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quarta-feira, 16 de julho de 2025

Sou um outsider, um estranho no ninho. Aos 17 anos, saí do rebanho e peguei o rio e a estrada

Sou como aquele cavalo com remota possibilidade de vencer

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 16 DE JULHO DE 2025 – Comecei a escrever, frequentar rodas de intelectuais e intelectoides em bares, beber, fumar e frequentar a casa do poeta e cronista Isnard Brandão Lima Filho, pai da minha geração de escritores, aos 14 anos de idade, em Macapá/AP. Hoje, aos 70 anos, dessas atividades só continuo a escrever. Vivi em Macapá até os 17 anos, quando parei no quarto ano ginasial – hoje, ensino fundamental –, peguei o rio e a estrada e fui parar no Rio de Janeiro/RJ. Quatro anos depois, aos 21 anos de idade, em Manaus/AM, comecei a sobreviver como jornalista. Hoje, moro em Brasília.

Devido a este blog, tenho alguns leitores em Macapá, muitos dos quais antigos conhecidos meus, a maioria deles de Esquerda, fãs de Fidel Castro e de Lula da Silva. Eles sabem que sou de Direita e alguns me cobram isso, como se eu estivesse traindo seu ídolo, Fidel Castro. Por conta disso, como escritor, a academia (universidade) e as instituições de cultura do Amapá simplesmente me ignoram. Só sou sócio correspondente em Brasília da Academia Amapaense de Letras por conta do ex-presidente da AAL, Fernando Canto. Respeitado e influente, Fernando Canto pôs meu nome em votação e fui eleito, por unanimidade, o primeiro sócio correspondente da instituição.

Em Brasília, um dos mais queridos amigos meus, com quem passava horas conversando, me demitiu por e-mail, porque, na época, acho que 2019, escrevi que Lula fora enjaulado.

Tudo bem. Gosto de ser outsider, um estranho no ninho, sair do rebanho. Caminhar fora do rebanho é seguir o próprio caminho e não apenas seguir a multidão, pensar por si mesmo e não seguir as opiniões alheias, procurar viver com sabedoria e justiça e não seguir cegamente o pastor, como aconselha a Bíblia. Caminhar fora do rebanho é a busca por uma perspectiva individual, ser fiel a si mesmo, ainda que seja preciso remar contra a corrente.

Para o filósofo Friedrich Nietzsche, caminhar fora do rebanho significa desapegar-se da moralidade convencional e da obediência cega a normas sociais, religiosas ou culturais. Uma busca da individualidade, da autoconsciência e da criação dos próprios valores. Para Nietzsche, o indivíduo deve tomar consciência do que é e questionar os valores impostos, buscando seu próprio caminho. O Super-Homem (Übermensch) representa o homem livre dos valores do rebanho, onde não há individualidade nem criatividade, nem espírito crítico, o que leva à mediocridade.

Tenho sido um estranho no ninho. Sei disso. Não que queira mal a alguém. Não. É porque me sinto bem comigo mesmo. Gosto da companhia dos outros. Sou daqueles que quando encontra alguém com interesses semelhantes aos meus converso durante horas. Desde cedo percebi que sou outsider, ou seja, um indivíduo que não pertence a um determinado grupo; no turfe, trata-se de um cavalo com remota possibilidade de vencer. É o meu caso. É claro que todos nós, escritores, desejamos, ardentemente, pagar as contas com dinheiro proveniente da venda de nossos livros, mas se tornar um escritor conhecido é como jogar no outsider.

Porém, curto minha vida do modo como dá. Mas sou feliz, porque sou fiel a mim mesmo. Minha igreja sou eu; oficio a missa, como a hóstia e bebo o vinho.

Isso eu sempre fiz. Curto adoidado. Também levo a vida com estoicismo. Nunca reclamo. Se alguém me ouvir gemer é porque estou à morte. Em 13 de novembro de 2019, sofri um infarto, mas consegui chegar andando no hospital e logo depois desmaiei. Também peguei o vírus chinês, várias vezes. Vivo tão loucamente, desde que nasci, em 7 de agosto de 1954, que não sei como ainda estou vivo. Aos 14 anos, chegava a desmaiar de tanta cachaça. Só não morri bêbedo porque há anjos que me salvam.

É claro, se me salvam é porque há uma razão para isso. Nada é por acaso. Hoje, como disse, não bebo mais; nem Cerpinha enevoada no sétimo andar de um hotel cinco estrelas.

