveira. - Espero-o hoje à noite para tomar um trago no Bazar das Putas. Vou levar comigo aquela louraça, ex-mulher do cavalheiro a quem acabei de dar uma aula definitiva de asa delta - falava e ria, numa gargalhada tonitroante. - Sempre acreditei no que chamo de inteligência emocional - dizia ele, quase gritando, devido ao som do motor do avião. - Já acreditava nisso antes mesmo dos teóricos americanos. Acredito que até este estúpido aqui - e bateu com o cano da arma na cabeça do piloto, a arma disparou e feriu o couro cabeludo do piloto, que começou a sangrar. O piloto pôs-se a chorar em silêncio. - O próximo será no teu clitóris - disse Cara de Catarro. - Como dizia, até essa bicha estúpida aqui pode ter alguma inteligência emocional. Resumindo: estarei atento; se vocês abrirem o bico eu os caçarei e podarei suas línguas. Talvez coma-as ao alho e azeite de oliveira, regado a champagne.
“O que isso tem a ver com inteligência emocional?” - Isaías Oliveira perguntava-se, certo de que estava em pleno pesadelo.
De volta à vila, Cara de Catarro lembrou Isaías Oliveira do encontro no Bazar das Putas, às vinte e duas em ponto, posto que era um homem rigoroso nos horários, e foi-se. O piloto abasteceu o avião e partiram imediatamente para Marabá, onde narraram tudo à polícia. O resultado é que não acharam o corpo do garimpeiro e Cara de Catarro ficou livre. Dias depois o aviador foi encontrado sem a língua, na sua casa, em Belém. Ao lado do cadáver havia um bilhete: “Todos podemos ser morais. Mas a moralidade custa um preço alto, meu caro Isaías Oliveira”. Naquele mesmo dia, o delegado Capivara prendeu Cara de Catarro numa blitz fluvial. Acharam duzentas peças de cerâmica marajoara no barco dele. Isaías Oliveira encontrou-se imediatamente com o delegado Capivara. O piloto conseguira meter a unha em Cara de Catarro. Um exame de DNA levou-o para a Penitenciária de Americano, com 29 anos nas costas.
Mas agora Cara de Catarro estava livre e o primeiro a morrer fora o delegado Capivara. O Bar Kalamazoo, na Rodovia do Coqueiro, estava imerso na penumbra do início da noite. Naquela hora, encontravam-se lá somente o barman - um negro comprido como uma sucuriju -, o cozinheiro e uma ajudante de cozinha. Era uma terça-feira e ninguém ia lá naquela hora. Mas a casa recebeu uma visita. Cara de Catarro foi direto ao balcão e pediu uma garrafa de Jonnie Walker doze anos. Tirou, de um estojo, um cigarro de maconha e pôs-se a fumar. O barman continuou fazendo alguma coisa no caixa. Assim, naquela penumbra, parecia um gorila, com sua basta cabeleira encarapinhada que quase lhe cobria a fina testa, lábios grossos e nariz largo. Os olhos, pequenos e vermelhos, prestavam atenção em tudo. Porém Búfalo , o apelido que recebera oriundo do brinquedo de sua infância no Marajó, sentiu um calafrio ao observar as manoplas de Cara de Catarro, maiores que as suas próprias. Búfalo percebia tudo. Nem tudo. Estava contando o dinheiro trocado que ficara no caixa quando sentiu a faca na sua axila esquerda. Cara de Catarro resolvera fazer a contabilidade. Empurrou a peixeira na axila de Búfalo, de modo a atingir o coração. Búfalo desabou e Cara de Catarro puxou a faca, limpou-a bem, na roupa do morto, e guardou-a numa maletinha meio comprida. Apanhou a garrafa de Jonnie Walker, serviu-se de uma generosa dose e bebeu-a de um trago. Neste instante entraram Gambisa e Peixe Ensaboado.
- Trouxeram o carro? - Cara de Catarro perguntou.
- Está aí fora, com o Cratera ao volante - disse Gambisa.
O cozinheiro foi ao bar para dizer alguma coisa a Búfalo. Ficou pálido quando viu o corpo dele no chão, próximo ao caixa. Correu para a cozinha, com Cara de Catarro atrás dele. Um casal entrou no bar e procurou uma mesa. Nem bem sentou-se e a ajudante do cozinheiro gritou. Seguiu-se um berro de dor insuportável. O casal ergueu-se e viu o revólver na mão de Gambisa. O bar foi fechado e o casal levado para a cozinha. A ajudante do cozinheiro chorava de dor, com a cara escaldada pelo caldo que Cara de Catarro lhe jogara. O primeiro a se servir da moça que acabara de entrar ali com seu namorado foi Cara de Catarro, que pegara-a pelo cabelo, abaxando-a até seu membro. Depois virou-a de costas. Peixe Ensaboado foi por trás do cozinheiro e aplicou-lhe uma pancada na nuca, com o cabo do revólver. Arrastou-o até um gancho de espetar carne e espetou o cozinheiro, não sem antes atingi-lo com uma facada na barriga. O cozinheiro ficou lá, espetado. De vez em quando esperneava molemente. Gambisa estava se servindo da ajudante do cozinheiro. Depois foi render Cratera. Cara de Catarro tentava gozar pela segunda vez. Sentara-se, com a moça engatada nele, num enorme banco ladeando uma grande mesa. Tinha apanhado um bife e comia-o com farinha. Quando acabou de comer o bife, puxou um cigarro de maconha e pôs-se a fumá-lo.
- Presta atenção na foda, tracajá - disse, dando um tapa na moça, que parara de se mexer.
Cratera estava enfileirando heroína para os quatro. Gostava de rapazes. O namorado da moça estava tão apavorado que se cagou. Cratera não gostou nada disso.
- Seu merda! Justo onde eu vou meter a rola tu sujas! Vem cá, te lavar, imundo.
O rapaz estava chorando e tremia. Cratera ajudou-o a tirar toda a roupa. Ele se lavou.
- Vem cá, querida, sentir o gosto deste rolão! - disse Cratera ao rapaz.
Uma hora depois saíram do bar e seguiram para a Delegacia de Polícia da Marambaia. O delegado Capivara estava lá, juntamente com o escrivão Galinha Enfeitada. Só eles dois. Cara de Catarro entrou na sala de Capivara atirando com a metralhadora, fazendo dos dois uma peneira. Depois achatou a cabeça de Capivara a coronhadas e abriu sua barriga como quem abre uma piramutaba das grandes.
- Abram as celas - ordenou.
Queria falar com um tal de Tamoatá. Assim que o tal se apresentou foi morto a coronhadas.
A casa do delegado Capivara ficava em Icoaraci e Cratera dirigia como um louco.
- Já ouvi falar no senhor - disse a mulher, enquanto abria o cadeado. Quando se lembrou direito do que sabia sobre Cara de Catarro era tarde demais. Foi esfaqueada e arrastada para o pé do muro.
A filha do delegado Capivara chamava-se também Ana Carolina e tinha a mesma idade da filha de Isaías Oliveira. Estava sozinha no seu quarto, trocando de roupa. Viu Cara de Catarro pelo espelho do guarda-roupa. Neste momento a polícia chegou, invadindo a casa. Cratera, Gambisa e Peixe Ensaboado foram fuzilados ali mesmo, mas Cara de Catarro tinha escapolido levando a menina. Pulou o muro dos fundos e correu, por uma ruela escura, sempre com Ana Carolina segura na sua manopla, até dar com o trapiche e a ubá.
- Vou te arrancar a boceta e fazer da tua bunda um fogão, e depois vou te amarrar em um lugar que é só onça, jabota - Cara de Catarro disse à menina. Ela gritou. Um sujeito apareceu armado com um revólver e disse para Cara de Catarro largar a menina. Surpreendido, afrouxou a manopla e Ana Carolina escapuliu, correu e se escondeu atrás de umas lonas. O sujeito que a salvara também desapareceu. Cara de Catarro ligou o motor da ubá, que estava pronta para isso - aparentemente pertencia ao homem que salvara Ana Carolina - e sumiu na noite.
Isaías Oliveira ouviu Diabo latir e depois ouviu um barulho no andar de baixo. Pegou a Glock e saíu da biblioteca. Olhou para a porta do quarto de Ana Carolina. O coração queria pular pela boca afora. Desceu as escadas devagar. Olhou para a sala na penumbra. Ouviu o zunido louco dos carapanãs. Moveu-se, junto à parede, em direção à cozinha. Diabo voltou a latir e Isaías Oliveira novamente ouviu um barulho. Uma gata deu um miado medonho. Isaías Oliveira abriu a porta dos fundos. Diabo balançou o rabo e olhou para o telhado da cozinha. Havia um casal de gatos lá. Isaías Oliveira havia tropeçado não sabia onde. Estava descalço e magoara o dedão do pé direito.
- Filha da puta! - desabafou. Entrou na cozinha, fechou a porta e foi à geladeira. Havia uma garrafa de Dom Perignon. A última de uma caixa que ganhara de presente de Dashiell Rocha. Abriu a garrafa e bebeu aos golinhos o champagne. Depois foi para a biblioteca novamente, não sem antes procurar saber de Ana Carolina. Sua filha estava segura, no quarto ao lado da biblioteca.
“Aquele monstro deveria chamar-se tubarão, pois vive num mundo tão silencioso e escuro como o fundo do mar” - pensou. De repente, pensou em Ana Carolina. Se Cara de Catarro o atingisse através de Ana Carolina, então vingar-se-ia a cada segundo de Isaías Oliveira, pois que amava sua filha em cada fibra do coração, em cada neurônio, em cada partícula de luz da alma. Teria de impedir, a qualquer custo, que Cara de Catarro a levasse para o fundo do mar. Mas isso só seria possível se saísse da condição de caça para a de caçador, e atacasse, procurando atingir Cara de Catarro num ponto fraco, ou melhor, teria de matá-lo. A possibilidade de Cara de Catarro surgir do nada para abocanhar Ana Carolina era uma informação que surgiu na memória de Isaías Oliveira clara como a lucidez. Cara de Catarro era desses assassinos que não têm por objetivo apenas matar, mas exigem que haja sofrimento; quanto mais sofrimento, melhor. Isaías Oliveira investigara a vida de Cara de Catarro e a descoberta mais reveladora fora o ódio cultivado entre seus pais, o velho, rico e gigantesco Rego e sua ainda jovem e ninfomaníaca esposa Karime Moraes. Ele matou-a empalada e matou-se também. Quando era criança, Cara de Catarro fora muitas vezes amarrado e açoitado com fio elétrico até desmaiar. Ao concluir o curso de filosofia, o velho deserdara-o como prêmio, pois o queria advogado. Quando a tragédia aconteceu, Cara de Catarro estava presente para enterrar os pais. Houve testemunhas de que ele chorou sobre os caixões, mas ouviram-no também lamentando ter chegado tarde para empalar ambos, o touro chifrudo e a cadela ninfomaníaca. Disseram a Isaías Oliveira que Cara de Catarro pedira para ficar sozinho com os cadáveres e que desfigurara o rosto dos dois a facadas, e que depois não permitira mais que se abrissem os caixões. Tudo isso Isaías Oliveira ouviu de Elza Ladrona, de quem Cara de Catarro freqüentava a casa desde a época de estudante.
Imerso em pensamentos, Isaías Oliveira varou a noite vagando pela casa. Os carapanãs zumbiam como diabos loucos no mormaço da madrugada, e atacavam em nuvens negras e fervilhantes, tentando entrar nos ouvidos, na boca, no nariz, nos olhos, na pele. Fora isso, a noite era quieta. Ouvia-se aquele som intermitente, que nunca deixamos de ouvir, o zumbido do nosso próprio organismo funcionando, do sangue circulando nos tímpanos. Além do grito de insetos, podia-se ouvir também o mar, como quando botamos nossa mão em concha no ouvido, embora o mar estivesse distante. O céu começou a clarear, com largas manchas vermelhas e amarelas espalhando-se a leste. Às seis horas, a claridade impôs-se na quente manhã daquele domingo de verão.
***
A excrescência lembrou-lhe um piolho sob uma lente de aumento. Camundongo examinava seu rosto no espelho do banheiro, na luz amarela de uma lâmpada de duzentas velas. Poderia ser um tumor, uma espinha, um cravo inflamado, um fungo, uma imundície qualquer na pele. Naquele rosto engelhado como maracujá de gaveta poderia ser qualquer coisa, até mesmo uma sinistra ruga de células cancerosas. Seu rosto no espelho, iluminado à luz de duzentas velas, era um neo-realismo deprimente. Uma ruína viva, arquejando em silêncio, suplicando para morrer e finalmente transformar-se em adubo e desaparecer para sempre no nada. Tornara-se aquele degenerado olhando-o do espelho. A carne crescida, inflamada pela vigília literária, estava como uma posta de sangue. Mesmo assim Camundongo enxergava bem. A visão, inclusive a interior, fora um dom que Deus lhe dera. Podia ler em corpo oito, sem óculos, e podia ver, também, numa clarividência, quando alguém estava caminhando sobre o fio da navalha. As maçãs do rosto eram secas como tetas muito chupadas e apalpadas por muitos homens, com força, e por muito tempo. Os lábios assemelhavam-se a um fio pálido e encarquilhado. Orelhas de abano, com os lóbulos enormes como colhões velhos, davam-lhe um aspecto de morcego. O nariz de anta, o queixo atrofiado e o rosto miúdo é que lembravam um camundongo, desenhado por um desses pintores neo-realistas, em escala ampliada. Tinha olhos tristes, que não mentiam, que provocavam calafrios nas suas confissões. O único fator que o tornava tolerável era a bondade que emanava do seu ser. Sem isso, ninguém poderia olhar para sua cara e suportá-lo. Enquanto observava a pele do rosto - como um proctologista examina o ânus em busca do indício de hemorróidas -, Camundongo namorava com a morte. Escolhera a cidade mais estrangeira para viver. Ou morrer?
As cigarras gritavam no ar seco da superquadra. Sombras acamavam-se, lentas, sobre o bosquinho que ladeava o prédio, quando Camundongo deixou o apartamento e dirigiu-se para seu velho Alfa Romeo marron. Tomou a L-2 Sul rumo ao Conjunto Nacional. Gostava de ver os luminosos gigantescos da fachada do shopping, e também de tomar o expresso do Café Doce Café. Compreendia como ninguém aquela cidade. “Em Brasília, não há lugar para fracassados; só há lugar para vencedores. Os perdedores caem fora” - dissera-lhe Cacique, chefe da sucursal do Observador Amazônico. Agora, oito anos depois, sabia que o comentário de Cacique era um equívoco. Um equívoco, ou apenas a realidade vista da ótica de Cacique. Fosse lá como fosse, Brasília estava cheia de perdedores, gente que fracassara nas suas cidades de origem e que correra para Brasília. Os goianos já estavam lá. A primeira leva que chegou ao Cerrado foi de nordestinos. A segunda leva foi de cariocas, com seu sotaque gracioso. Os mineiros chegaram depois, e tomaram conta da cidade. Cercaram-na de montanhas, como o é o próprio estado de Minas Gerais, e desde então desenvolveram sua política de cochichos. Além disso, os mineiros se conhecem por um sinal invisível na testa, de modo que quando vieram os paulistanos, os gaúchos e os amazônidas formaram todos uma república babélica sob o domínio mineiro. Os primeiros ciclopes a chegar auto-intitularam-se pioneiros, espetaram uma estrela de xerife no peito e impuseram-se a missão de defender o Patrimônio Cultural da Humanidade.
Naquele dia de 1989, recém-chegado de Belém do Pará, quando Cacique lhe dissera que Brasília era uma cidadela de vencedores, Camundongo assumiu a cobertura do Congresso Nacional. Estava com cinqüenta e um anos de idade e já tinha entrado naquele processo de envelhecimento resultado de quatro décadas de álcool e cigarro. Era mais um apátrida fracassado que engrossava a poeira vermelha que se erguia alto no céu do Distrito Federal. Chamava-se Joaquim Silva Gomes. Desde criança ganhara o apelido de Comundongo. Achava melhor do que rato. Seu pai era um português, já morto, que se casara com uma cafuza a quem escravizara. Camundongo nascera desse casamento infame, mas tivera uma infância dourada em Mosqueiro, ilha paradisíaca, de águas salobras, em Belém do Pará. A boa vida terminara com uma sucessão de estocadas do azar. Apaixonou-se mortalmente por uma sobrinha, Mena, que se casou com um funcionário da empresa de pesca do pai de Camundongo e tinha atualmente cinqüenta anos de idade, pelancas e incontáveis filhos, mas que ainda era o grande amor da sua vida e, por essa razão, deixara sua alma aleijada. Teve de se mudar para Belém, para prosseguir nos estudos, e conheceu uma turma de literatos que lhe inocularam o veneno do ato de ler, para sempre. Foi quando seu pai perdeu tudo e se matou nadando baía afora. Tinha, então, graduado-se em letras, levado pelo maravilhoso talento de leitor nato. Isso, mais o poder de enxergar a alma dos atores sociais com olhos de navalha, levou-o ao jornalismo. Conheceu Sílvia, com quem se casou e teve uma filha retardada, a quem chamava de Luz da Minha Vida, “a dor que faço questão de sofrer”. Numa tarde infernal de 1989, Camundongo cochilou no volante na Belém-Mosqueiro e matou sua mulher e a luz da sua vida, seccionando sem anestesia seu único prazer de viver. Cacique, velho amigo da família, o socorreu na sua dor sem remédio e que oito anos depois continuava latejando e doendo sem parar.
Assim é que Brasília ajustava-se-lhe como uma luva. Uma cidade sem alma para um homem morto. Brasília era sua sepultura, com suas ruas sem nome e sem esquina, seus cerrados solitários, seu modernismo equivocado e seus pioneiros ciosos de garantir o apodrecimento do Patrimônio Cultural da Humanidade. O remorso assassino que ocupava sua memória desde que matara, num cochilo irresponsável, a própria luz da sua vida, era de certo modo atenuado pela cidade, que produzia o efeito, sobre ele, de um local asséptico, com ladrilhos brancos, cheirando a desinfetante. Mas por trás disso escorria o miasma da podridão.
Havia um restaurante anexo ao prédio onde ficava a sucursal, no Setor de Indústrias Gráficas, dirigido por um paraense conhecido por Seu Primo. Quando Camundongo entrou, Seu Primo foi cumprimentá-lo e acendeu-lhe o Malboro. Depois, compreendendo que Camundongo queria ficar a sós com Brito, o outro repórter da sucursal, retirou-se para detrás do balcão.
- E então? - Camundongo perguntou.
- Descobri o endereço - disse Brito, com sua pronúncia límpida, como só os mineiros de Belo Horizonte conseguem entoar. - O Frazão, da Costumes, está investigando.