Mas adoro ler. Desde os cinco anos de idade. Recentemente, li O Outsider – Minha Vida na Intriga, de Frederick Forsyth, que fez todo tipo de coisa que achou importante para ele mesmo, e sempre teve apoio do seu pai. Meu pai era ainda mais outsider do que eu, mas recebi dele coragem, aquele tipo de coragem que chega a ser ingênua; disciplina para trabalhar e responsabilidade para procurar, de alguma forma, defender os mais fracos. Meu pai também lia muito.

Na estrada, encontrei muita gente interessante. Quando somos jovens – jovens são sempre belos e imortais – todos querem ajudar, especialmente as mulheres. Assim, fui amado por deusas. Também encontrei homens que me apontaram algumas portas, que me ensinaram alguns truques e me ajudaram a entender uma coisa: ser outsider é chegar ao poder de oficiar a própria missa.

O outsider que vive em mim sente o perfume dos jasmineiros chorando nas tórridas noites de Macapá, ouve sons que vêm do Caribe e vislumbra uma negra de olhos verdes sob um vestido de seda branca – elas surgem assim, para mim, e tudo o que tenho a fazer é pô-las nas minhas histórias.

Às vezes, percebo vultos se movendo perto de mim; sei que são mortos; estão aqui para me ajudarem, para me apontarem a direção a tomar, o rumo que devo seguir, orientam-me na minha nova profissão de terapeuta, monge taoísta, iniciado em Medicina Tradicional Chinesa. Quanto ao jornalismo, faço como todo mundo; hoje, a comunicação social é pessoal e global ao mesmo tempo.

Forsyth viveu da intriga internacional. Foi jornalista até descobrir que tinha nas mãos material de primeira categoria para criar suas histórias, e foi o que fez. Britânico, cedo aprendeu também francês e alemão, e depois espanhol e russo, esteve em muitos lugares interessantes e conheceu muita gente influente. Isso fez dele um outsider de sucesso. Todos nós somos o que somos e temos o que conseguimos obter. Quanto a mim, recebi dos deuses as antenas que me conectam com o astral.

Posso ser o cavalo no qual ninguém aposte, que participa da corrida para fazer número, que está destinado a produzir sêmen ou virar charque, mas ainda estou no páreo, e no meu próprio caminho.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

A eternidade surge aos 70 anos, no outono

Josiane Souza Moreira Cunha, Ray Cunha e Iasmim Moreira Cunha Morya

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 15 DE MAIO DE 2025 – Meu amor e eu tomamos café, hoje, na Biscoitos Mineiros do Sudoeste, na Quadra 304, Bloco C, um local muito distinto. Eu havia tomado café às 4h30, antes de começar a escrever. Atualmente, trabalho no terceiro volume de uma trilogia. Já publiquei O CLUBE DOS ONIPOTENTES e O OLHO DO TOURO. O atual volume será concluído em 2026. De modo que na Biscoitos Mineiros não comi muito, apenas uma empada de camarão, uma torta de nozes e café médio. Tudo de primeira categoria. Meu amor comeu uma empada e um quiche de camarão, uma torta de morango, chá de frutas vermelhas e suco de laranja.

Comemoramos, hoje, 37 anos de namoro. Certa tarde, em 15 de maio de 1988, levei-a ao cinema. Ela tinha 19 anos e eu, 33. Era uma menina. Fomos ver, no cinema que havia no Conjunto Nacional, Cine Márcia, O Último Imperador da China, de Bernardo Bertolucci.

Outro dia, conversando com meu amigo Marcos Machado, na Pães e Vinhos, na 103 do Sudoeste, que é o bairro onde moro, lembramos que quase todos os nossos velhos companheiros de redação e parentes mais próximos estão mortos ou dementes, e lá estávamos nós, conversando sobre os editores virtuais do Clube de Autores e da Amazon, sobre livros que pretendemos publicar, sobre a língua portuguesa, sobre café.

E aí, pensando, hoje, descobri que não envelhecemos, nem morremos. A vida, ou consciência, é eterna. Apenas algumas pessoas demoram a descobrir os caminhos que levam à eternidade. A passagem da infância para a adolescência é um desses caminhos. É preciso que o descubramos, senão viramos Peter Pan, até descobrirmos o caminho, o que é inevitável, mas pode demorar bastante.

Aí, vem a passagem da adolescência para a vida adulta. Outro caminho. Na velhice é que fazemos as maiores descobertas. Mas as descobertas da velhice são, geralmente, mais difíceis. Fáceis quando lemos muito, quando damos asas à nossa criatividade e descobrimos que podemos voar como as aves, e daí para montar a luz é um passo, e mergulhar no azul e viajar no éter, para as estrelas de outras galáxias.