Camundongo chupou uma grande quantidade de fumaça e foi expelindo-a aos pouquinhos. Observava seu colega, um tipo de trinta anos de idade, mais ou menos. Usava cavanhaque e óculos, era alto e tinha a ambição na mesma altura. Camundongo sabia, por intermédio do velho amigo Cacique, que Brito ambicionava cobrir o Congresso Nacional; por isso vigiava Camundongo, à espera de algum deslize “daquele rato velho”. Brito decidira que a cobertura do Congresso Nacional não podia ficar nas mãos de alguém do Norte. “Esses índios do Norte sabem pelo menos o que é jornal?” - perguntava-se. Além disso, Camundongo já deveria estar quietinho no Campo da Esperança, onde Brito poderia dar uma mijada de vez em quando na sepultura dele. Mas havia dois problemas que lhe impediam de mijar sobre a sepultura de Camundongo: a sucursal era de um jornal paraense; mineiro não oficiava seu culto ali dentro. O outro problema era o próprio Camundongo, com seu refinado espírito investigativo, que já rendera várias manchetes políticas e econômicas ao Observador Amazônico.
- Já não pretendo ficar muito tempo no jornal. Posso me aposentar na hora que bem entender. Mas quero resolver esse caso - disse Camundongo, olhando fixamente para Brito. - Acho que tu deverias me dizer logo de uma vez a verdade.
Brito engoliu em seco. Como aquele rato do Norte podia falar assim com ele, um mineiro?
- O delegado Frazão vem se dedicando ao sumiço de meninas há anos. Ele descobriu que há um senador metido nisso. O cara é do Pará - Brito desembuchou, esmigalhado pelo olhar suicida de Camundongo.
- Qual o nome dele? - Camundongo perguntou.
- Babá Carvalho - Brito se mexeu na cadeira.
- Lembras-te: este é meu último caso - disse Camundongo. Quero saber tudo.
Momentos depois, Camundongo dirigia pela Estrada Parque Taguatinga, a EPTG. Não demorou para que chegasse a Taguatinga, uma cidade a vinte quilômetros de Brasília. Tomou a Avenida Comercial Sul em direção à Vila Dimas.
A casa não tinha nada de especial.
- Boa noite! - disse Camundongo. - Procuro pela senhora Nathalia. Quero tomar uma Bohemia - disse à moça que o atendeu. Ela murmurou alguma coisa e Camundongo a seguiu através de um corredor lateral, entre o muro e a parede da casa. Entraram à esquerda, numa salinha mal iluminada. Depois seguiram por outro corredor, paralelo ao primeiro, até darem num salão onde havia um balcão e um homem atrás do balcão. O homem sorriu para Camundongo e lhe perguntou o que queria beber.
- Tem Cerpinha? - perguntou Camundongo.
- Aqui temos tudo, “míster” - disse o homem.
- Pode me chamar de Camundongo.
O homem foi apanhar a cerveja e enquanto servia-a examinava o recém-chegado.
- Qual o seu ramo, “míster”? - indagou.
- Sou amigo do senador Babá Carvalho - disse Camundongo.
O homem do balcão pensou um pouco.
- Aqui, atendemos de empresários a senadores. Temos tudo o que possam querer. O senador Babá Carvalho, por exemplo, só bebe Cerpa, como o senhor. O senhor é do Norte, também? - disse o homem do balcão.
- Precisamente do Pará - disse Camundongo.
- O senhor só toma Cerpa?
- Só vario a taça.
- Como assim?
- Às vezes, gosto de usar uma taça pubiana.
O homem do balcão pareceu não entender.
- As taças pubianas só a mulheres as têm. No meio das pernas - prosseguiu Camundongo.
- Ah! entendo! - disse o homem do balcão. - Chamo-me Padre - apresentou-se. - Faz sentido, pois escuto as confissões dos clientes. Na verdade são fantasiosas, mas procuro satisfazê-las, entende?
- Estou satisfeito de ter vindo aqui. É justamente este lugar que procurava. Estou disposto a pagar o que for necessário, mas antes preciso ver a mercadoria - disse Camundongo.
- Confesse! confesse! - disse Padre. - Estou aqui para ouvir - e serviu mais uma Cerpinha.
- Bom, sou muito sofisticado. E objetivo também. Procuro uma menina. De preferência paraense. - Disse isso e corou. Sentiu-se corar, mas esse pudor certamente passaria desapercebido no seu rosto de maracujá de gaveta.
O homem do balcão pensou um pouco.
- Realmente seu gosto é refinado. Vou apresentá-lo à Nathalia. - E foi até uma porta nos fundos do bar, de onde saiu com um barman. Padre convidou Camundongo a acompanhá-lo. Saíram da casa pelos fundos e dirigiram-se para o muro, onde, por trás, erguia-se uma mansão. Padre abriu um portão de ferro e ambos passaram por ele, o qual o cicerone voltou a trancar com cadeado. Estavam no terreno da mansão que aparecia nos fundos da casa onde ficava o bar. Entraram numa sucessão de compartimentos que lembrava a Camundongo um hotel, até chegarem a um salão, onde madame Nathalia aguardava. Padre apresentou-os e sumiu. Madame Nathalia devia ter cinqüenta anos. Era bonita e elegante.
- Então o senhor quer uma garotinha paraense? - perguntou-lhe. - Dizem que as meninas do Pará são precoces. Na verdade tenho muitas.
“Essa vaca ouve tudo o que se diz nesta casa, inclusive murmúrios. O confessionário do Padre tem mais de dois ouvidos” - Camundongo pensou.
- Muitas? Serão melhores do que as goianas, as mineiras? - camundongo perguntou.
- É como lhe disse: são precoces. Tenho um cliente que as prefere.
- O senador Babá Carvalho.
- O senhor o conhece?
- Somos velhos conhecidos.
- Foi ele que lhe indicou nosso clube? - madame perguntou.
- Oh! Sim.
Padre entrou com uma bandeja, na qual havia uma garrafa de licor e dois cálices. Antes de pôr a bandeja na mesinha, abaixou-se e cochichou com madame Nathalia. Camundongo ouviu as palavras “boca de sacola” e “Belém”.
- Mas voltando ao nosso assunto, o senhor quer ver nossos álbuns? - madame perguntou, servindo-os do licor de bacuri.
- A senhora é paraense? - Camundongo lhe perguntou.
- Sou. Estou há muito tempo aqui.
- Entendo. Sim, quero ver a cocaína.
- Cocaína? - disse madame, quase deixando o cálice cair.
- Por que não? - disse camundongo, com fingida casualidade.
- O que você sabe da cocaína? - madame perguntou.
- Bom, eu me referia às meninas, mas já que há também cocaína... Na verdade, estou interessado mesmo é por cocaína. Há muito tempo que não me interesso por mulheres, quanto mais por meninas.
Madame pensava a mil por hora. De repente, perpassou-lhe uma espécie de alívio no rosto, como quem acaba de matar uma charada.
- Afinal, o que é que o senhor quer?
Camundongo sentiu de repente uma ansiedade mortal, como se algo diabólico fosse-lhe acontecer naquele exato momento. Desesperado, levantou-se e pediu para ir ao banheiro. Sacou o celular do bolso e ligou para Isaías Oliveira, que naquele momento dirigia-se para a casa de Elza Ladrona.
- Uma tal Nathalia, que trafica crianças daí de Belém e as traz para Brasília, confirmou que a Ratazana está por trás do tráfico de cocaína da Colômbia, fazendo conexão no Marajó. Devo tê-la ouvido mencionar “boca de sacola” e “Belém” a um sujeito que trabalha com ela. Deu-me a impressão de que se tratava de uma pessoa...
Isaías Oliveira ouviu uma explosão do outro lado da linha.
- Alô! Alô!
Nada.
O Alfa Romeo foi encontrado, no dia seguinte, entre os arbustos tortos do Cerrado. A morte dera a Camundongo a paz que tanto buscou, pois seu rosto cadavérico parecia sorrir.
***
A tacacazeira passou a cuia fumegante para o índio. Grandes camarões flutuavam na superfície do tucupi novo, cor de ouro, entranhado na goma. O índio abocanhou um galinho de jambu e foi sugando-o, até engoli-lo. Além do índio, havia, em torno da tacacazeira, três moleques que brincavam por ali, uma mocinha, uma senhora e um preto retinto, de paletó, que devorava um prato de maniçoba. A tarde chegara ao fim. Belém imergira naquela passagem entre o finzinho da tarde e o comecinho da noite, quando o sol não mais assa a pele dos incautos e os flocos negros da noite começam a cair. Isaías Oliveira pediu um tacacá. Viu quando o negro cortou com a colher um pedaço de toucinho que o lembrou da barriga do delegado Capivara. Deveria chamar-se delegado Piramutaba. Uma piramutaba de mais de um metro, eviscerada, com a barriga formando lábios de três dedos de gordura. Ou delegado Bagre, pois a cabeça dele ficara achatada como a de um bagre. Tomou uma golada e pescou um camarão. Já escurecera. O índio e o negro haviam se escafedido. Chegou um bacana, de carrão, e pediu um vatapá. Três moças também chegaram e pediram tacacá. Isaías Oliveira ainda ficou um pouco, pois as moças eram muito bonitas e estavam seminuas. Acendeu um Hilton, pagou e saíu caminhando. Deixara o carro estacionado um pouco além. Passou diante de uma amassadeira. Ainda estava aberta. Havia duas garotas e um garoto comprando açaí. Um caboclo enchia um saco plástico de açaí. Embarcou na caminhonete, estacionada defronte à amassadeira, e tomou o rumo do Guamá. Pouco depois o celular tocou. Era Camundongo.
A casa de Elza Ladrona estava imersa na noite pantanosa das vielas. Era uma grande palafita com frente de alvenaria, atolada na lama. Por trás da cortina de miasma que erguia-se, lento, do lamaçal, e depois que se cruzava a porta, dentro da casa havia música, bebida e muitas mulheres. Isaías Oliveira conhecia Elza Ladrona desde o tempo em que fora universitário, e já provara do seu molho, “o melhor das margens do rio Guamá”.
- Ele veio aqui, atrás de Boca de Sacola - a matrona cochichou.
Isaías Oliveira pegou no cabo da Glock, presa ao coldre que mandara fazer para usar a pistola no cós da calça, atrás. Seguiu Elza Ladrona em silêncio. No segundo andar, atravessaram uma sala e um novo corredor, até chegarem ao quarto de Boca de Sacola. O quarto estava na penumbra.
- Há alguma lâmpada forte? - Isaías Oliveira perguntou. - Gosto de claridade.
Uma lâmpada de duzentas e cinqüenta velas iluminou o ambiente.
- Sente-se! - disse Boca de Sacola, gentilmente. - O que você quer beber? - Boca de Sacola causou-lhe um choque. Tinha a boca grande mesmo, e lábios sensuais. Era meio estrábica. Seus cabelos, ruivos, desciam em cachos quase até a cintura. O rosto era de um oval perfeito e a pele - o que tinha de mais belo, num tom de marfim -, alva e sem nenhuma sarda, nenhum sinal, nada que maculasse tecido tão maravilhoso.
De onde era aquele sotaque?
- Cerpinha - disse Isaías Oliveira.
Ela foi à geladeira e pegou uma Cerpinha.
- Então? - perguntou ao jornalista, servindo-o e depois sentando-se na outra cadeira e cruzando as pernas. Trajava um robe de seda rosa.
- Cara de Catarro. Isto te diz alguma coisa? - disse Isaías Oliveira.
- E por que deveria dar satisfação? - a mulher respondeu.
- Cara de Catarro quer se vingar de mim. Tenho uma filha de catorze anos; ele quer seqüestrar minha filha, e matá-la. Vai torturá-la antes e dá-la viva aos jacarés. Sou jornalista e contribuí para a prisão daquele psicopata. Por isso preciso encontrá-lo antes que ele me acerte - disse Isaías Oliveira.
Boca de Sacola ouviu-o atentamente.
- Ele esteve aqui - disse, depois de algum tempo.
- Por quê? O que tu fazes aqui? Como é teu nome? De onde és? - perguntou-lhe.
- Sou prostituta. Tenho curso de política internacional pela UnB, e fui prostituída pelo senador Babá Carvalho ao fazer um estágio no gabinete dele. As circunstâncias não importam. Sou de Brasília, brasiliense mesmo, filha de um paulistano cretino e de uma mineira mais puta do que eu. Acho que não merecia isso. Ganhei a confiança de Nathalia, a meretriz-mor, e estou aqui para pegar uns diamantes do muito que Babá Carvalho tem, os quais recebe como pagamento pela Conexão Marajó. Mas quero pegá-los para mim mesma. Os diamantes estão com aquele animal que apareceu aqui. Ele é a ponte entre os colombianos e o senador Babá Carvalho. O senador não aparece, é claro. Só pega os diamantes. Está mandando cocaína para a Holanda em peças de cerâmica marajoara. - Fez uma pausa. - Faço um negócio com você. Entrego-lhe Cara de Catarro e você me deixa ir com os diamantes. Acho que unidos poderemos chegar até Cara de Catarro e ao senador Ratazana, que é como seus opositores o chamam. Você, então, limpa a natureza de algo que a ofende e eu limpo um senador imoral. Como vê, entendo de política.
A fumaça do Hilton espalhava-se pelo quarto.
- Onde estão os diamantes? - Isaías Oliveira perguntou.
- Em algum lugar do Marajó. - Disse Boca de Sacola.
Era quase meia-noite quando Isaías Oliveira deixou o bordel de Elza Ladrona e foi para casa. Já ao longe viu os carros de polícia piscando defronte ao casarão. Pisou no acelerador.
O casarão era cercado por muros de três metros de altura, encimados por pontiagudas pontas de lança, e Diabo, o fila que criara desde bebê, tornara-se um cão assustador. Além do mais, treinara Jacaré com armas de fogo. A parte frontal da casa era bem iluminada. Nas laterais, havia duas casas sempre movimentadas e bastante iluminadas. Cara de Catarro viera pelos fundos, onde havia uma casinha habitada por um casal de aposentados. Cara de Catarro chegou cedo; bateu à porta da casa. A velhinha foi atender.
- Boa noite, minha senhora - disse Cara de Catarro. - Vim trazer-lhe um prêmio do Papa Tudo. Sua família ganhou casa nova. Quantas pessoas são?
- Eu e meu marido - ela respondeu. - Mas a gente não joga no Papa Tudo.
- Não importa, vaca podre - disse Cara de Catarro, empurrando-a para a sala e fechando a porta. Ela deu um grito curto e caiu no sofá. O velhinho entrou na sala e levou um soco no peito. Caiu morto. A velhinha teve um ataque de asma. Cara de Catarro sentou-se defronte dela, acendeu um cigarro de maconha e observou-a morrendo, até esticar-se toda.
- Bom, agora vou pegar a perema - disse, dirigindo-se para os fundos da casa.
- Havia uma escada. Ele subiu pela escada e desceu do outro lado por uma providencial goiabeira, que Isaías Oliveira esquecera por completo de podar. Ao tocar o chão, levou um susto. Um diabo, preto e pesado, saltara sobre seu pescoço. Cara de Catarro defendeu-se instintivamente com a mão esquerda, mas ficou com a orelha rasgada e a mão dilacerada, deixando cair o trinta e oito duplo. E ainda levou um tiro no queixo, disparado por Jacaré. Cara de Catarro escalou a goiabeira como um macaco grande, mas com pressa; pulou para o quintal da casa dos fundos e desapareceu.
Quando Isaías Oliveira foi dormir, já quase para amanhecer o dia, pôs-se a arquitetar uma maneira de pôr as mãos, isto é, crivar de balas, o dileto professor de filosofia. Isaías Oliveira lembrou-se que o vira, uma vez, carregando um precioso volume de “Cento e Vinte Dias de Sodoma”, do divino Marquês de Sade. Adormeceu. Teve um sono sem sonhos e ao meio-dia estava de pé, pronto para ir ao jornal. Tomou meio litro de açaí gelado, com farinha de tapioca e açúcar, farejou Ana Carolina, que morria de rir com a brincadeira do pai, deu um olhar para Jacaré e saiu, não sem antes dar um alô a Diabo. O advogado do seu pai estava cuidando das formalidades, na polícia, sobre os últimos acontecimentos.
- A cocaína é levada para a Holanda dentro de cerâmica marajoara. E tem um nome importante metido na história.
- Quem? - Pena Branca perguntou.
- Ratazana. Tu sabes que Ratazana e Cara de Catarro andavam muito juntos na juventude. Ratazana é só um pouco mais velho. As famílias dos dois eram também as tais. E depois, Ratazana só vive no Marajó. Estive examinando os períodos em que ele viaja para lá; coincidem com a presença da Bethania Wanzeler. Tem mais uma: a fuga de Cara de Catarro foi facilitada.
No dia seguinte, bem cedo, Isaías Oliveira partiu para Mosqueiro, com Ana Carolina e Jacaré. Iam bem armados. Ana Carolina ficaria com o avô, Todo Feio, um sujeito enorme, calmo, praticante do zen e o melhor atirador que Isaías Oliveira conhecera. Isaías Oliveira retornou à tarde para Belém e foi direto à casa de Elza Ladrona. Havia novidade. Boca de Sacola falara com Nathalia. O senador estava na sua fazenda, no Marajó.
Naquele mesmo dia, à noite, Isaías Oliveira foi ao Hilton, onde Bethania Wanzeller hospedava-se. Sabia do seu endereço porque a entrevistara. Ela fizera-se passar por marchand. O quarto ficava no décimo-terceiro andar. O corredor estava vazio. Isaías Oliveira não teve dificuldade de entrar no quarto. Remexeu por lá até dar com uma valise de fundo falso, onde encontrou, em um pedaço de papel, a seguinte informação: “12 - Ponta de Pedras – D”. Isaías Oliveira olhou para o relógio. O calendário marcava 10 de julho de 1997. Eram vinte e uma horas. Já ia saindo quando algo chamou sua atenção: um papel caído quase debaixo da cama. Apanhou-o. Dizia: “Passagem Santa Rita, 90 – Telégrafo”.
Deixou tudo como estava. Ao chegar ao elevador, notou-o chegando. Correu para a escada. Olhou para trás e viu Bethania Wanzeller saindo do elevador. Isaías desceu até o décimo-segundo andar e pouco depois estava na Telepará da Avenida Presidente Vargas, onde consultou a lista telefônica. De fato, tinha uma passagem Santa Rita no Telégrafo. Defronte ao posto telefônico havia sempre uma procissão de taxistas. O terceiro que Isaías consultou explicou direitinho onde ficava a tal Passagem Santa Rita. Fazia calor como o diabo. Isaías Oliveira entrou nas ruelas do bairro do Reduto, pegou a Doca de Souza Franco e depois a Avenida Pedro Álvares Cabral até a Rodovia do Snapp. Pouco antes do igarapé do Una, avistou o que supunha ser a Passagem Brasília, imersa na neblina que vinha da baía de Guajará. As lâmpadas, nos postes pensos de madeira, abortavam uma luz trêmula e incerta sobre a pista de chão, solitária e talvez coalhada de assaltantes, ocultos nos cercados, árvores, valas e monturos. A Passagem Santa Rita era ainda mais sinistra. Isaías Oliveira percorreu-a de cabo a rabo e nada da casa 90. Ninguém passava. A caminhonete atolou, patinhou, saiu do atoleiro. Apareceu um homem caminhando. Isaías Oliveira pegou a Glock e parou perto do sujeito.
- Por favor, aqui é a Passagem Santa Rita? - perguntou-lhe.
O sujeito parou. Parecia bastante bêbedo.
- É! - disse.
- Estou procurando a casa 90. O senhor sabe qual é?
O sujeito olhou para um lado e para outro da rua.