A morte é outra passagem. Na morte, nossa consciência se manifesta em uma dimensão que transcende a matéria e o tempo, até chegar a um estado em que podemos ascensionar para uma dimensão quântica. De modo que nunca morremos. Quem morre são corpos.

A consciência encarnada é composta de espírito e mente. A mente, por sua vez, é composta por corpos. Existe o corpo físico e o ego. O ego é a personalidade do indivíduo. E há os corpos sutis, que compõem a aura, ou campo energético que envolve o corpo físico. O corpo etérico, ou cordão de prata, liga o corpo físico ao corpo astral, que é o corpo das emoções.

Tudo isso descobri neste outono, aos 70 anos, ao lado da minha amada. Como disse, ela era uma menina quando a descobri, e continua sendo uma menina no meu coração. Quando a conheci, eu não enxergava nada além do meu nariz e ao lado dela fiz tantas descobertas que fico tonto só de pensar nisso.

Jamais quis ser dono dela e ela também não é minha dona. Apenas, como toda mulher, como toda mãe, vê seu homem como um filho especial, aquele que precisa de mais cuidados. Basicamente, nós dois apenas gostamos da companhia um do outro, mesmo em silêncio. Gostamos de conversar. Conversamos sobre tudo. E somos leões quando se trata da nossa princesa, de casa.

Este ano, o outono está mais frio do que em outros anos. Quando cheguei a Brasília, em 1987, punha casaco quando fazia 21 graus. Agora, quando faz 17 graus, uma camisa de mangas compridas basta. A gente vai se acostumando. Se a temperatura cai para 14 graus, aí uso meu casaco azul, quente, que comprei a Expotchê, uma feira anual que os gaúchos realizam em Brasília. De madrugada, quando me levanto para escrever, uso um casaco surrado.

Gosto de todas as estações do ano. Observo-as e comparo-as, a cada ano, e, se viajo, observo também as estações do ano em outras localidades. Adoro geografia. Mas, em Brasília, gosto mais do outono e do inverno, quando a temperatura é, quase sempre, agradável. Há invernos mais frios, que exigem que usemos meias grossas em casa.

Adoro a vida. O pintor Olivar Cunha observou que a vida é um tesão. Também acho. O escritor e compositor Fernando Canto, que era como um irmão para o Olivar e eu era outro que vivia intensamente. Viver intensamente é viver agora. O Fernando Canto já partiu para o azul. Segundo o médium e astrofísico Laércio Fonseca a vida no astral é mais sofisticada do que aqui, no mundo físico. É mais poética.

Hoje de manhã descobri, aos 70 anos, que, na minha vida, não há ontem nem amanhã, só agora se eternizando. A música que ouço é o som do éter, azul por toda parte.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Criar é preciso, fazer sucesso não é preciso

Ray Cunha na lente do artista plástico André Cerino (Brasília/DF - 2013)

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 28 DE DEZEMBRO DE 2024 – Deus existe? Por que existimos? O que é o Universo? Tudo isso seria imaginação? A mente humana não tem capacidade para responder a essas perguntas. A vida é um mistério. Mas há sentimentos que nos impelem a seguir, como alegria, amor e criação. 

Alegria é o próprio prazer de viver e de curtir tudo o que a vida nos oferece, mas só é possível haver alegria em uma atmosfera de amor. O que é amor senão o bem, a ordem, a luz? E como tudo o mais na vida, o amor deve ser aprendido e desenvolvido. 

O psicanalista, filósofo e sociólogo alemão Erich Fromm disse: “O amor é uma atividade e não um afeto passivo; é um erguimento e não uma queda. De modo mais geral, o caráter ativo do amor pode ser descrito afirmando-se que o amor, antes de tudo, consiste em dar, e não em receber”. 

Amor costuma ser confundido com paixão, apego, mas o amor não prende; liberta. Não mata; salva. Não se apossa; é absolutamente livre. 

Segundo o filósofo japonês Masaharu Taniguchi, fundador da Seicho-no-Ie: “Quando a sua vida cotidiana é regida pelo amor, o homem vivifica a si mesmo e também as pessoas arredor. Isso porque amor é vida”. 

O filósofo holandês Baruch Espinoza diz que o amor é o elemento que conduz ao mais elevado grau de conhecimento e determina o estado de felicidade ou de tristeza. E para o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung “o amor é como Deus: ambos só se oferecem a seus serviçais mais corajosos”.