- Ah! deve ser a do dr. Oliveira - disse. - O senhor está vendo aquela casa com a frente branca? É lá.
Isaías mostrou uma cédula de dez reais para o tipo.
- O que é que o dr. Oliveira faz? - perguntou.
- Aborto - disse o tipo, pegando a cédula.
- Ele atende a qualquer hora?
- A qualquer hora.
O dr. Oliveira era gordo e grande. A barriga parecia estar prenha. Sua cara tinha bexigas e espinhas carnais. A pele, que fora branca, era avermelhada como um camarão frito, os olhos eram de jacaré, a boca também. Suas unhas estavam pretas de lama.
- Preciso que o senhor faça um aborto. Isso tem de ser com o máximo de discrição - disse-lhe Isaías Oliveira.
- Quem me indicou? - perguntou o açougueiro.
- Bethania Wanzeller.
O médico olhou-o atentamente e sem dizer nada levantou-se. Isaías Oliveira ficou pronto para sacar a Glock. O médico ia na direção do telefone. Entretanto apanhou uma garrafa de whisky, próximo ao telefone, e serviu duas doses do Natu Nobilis.
- Tive as melhores referências do senhor - disse Isaías Oliveira. - Não sei como um médico tão talentoso não está clinicando em um grande hospital - arriscou o jornalista.
- Na verdade não consegui passar no vestibular de medicina - disse o dr. Oliveira.
- Mas nós sabemos do seu talento, inclusive o senador Babá Carvalho - Isaías arriscou de novo, e viu, pela expressão do outro, que acertara na mosca. - E o Cara de Catarro, está melhor?
- Segue hoje à noite para o Marajó - disse o dr. Oliveira.
- Resolveram de última hora levá-lo no Nossa Senhora de Nazaré, que sai com a maré vazante a uma hora da madrugada, do Ver-O-Peso - disse Isaías.
- Vai no Nossa Senhora de Nazaré, nas barbas da polícia - Isaías Oliveira arriscou novamente.
- Não é no Isadora? - perguntou o dr. Oliveira.
- Resolveram de última hora levá-lo no Nossa Senhora de Nazaré, que sai com a maré vazante a uma hora da madrugada, do Ver-O-Peso - disse Isaías.
O dr. Oliveira olhou-o desconfiado. Levantou-se e disse que ia pegar mais duas doses de whisky. Aproximou-se do telefone. Parou, olhou para Isaías, pediu licença.
- Pára aí! - disse Isaías Oliveira, interrompendo a ida do dr. Oliveira ao quarto. Isaías estava com a Glock na mão. Apontou-a para a cabeça do dr. Oliveira, entre os olhos de jacaré. - Tu queres levar um tiro na testa de jacaré ou na barriga de égua prenha? - perguntou-lhe.
- Eu faço o teu aborto - disse o parteiro.
- Não sou eu quem precisa abortar, mas tu. Onde está a Isadora?
- Em Icoaraci. No trapiche - disse o dr. Oliveira.
- Como é o negócio do encontro depois de amanhã em Ponta de Pedras?
- Não sei nada disso.
- Quem foi que mandou Cara de Catarro para cá?
- Foi o senador Babá Carvalho.
- E os diamantes?
- Que diamantes?
Isaías Oliveira engatilhou a pistola. O dr. Oliveira suava em bica.
- Pra quem tu ias telefonar?
- Eu ia telefonar para dona Bathania. Ela me disse que era para telefonar avisando sobre qualquer coisa. O senhor é da polícia? Eu me entrego.
Isaías Oliveira baixou a arma e fez que guardava-a no coldre traseiro. Vira desde o começo o trinta e oito na cintura volumosa do açougueiro. O dr. Oliveira tentou sacar o revólver do cós da calça. O chumbo alojou-se entre os olhos de jacaré. O som do tiro era inacreditável na madrugada prenhe de solidão.
- Égua! - disse o jornalista, correndo para a caminhonete e escafedendo-se.
Pouco depois chegava ao trapiche de Icoaraci. A maré estava grande. Isaías Oliveira saltou do carro e dirigiu-se apressado para o trapiche. Avançou. Passou alguém.
- Onde está a Isadora? - perguntou.
- Já está saindo. Se apresse, mano.
Isaías Oliveira apressou o passo. Pouco distante, a Isadora zarpava. Isaías viu um gorilha na proa, com a cara enfaixada. Pegou a Glock e fez pontaria. Melhor não. Erraria e poria tudo a perder. Não poderia alertar Cara de Catarro. Era preciso ter tudo sob controle. Sabia onde encontrá-lo. Melhor do que isso, só matando-o. Matá-lo-ia impunemente. Atirou a pistola para longe na água e voltou ao carro. Apanhou a Luger, a velha Luger com a qual ganhara um torneio de tiro. “Quanto uma igaçaba pega de pó?” - pensou. Talvez sessenta quilos. Com a vantagem de que a própria igaçaba vale dinheiro. Imaginou Boca de Sacola no Piantela, restaurante-reduto dos políticos de Brasília e ponto de mariposas estonteantes. Depois que a saúde pública descobriu que os homens do poder estavam comendo barata e comida velha, os políticos mais suscetíveis afastaram-se um pouco, para depois voltar com a velha sede de sempre. Isaías Oliveira foi para a casa de Elza Ladrona.
Até o século passado, Belém era um delta. Cortada por igarapés, à medida que a cidade foi sendo povoada, era aterrada, tornando-se uma península circundada pelo rio Guamá e pela baía de Guajará. A visão noturna da cidade, de quem a sobrevoa, é de uma planície de luzes. Vistas da baía de Guajará, as luzes piscam, e depois só resta um clarão, que se extingue aos poucos. Então, a embarcação terá seguido para o Norte, contornando a ilha das Onças e seguindo, depois, para oeste, rumo a Ponta de Pedras, no Marajó. Os vasos de cerâmica foram descobertos em aterros no século XVIII. Os construtores dos grandes aterros e autores da cerâmica mais complexa e conhecida de Marajó, das diversas culturas que lá habitaram, são os marajoaras. Construíram aterros para habitação e cemitério com até seis metros de altura. Foram identificados quarenta e cinco sítios arqueológicos na ilha do Marajó. O mais famoso, visitado e explorado continuamente há mais de cem anos, é o sítio-cemitério Pacoval, localizado na praia leste do lago Arari, logo acima da boca do igarapé das Almas. Em Santa Cruz do Arari, às margens oeste do lago Arari, as donas de casa usam autênticas igaçabas marajoaras no dia-a-dia. Mas localiza-se em Cachoeira do Arari, a sudeste, avançando até o centro da ilha, uma das áreas mais ricas em tesos arqueológicos, modificados pela ação da natureza ou destruídos por búfalos. Copiar a cerâmica marajoara, com seus traços geométricos e cores vivas, acabou se tornando um bom negócio. Em Icoaraci, subúrbio de Belém, confecciona-se cerâmica com motivos marajoaras em escala industrial. Assim, se peças autênticas têm valor arqueológico e histórico, os turistas podem comprá-las a partir de cinco dólares. Em 1995, foi descoberto um novo sítio arqueológico no rio Anajás Grande, num ponto fronteiriço entre os municípios de Anajás, Ponta de Pedras e Muaná. O novo sítio começou a ser pilhado desde então. Peças eram contrabandeadas para a Europa. Pelo que tudo indicava, recheadas de cocaína.
O iate Nossa Senhora de Nazaré ancorou num igarapé no meio do mato, na ilha de Marajó. Isaías Oliveira embarcou numa ubá e logo chegou a Ponta de Pedras, indo direto à casa do colaborador do jornal, Eustáquio, um caboclo metido a literato. Não havia qualquer notícia do senador, nem de Cara de Catarro. Foram ao posto flutuante de gasolina. Sim, um sujeito grande como um búfalo, com o queixo enfaixado, tinha abastecido um barco chamado Isadora. Não, o senador Babá Carvalho jamais fora a Ponta de Pedras. Se o visse, teria-o reconhecido. Não é aquele com jeito de ratazana? Sim, tivera a impressão de ter visto aquela senhora que compra peças de cerâmica.
Isaías Oliveira seguiu com Eustáquio até o hotel. Eustáquio entrou e Isaías Oliveira ficou esperando-o lá fora. A tal Bethania Wanzeller tinha feito uma reserva. Do hotel, Isaías Oliveira e Eustáquio foram para a casa do literato. Não havia nada a fazer, por enquanto.
No dia seguinte, levantaram-se cedo e foram para o cais. Havia uma embarcação, que se destacava das outras pelo tamanho, recebendo caixotes. Eustáquio procurou se informar e descobriu que eram peças de cerâmica. Logo depois chegou Bethania Wanzeller. Era baixa, tinha os cabelos escorridos e olhos claros, mas amendoados. A pele acobreada terminava por revelar sua ascendência índia. Trinta minutos depois ela desceu do barco, carregando uma estatueta antropomorfa. Entrou no Jeep e voltou para o hotel. Isaías Oliveira ficou de plantão próximo ao hotel, até ver Bethania Wanzeller deixá-lo novamente. Eustáquio ficou vigiando enquanto Isaías Oliveira entrou no prédio.
- Bom dia! - disse ao porteiro, um caboclo de aspecto senil. - Dona Bethania Wanzeller me pediu para pegar uma estatueta no quarto dela. Me dê a chave.
O velho nem pensou. Pegou a chave, que acabara de guardar, e entregou-a a Isaías Oliveira. Parecia que ninguém tinha entrado naquele quarto. Havia somente um armário, além da cama, coberta por um lençol sem nenhuma ruga, uma mesinha e uma cadeira. Na parede havia uma tela ingênua, representando uma paisagem marajoara. Afastou-a. Apareceu um nicho; dentro do nicho, a estatueta. Apanhou-a, abriu-a e quase cai para trás, pois continha uma quantidade incrível de diamantes. Deixou apressado o hotel, com a estatueta dentro do panamá, o qual trazia de encontro ao peito. Instruiu Eustáquio a ficar de olho e a comunicar Pena Branca de tudo o que visse ou ouvisse. Pegou a ubá e foi para o Nossa Senhora de Nazaré, onde pôs os diamantes em um lenço e guardou-os em um bolso interno do casaco de mescla marrom que usava. Depois falou pelo celular com Pena Branca e deu ordem de partida.
A Quinta Companhia Independente de Polícia Militar, sediada em Soure, a cinco horas de Ponta de Pedras, recebeu o comunicado e se preparou para a abordagem. Isaías Oliveira seguiu o barco dos traficantes para dar as coordenadas. Eustáquio apurara que seu destino era Soure. No dia catorze de julho, o Observador deu a manchete: “Polícia estoura com piratas e fecha cerco a Cara de Catarro”. A chamada dizia o seguinte: “Soldados da Quinta Companhia Independente de Polícia Militar, de Soure, apreenderam terça-feira 324 peças de cerâmica marajoara no barco Lírio do Afuá. As peças iam ser contrabandeadas de navio para a Europa. A marchand Bethania Wanzeller foi encontrada morta no quarto do Hotel do Mano em Ponta de Pedras, picada por cobra coral. Cara de Catarro, que vem sendo procurado por vários assassinatos, inclusive de um delegado de polícia, foi visto no Hotel do Mano, no dia da morte de Bethania Wanzeller. A polícia vem fechando o cerco a Cara de Catarro, numa verdadeira caçada na ilha de Marajó”.
Isaías Oliveira observava Boca de Sacola lendo o jornal.
- Acho que Cara de Catarro pegou os diamantes - disse Boca de Sacola.
- Se ele pegou os diamantes, certamente vai entregá-los ao senador. Só preciso saber quando e onde.
- Por que o senador está se arriscando tanto?
- Pretende eleger-se governador para pilhar o estado.
Boca de Sacola ficou um pouco em silêncio. Depois desabafou: - Vou abrir o jogo. Vim a mando de uma pessoa muito bem informada e barra pesada. Nathalia sabe de tudo e quer os diamantes. Bethania Wanzeller aceitou pegar esses diamantes para Nathallia. Você vai me ajudar a pegar esses diamantes?
“Hum, então Bethania Wanzeller é do time de Nathalia” - pensou Isaías Oliveira.
- Não estou interessado em diamantes, mas em Cara de Catarro. Tenho quase certeza de que foi ele quem entrou naquele quarto, apanhou os diamantes e deixou aquela coral atrás do vaso sanitário. Tem senso de humor, o diabo. Bethania Wanzeller foi picada na bunda. Ela gritou, mas era uma micrurus frontalis, a coral-verdadeira. A muçurana, que também é uma serpente, alimenta-se exclusivamente de outros ofídios, de preferência os venenosos. Somente o veneno das corais-verdadeiras abala-a. Bethania Wanzeller morreu de insuficiência respiratória aguda. Cara de Catarro está cercado em Ponta de Pedras. Vai morrer com os diamantes. Exceto se tu entrares em contato com o senador, oferecendo-se para pegar os diamantes e levá-los para ele.
- É isso! - exclamou Boca de Sacola.
- Naquele corre-corre será fácil perder os diamantes... - Isaías Oliveira observou.
- E você, o que ganha com isso?
- Certamente o senador sabe onde Cara de Catarro está. Devem se comunicar por celular. Ao saberes da localização de Cara de Catarro, tu me dirás.
Naquela noite, Isaías Oliveira jantou no Remada. Zeca do Marajó caprichara no filhote e a Cerpinha estava enevoada como sempre. O jornalista acendeu um Hilton e pôs-se a fumar. Zeca do Marajó transmitia-lhe segurança. Certa vez, salvou-o de uma sucuri. Tomavam banho em um furo, no Afuá, quando a sucuri pegou Isaías Oliveira. Ele gritou. Zeca do Marajó atirou uma faca para Isaías Oliveira. O animal era grande e tentava arrastá-lo para o fundo. Isaías Oliveira deu três facadas no corpo escamoso. As duas primeiras resvalaram, mas a terceira entrou na carne do reptil, que largou-o. Ainda agora, ao lembrar-se do episódio, sentia doer as três costelas quebradas.
- Tive uma folga - disse Zeca do Marajó, chegando com uma garrafa de Cerpinha.
- Acho que Cara de Catarro está escondido na fazenda do Ratazana - disse Isaías Oliveira.
- É improvável. Isso comprometeria Ratazana. Cara de Catarro talvez esteja mais próximo do que se possa imaginar - replicou o caboclo marajoara. Um calafrio percorreu Isaías Oliveira. Depois, ele sossegou. Ana Carolina estava à sombra de Todo Feio. Era difícil imaginar que alguém pudesse levá-la nas barbas de Todo Feio.
- Onde Cara de Catarro estaria metido? - perguntou.
- Creio que no Isadora. Nestas alturas o barco já foi pintado e está com outro nome, é claro. Assim, ele pode se mover de um lado para outro. É profundo conhecedor do Marajó, onde sua família teve uma fazenda e onde Cara de Catarro foi criado - disse Zeca do Marajó.
- Que fim levou a fazenda dos Rego?
- Desapareceu. As terras foram sumindo, sumindo, até que sumiram completamente, reaparecendo em forma de ilha.
Isaías Oliveira sentiu-se de repente angustiado.
***
O tiro que lhe atingiu o queixo fora de raspão. Cara de Catarro já havia tirado as ataduras do rosto e deixara a barba e o bigode crescerem. De bermudas, camiseta, sandálias japonesas e chapéu de palha, fazia-se passar por tripulante daquele barco bem pintadinho, o Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no meio do emaranhado de embarcações sobre o lixo da maré seca do Ver-O-Peso. Cara de Catarro observava o calçadão da janelinha da sua cabine. Podia ver, nos telhados dos prédios vizinhos, a fila negra de urubus, quieta, fazendo a digestão. Eram duas horas da tarde. A temperatura já deveria ter ultrapassado os quarenta graus. Abriu um alçapão que dava para o porão do barco, onde poderia se esconder, se fosse o caso. Tinha, ali, uma pistola automática de dezoito tiros e uma espingarda calibre doze, de dois tiros, e bastante munição. Fechou o alçapão e se deitou no beliche, fumando um Havana, presente do senador Babá Carvalho, seu dileto amigo de infância. Depois que resolvesse o caso dos diamantes viveria com documentos falsos e bastante dinheiro para, então, realizar seu sonho: seqüestrar trinta e uma ninfetas da nata da sociedade belenense e fornicar até matá-las de exaustão. A primeira delas seria Ana Carolina. Mantê-la-ia escrava no seu esconderijo no Marajó até reuni-las todas.
O calor era infernal e fez com que Cara de Catarro cochilasse. Nunca sonhava, exceto o pesadelo que, às vezes, o aterrorizava. Via o pai avançando para ele com um fio elétrico. Podia sentir as lambadas. Corria. Encontrava-se em um quarto. Vinham gemidos da cama. Ia lá, e via sua mãe sendo sodomizada por um velho que o olhava e ria. Então acordava, sempre suado, o suor escorrendo das axilas, da testa, pelas costas. Seu corpo produzia suor com abundância.
Eram nove horas da noite quando Cara de Catarro recebeu, pelo celular, o telefonema. Conversou durante três minutos e meio. Depois vestiu um terno e deixou o barco. Andou um pouco, até um carro que estivera estacionado próximo à Catedral. Partiu em direção ao Guamá. Logo estava no quarto de Boca de Sacola.
- Onde estão os diamantes? - Cara de Catarro perguntou. Seu olhar e tom de voz eram de arrepiar os cabelos.
Boca de Sacola ficou pensativa, olhando fixamente nos olhos de Cara de Catarro. Uma coisa ia ficando claro para ela. Sim, os diamantes estavam com Isaías Oliveira. Ele é que fora a Ponta de Pedras. Ele pegou os diamantes de Bethania Wanzeller. Ele tinha os diamantes. Precisava ganhar tempo. Mas como não falasse nada, Cara de Catarro resolveu dar-lhe um estímulo.
- Acho que os diamantes estão na tua boceta, perema. Anda logo e me dá os diamantes, senão te arranco o clitóris; não, arranco logo a boceta - e fez menção de arregaçar a saia de Boca de Sacola, com uma peixeira em punho.
- Eu sei com quem eles estão! - gritou Boca de Sacola.
- E com quem, tracajá; com quem, lobo guará? - disse Cara de Catarro.
- Eu lhe direi com quem os diamantes estão. Já estão em Brasília.
- Vou te cauterizar o cu, boca de serapilheira. Tu queres dizer que Babá Carvalho está me fazendo de “otaro”? - Cara de Catarro achava engraçada a corruptela “otaro”.
Ocorreu uma saída a Boca de Sacola.
- Esses diamantes serão nossos. Você não vai dá-los ao senador, vai? Eles poderão ser nossos. Metade, metade. Mas teremos de ir buscá-los. A pessoa que os têm é muito esperta, mas poderei atraí-lo para uma cilada.
- Hum! matá-matá, e quem é que está com os diamantes do senador?
- O jornalista.
- Isaías Oliveira? Tu estás certa, bicho cascudo. Sou todo ouvidos.
- Ele esteve em Ponta de Pedras. Vamos encontrar-nos aqui ainda esta noite.
- Enquanto ele não chega, vamos nos divertir um pouco, jabuti - disse Cara de Catarro, pegando uma garrafa de whisky que estava em cima do frigobar e abriu-a, bebendo no gargalo. Boca de Sacola observava-o, sentada na cama. Cara de Catarro puxou a cigarreira e acendeu um cigarro de maconha. - Diga-me lá, tartaruga, aquele degenerado ficou de vir a que horas? Preciso pensar numa boa recepção para ele. Aliás, preciso tirá-los daqui, a fim de torturá-los à vontade - disse.
A palavra torturá-los tonitroou nas amígdalas cerebrais de Boca de Sacola. Ela também pensava. Precisava fazer alguma coisa para surpreender aquele monstro.
- Após a meia-noite ele estará aqui - ela disse.
- Com os diamantes?
- Os diamantes estão com ele, mas não acho que seja idiota de andar com as pedras por aí - disse Boca de Sacola.
- Hum, peremosa, isso quer dizer o quê?
- Que eu vou ter de descobrir onde estão os diamantes e a filha dele. Assim, você pegará dois coelhos com uma só cajadada.
- Pensei que em Brasília só houvesse capiau, mas vejo que sob esse casco existe luz, embora desesperada. Qual o teu plano, quelônio?
- Você não poderá se esconder aqui. Sempre ficaria à vista uma manopla...
- Hum, tu és um bicho de casco bem-humorado.
- Que história é essa de bicho de casco?
- Gosto de cozinhá-los vivos.
Boca de Sacola sentiu um calafrio. Precisava se livrar daquele canibal.
- Ouça - disse a Cara de Catarro. - Você vai embora. O jornalista vem. Sei como obter dele o paradeiro da sua filha e dos diamantes. Então entro em contato com você e vamos buscar Ana Carolina e as pedras.
Cara de Catarro sorria o tempo todo.
- O que tu ganharias com isso, muçuã?
- Uma pedrinha.
- Vou descer e ficar esperando o carumbé chegar, e ficarei lá embaixo até o capitari escafeder-se. Então subirei. Se tu armares qualquer coisa que ponha minha dignidade em perigo vou te arrancar o casco, compreendeu bem, jabota? Tu podes fazer o que quiser, inclusive chamar a polícia, mas eu te pegaria, te impalaria e te poria numa churrasqueira. Além do mais, a polícia está apenas fazendo rapapé. Eles não têm interesse em me pegar. Mas se tu descobrires onde estão a franga e os diamantes uma pedra será tua, pitiú. - Disse isso e foi embora.
Pouco depois da meia-noite Isaías Oliveira chegou. Notou imediatamente uma ponta de maconha no cinzeiro. A ponta não tinha batom. Boca de Sacola olhou-o nos olhos e perguntou pelos diamantes.
- Cara de Catarro esteve aqui, não é? - Isaías perguntou-lhe.
- Esteve - ela disse. - Estou com medo de morrer. Ele quer que eu descubra onde estão sua filha e os diamantes. Garantiu que se eu denunciá-lo vai empalar-me e pôr-me numa churrasqueira. Está lá embaixo. Viu quando você chegou. Tive de dizer que você viria para cá, com medo de que ele me matasse logo. É melhor você não descer. Cara de Catarro disse que a caçada policial a ele não passa de uma farsa. Temos de atraí-lo para uma cilada. Depois que você descer, ele subirá novamente. O que farei?
Isaías Oliveira estava pensando. Desceu dali a meia hora. Havia bastante movimento no bar. Pegou sua caminhonete e zarpou. Depois retornou até um ponto de onde podia observar a fachada da casa de Elza Ladrona. Desceu do carro e entrou novamente no bar, a tempo de ver Cara de Catarro subindo as escadas. Parecia um grande sapo. Poderia aproveitar para matá-lo. Poderia alegar legítima defesa. E se Cara de Catarro o matasse? Seria melhor esperar. Tudo correria bem. Já sabia que o delegado Capivara morrera sob encomenda. Dali a alguns anos a população já teria esquecido os crimes de Cara de Catarro e seu processo estaria arquivado. Aquilo era terra de ninguém.
Naquele momento, Boca de Sacola conversava com Cara de Catarro.
- Ele tem os diamantes, mas não os trouxe para Belém. Estão no Marajó. Está apaixonado por mim, mas é uma pessoa muito cautelosa, pois não disse onde exatamente estão as pedras. Ele disse que vamos amanhã pegar as pedras.
Cara de Catarro deu um rugido: - Estou perdendo a paciência com esse ladrão pedante, e contigo também, peremosa, mas sou PhD em inteligência emocional.
- Eu também não vejo a hora de pegar meu diamante. Escute aqui: vamos no iate do jornal onde ele trabalha, até Ponta de Pedras. De lá, seguiremos de búfalo para o noroeste, onde fica a Reserva Biológica de Marajó - disse Boca de Sacola.
- Ele deve ter dado os diamantes para um jacaré guardar. Lá só tem jacaré - Cara de Catarro interrompeu-a.
- Disse-me que é um caboclo de uma cidade chamada Cachoeira de alguma coisa que guardou as pedras.
- Cachoeira do Arari?
- Isso. É um caboclo a quem ele confiaria a vida.
- Que conversa é essa, tartaruga? É mais fácil ir direto de barco para Cachoeira do Arari.
- Sim, mas esse caboclo não mora em Cachoeira de alguma coisa, mas no mato, mesmo. Então é só você nos seguir. Ele disse que largaremos na maré da madrugada. O iate vai sair do Ver-O-Peso.
- E a muçuã?
- A o quê?
- Muçuã! É um bicho de casco, mas refiro-me ao meu grande amor Ana Carolina. Onde está?
- Isso ele não disse.
Cara de Catarro puxou sua pistola.
- Tua boca será pequena para tanto chumbo, quelônio, a menos que tu vomites por este teu esgoto largo o paradeiro da minha perfumada amiga.
- Calma, Cara. Antes de irmos, ele vai ter com a filha. Basta você segui-lo. Isaías Oliveira foi dormir. Hoje cedo, segundo me disse, vai até a filha.
- Hum, escaravelho, bem pensado. Agora, lembra-te de uma coisa: se tu estiveres mentindo, vou te pirocar a periquita. Agora, tatu, reza para que não haja falha alguma - disse Cara de Catarro, escafedendo-se a seguir.
Às cinco horas, Isaías Oliveira deixou a casa de Batista Campos. Sabia que Cara de Catarro o seguia. Logo estava na Belém-Mosqueiro. Preparara uma recepção para Cara de Catarro.
A Companhia de Pesca Maré Alta ficava ao sul da Praia do Areão, numa península de onde se vê a ilha Caratateua, mais conhecida como Outeiro, ao norte de Belém. Mais ao norte, fica a grande ilha de Mosqueiro. A residência de Todo Feio fora construída no mesmo terreno da Maré Alta. Era grande e no quintal havia um pomar. Ana Carolina ocupou um quarto no segundo andar da casa; dava para o pomar. Uma longa e estreita estrada de chão ligava a companhia à Rua Nossa Senhora do Ó, e esta à Avenida Beira Mar.
Naquela noite, Isaías Oliveira escondeu-se no pomar, com uma carabina e a Luger. Todo Feio ficou no quarto de Ana Carolina; e Jacaré, na varanda à entrada da casa. Jacaré era um caboclo das bandas do Baixo Tocantins, ali por Igarapé-Miri ou Abaetetuba. Adorava o mato, especialmente nas noites de verão, quando chove estrelas, os insetos enlouquecem e os jasmineiros umidecem de perfume o vento. Lembrava-se de quando era criança. Uma noite, assombrado, viu pelas frestas da palafita um boto transformar-se em homem e entrar na casa, e ouviu os gemidos altos da sua irmã, com quem tinha ficado em casa, pois os demais haviam ido pescar. De modo que seu sobrinho, o Dico Boto, era filho de boto. Um carapanã picou-o no cogote. Jacaré moveu apenas o braço direito, pois não queria perder a muriçoca, mas alguém matou-a antes dele, e matou-o também, tão potente foi a cacetada. Cara de Catarro avançou. A porta da frente estava trancada. Retrocedeu até o cadáver e revistou-o. Encontrou a chave. Entrou na casa.
Todo Feio resolvera dar uma olhada no andar de baixo. Estava inquieto. Foi até a cozinha. Apanhou o púlcaro e serviu-se de um pouco de água do pote. Depois entrou na privada. Cara de Catarro acompanhou todos os movimentos de Todo Feio. Quando Todo Feio entrou na privada, Cara de Catarro subiu as escadas. Não fazia barulho porque o chão era de alvenaria e seus sapatos tinham sola de borracha.
Ana Carolina dormia. E não acordou, pois Cara de Catarro deixou-a inconsciente aplicando-lhe no nariz um lenço encharcado de quelene.
Todo Feio se limpou. Afivelou o cinto, lavou as mãos, pegou a doze e subiu. Quando notou a ausência de Ana Carolina correu à janela e atirou para o alto. Isaías Oliveira correu para a casa.
Horas depois, Cara de Catarro embarcava no Nossa Senhora do Perpétuo Socorro com uma saca de serapilheira às costas, onde carregava no mínimo um porco. Sedara Ana Carolina. A maré estava vazia. Era preciso esperar para zarpar. Já amanhecendo, ligou para o celular de Isaías Oliveira e conversou com ele.
Isaías Oliveira tomou uma série de providências, entre as quais conversou longamente com Boca de Sacola. Como o iate Nossa Senhora de Nazaré estivesse atracado no cais do porto, Isaías Oliveira zarpou antes da maré, com destino a Ponta de Pedras. Procurava não pensar em nada, mas sua memória era um câncer criando vasos nutrientes.
***
O acordo entre Isaías Oliveira e Cara de Catarro era o seguinte: manteriam um encontro na enseada defronte de Ponta de Pedras. Cara de Catarro iria de ubá com Ana Carolina até o meio da distância entre os dois iates. O mesmo faria Isaías Oliveira, levando os diamantes. “Tu não me enganas, jabuti, confio em ti” - Cara de Catarro dissera a Isaías Oliveira. E agora estavam face à face. Ana Carolina passou para a ubá de Isaías Oliveira e abraçou-o.
- É emocionante, mas agora passas-me os diamantes, matamatá - disse Cara de Catarro, apontando uma doze para Isaías Oliveira.
De repente, Boca de Sacola surgiu de debaixo de uma lona no fundo da ubá de Isaías Oliveira com um quarenta e cinco na mão e atirou em Cara de Catarro, alvejando-o no pescoço. O tiro pegou-o de raspão, mas ele caiu n’água.
- Sou campeã com quarenta e cinco. Quietinho, crocodilo - disse Boca.
Isaías Oliveira pegou a Luger e ficou esperando Cara de Catarro emergir. Cara de Catarro era um verdadeiro búfalo ao mergulhar. Surgiu como um jacaré, rente ao casco da ubá. Viu a mão de Boca de Sacola empunhando o quarenta e cinco, e agarrou seu pulso, puxando-a consigo e desaparecendo na água barrenta. O jornalista não teve outra alternativa senão voltar para o Nossa Senhora de Nazaré. Minutos depois atracaram em Ponta de Pedras. Neste momento o celular tocou.
- Tua amiga peremosa será servida aos jacarés. Viva, é claro. Ela bem que tentou salvar o casco e me cochichou algo interessante: os diamantes estão com aquele teu amigo maluco que vive em Cachoeira do Arari, naquilo que ele chama de Museu do Fim do Mundo. Sei que ele vive isolado de tudo e não poderá ser avisado da minha gentil visita. Vamos ver quem chega lá primeiro? - e Cara de Catarro desligou o telefone.
Saindo de Ponta de Pedras e tomando a baía de Marajó, depois seguindo pela enseada que separa o município de Ponta de Pedras de Cachoeira do Arari, o viajante se depara com uma região de campos, que viram pântanos no inverno. Baricão do Marajó vivia ali, entre Cachoeira do Arari e o povoado de Carcará do Arari, numa cabana a que ele chamava de Museu do Fim do Mundo. Baricão do Marajó fora um bem-sucedido ourives, garimpeiro, geólogo autodidata, especialista em pedras preciosas. Mas sua mulher o levara literalmente à loucura. Era uma mulher excessivamente sensual, e infiel. Fugiu com todo o ouro e pedras preciosas que Baricão do Marajó juntara em três décadas. Para anestesiar a dor de corno, Baricão do Marajó começou a beber até chegar à sarjeta. Isaías Oliveira estendeu a mão para o abismo. Baricão do Marajó segurou-a e saiu de lá. Mas já era tarde. Somente parte de Baricão do Marajó fora salvo. Mudou-se para aqueles ermos e começou a colecionar peças de cerâmica que encontrava. Baricão do Marajó era amigo de infância de Isaías Oliveira, que jamais conhecera pessoa tão honesta. Quando Isaías Oliveira esteve lá com ele, para examinar os diamantes, não teve dúvida de deixar as pedras com Baricão do Marajó.
Ana Carolina foi despachada para Belém no iate do jornal. De Belém, Zeca do Marajó levou-a para Mosqueiro. Agora, era correr para ver quem chegaria primeiro ao Museu do Fim do Mundo. Cara de Catarro levava a dianteira.
Em Cachoeira do Arari, Isaías Oliveira alugou um búfalo e pôs-se a caminho na direção de Carcará do Arari. Esperava alcançar a casa de Baricão do Marajó à noite. Baricão do Marajó era um gigante tão grande quanto Cara de Catarro, de modo que quando este chegou ao casebre Baricão do Marajó não se intimidou.
- Oi, cunhado! - disse-lhe Cara de Catarro. - Vim da parte de Isaías Oliveira. Vim pegar os diamantes.
- Pois, não, mano. Desmonte desse búfalo e vamos tomar um café.
- Tenho pressa, cunhado. O jornalista vai entregar os diamantes para a Receita Federal.
- Por que o senhor acha, mano, que vim morar aqui nestas brenhas? É porque não tenho pressa para nada. O café já está pronto. Qual é sua graça, mano?
- Sou o rei dos quelônios.
- Mas o senhor, mano, não se parece com bicho de casco. Parece mais um rinoceronte branco.
- Tu és um capitari erudito, em, meu cunhado!
- Sou geólogo autodidata.
Baricão do Marajó foi até o quarto e saíu de lá com um saquinho.
- O café soube bem às minhas papilas viperinas. Agora sejamos objetivos... - disse Cara de Catarro.
Baricão do Barajó entregou o saquinho a Cara de Catarro, que o abriu e meteu nele a manopla, retirando-a com algumas bolinhas de gude.
- Filho da égua! - disse.
Baricão do Marajó sumira. Cara de Catarro pegou a doze e saiu da casa a tempo de ver Baricão do Marajó correndo em direção a um lago próximo. Cara de Catarro pôs-se no encalço dele. As pegadas iam até junto à água. A impressão que se tinha era de que Baricão do Marajó sumira no lago, de águas barrentas e paradas. Escurecia. Cara de Catarro estacionou à beira do lago. Depois avançou um pouco para dentro da água, atento a qualquer ruído. Só se deu conta do que estava acontecendo quando a sucuriju agarrou-o pelas pernas. Ele atirou em direção aos pés. Atirou de novo. Sentiu que o animal o largou e sentiu uma mornidão nos pés. Depois morderam-no na perna. Caíu na água e foi aparado por um cardume de piranhas famélicas. Berrou. Suas mãos seguraram institivamente um pau. O pau içou-o para o barranco. Os pés de Cara de Catarro, dentro das botas em frangalhos, pareciam nadadeiras de tartaruga, parcialmente comidas por piranhas.
- Quase a sucuri e as piranhas jantam o senhor, mano - disse Baricão do Marajó. - Vou levar o senhor para casa. - E pôs Cara de Catarro sobre os ombros, levando-o, devagar, para a palafita, onde encontraram Isaías Oliveira.
Escurecera de todo. Os lombos negros dos búfalos brilhavam à luz da lua cheia, pastando próximo à palafita. Isaías Oliveira acendeu uma lamparina. Examinou as feridas de Cara de Catarro. Os dois tiros rebentaram os pés dele e as piranhas fizeram um estrago no seu corpo. Cara de Catarro olhou para o que restava dos seus pés. Estavam feios como o diabo. A chumbada da doze esmigalharam-nos. A sucuriju talvez tenha saído com alguns arranhões apenas, porque a chumbada estava ali, naquelas nadadeiras .
Era preciso esperar o amanhecer. Isaías Oliveira sentou-se num banquinho, degustando o café que Baricão do Marajó lhe deu, e depois pôs-se a fumar um Hilton. Cara de Catarro estava quieto. Eram nove horas e sete minutos. Isaías Oliveira cochilou. Sonhou que Cara de Catarro levantava-se, apanhava a doze das suas mãos e disparava a arma. A chumbada pegou-o no ombro esquerdo, arrancando um pedaço. Cara de Catarro só conseguira dar aquele tiro, caindo morto a seguir.
Isaías Oliveira voltou a si; olhou desnorteado para o ombro, do qual Baricão do Marajó retirava escumilhas com uma pinça de ourives, e desmaiou novamente. Mais tarde, quando abriu os olhos, olhou para a pretura da noite. Sapos coachavam desesperadamente. Estaria morto? No inferno não deveria haver tanta paz como a que estava sentindo agora. Não ficara com raiva do azar. O azar pode cair sobre qualquer um. Afinal, Baricão do Marajó estava morto e Ana Carolina, viva, sob as asas de Todo Feio. O som das muriçocas despertou-o novamente. Lá fora, a gritaria diabólica dos insetos e batráquios davam um tom de loucura à noite.
- É melhor chamarmos o helicóptero do jornal - disse Baricão do Marajó.
- Perdi o celular - disse Isaías Oliveira.
Tirou os diamantes do bolso. Eram lindos de se ver, e valiam tanto! “Cara de Catarro ficou sem os diamantes e, graças a Deus, sem minha pequena Ana Carolina. Ficou sem nada; apenas com nadadeiras no lugar dos pés.” Sorriu. Baricão do Marajó deu-lhe água. “Nada é fácil, gratuito, ou justo. Tudo tem um preço. O preço da vida é acostumar-se da melhor maneira possível na prisão, e o preço da liberdade é a disciplina, pois a vida é uma prisão, mas se temos disciplina, de certa forma temos também o controle da prisão.” Escorregava na lucidez do delírio, um corredor viscoso e quente, como quando Ana Carolina morreu de parto da outra Ana Carolina. Sentia-se despencar, e sempre que tateava as paredes escuras da fossa escorregava cada vez mais para o ventre do abismo. “Já vivi quarenta anos, Cara de Catarro é um quelônio morto e Ana Carolina vive. Joguei muito bem.”
Assim que os primeiros indícios da manhã foram se insinuando, Baricão do Marajó pôs-se a caminho de Carcará do Arari. Os búfalos seguiam vagarosos, levando os três homens. Um deles ia na garupa, amarrado ao cavaleiro da frente. A búfala que os conduziam não tinha pressa. Era fim de julho. O céu da Amazônia, nas manhãs de julho, é límpido como um vidro limpo. Um avião cortou o céu, entre os urubus. Os búfalos desapareceram numa depressão, atrás das árvores, e a paisagem voltou a ficar parada no caldeirão da manhã.
Valparaíso de Goiás, 4 de maio de 1998/Taguatinga Sul-DF, 20 de junho de 1999