Acredito que realizar o bem e a ordem, e caminhar para a luz com a criatividade, geram alegria. Criar é imaginar, inventar, elaborar conceitos, produzir coisas inéditas, renovar-se constantemente, descobrir novas percepções da realidade, potencializar o que já se sabe, expandir a mente, estimular a curiosidade científica, desenvolver o pensamento crítico, aprender coisas novas, encarar os desafios como oportunidades, deixar a mente vagar nos livros, nos mapas, no Cosmos. 

O que me impulsiona é o ato de criar. Isso começou no quarto do meu irmão mais velho, Paulo Cunha. Poeta, leitor inveterado, o quarto dele, que chamávamos de Quartinho, na Casa Amarela, a casa da minha infância, era cheio de livros, revistas e gibis. Até hoje sonho com o Quartinho. 

Antes dos 5 anos, quando me foi permitido entrar no Quartinho e folhear as revistas e os gibis, todo um universo se descortinou na minha mente. Tornei-me, então, um ser todo poderoso naquele universo divino. Aí, deparei-me com as palavras. Eu precisava decifrar as letras e saber o que diziam, pois diziam sobre o universo que acabara de descobrir. 

Foi assim que aos 5 anos, movido pela urgência da leitura e auxiliado pela minha mãe, Marina Pereira Silva Cunha, conquistei, definitivamente, o mundo que acabara de descobrir. 

Aos 9 anos, produzi literatura epistolar, alinhavei uma carta à minha mãe, que viajara de Macapá/AP a Belém do Pará; nessa cartinha, falei do sofrimento que a separação me causou. Aos 13 anos, escrevi um poema para a musa da minha geração, a poeta Alcinéa Maria Cavalcante. Ela não tomou conhecimento do poema, mas o poema em si contemplava todas as minhas expectativas. Aos 17 anos, publiquei, juntamente com os poetas Joy Edson e José Montoril, XARDA MISTURADA. Nunca mais parei de escrever. 

Sucesso? Refiro-me a sucesso de vendas. Não é importante. Se acontecer é maravilhoso. Mas não é o mais importante. Acho, ou melhor, sinto, que o importante é criar. Já me deito com a perspectiva de me levantar de madrugada para criar, para me encontrar com personagens de ficção, mulheres estonteantes, homens de ação, santos e assassinos, iluminados e loucos. Nesse universo, frequento cidades que descobri no mapa e me hospedo em hotéis como o Copacabana Palace. 

Assim, é construindo todo um universo que viajo em uma nave quântica, domo leões de asas e chego ao fim do mundo, o infinito.  

Certa vez, perguntaram-me: Por que escreves?

– Para ofertar rosas para a madrugada. Para viver – respondi. – Pois só com as palavras desnudo a luz e voo até o fim do mundo. Por isso, escrevo granadas intensas como buracos negros e garimpo o verbo como o primeiro beijo. Escrevo porque escrever traz aos meus sentidos cheiro de maresia, Dom Pérignon, safra de 1954, o labirinto do púbis no abismo do acme, mulher nua como rosa vermelha desabrochando.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Gato Azul. A identidade amapaense

Fernando Canto e Ray Cunha: a vida é uma grande farra

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 2 DE DEZEMBRO DE 2024 – Até a virada do milênio, Brasília era uma cidade do interior. Quando cheguei, aqui, em 1987, ainda estava em construção. Juscelino Kubitscheck começou a construí-la e Joaquim Roriz terminou a obra. Até os anos 1990, se precisássemos de algum produto sofisticado, tínhamos que aguardar uma semana até chegar de São Paulo. Brasília era o quintal de São Paulo. 

Naquela época, nos feriadões, a cidade ficava parecendo um cemitério. Grande parte da população se mandava para suas cidades natais, especialmente no litoral. O brasiliense era chamado de candango, aquele que veio para construir a cidade e ficou. Não havia, ainda, muitos brasilienses. A população vivia em colônias. Colônia dos cariocas, dos mineiros, dos goianos, dos paulistas, dos gaúchos etc. Havia poucos amazônidas. Amapaenses, então, eram raros. Quando eu me apresentava como amapaense virava atração de circo. 

Lembro que na época escritores, intelectuais e jornalistas tentavam criar uma identidade brasiliense, identificando, como elementos, por exemplo, rock and roll, “véio”. Artistas e agitadores culturais achavam que já havia uma literatura brasiliense. Mas Brasília não tinha identidade, ainda. 

Hoje, Brasília já é a terceira maior cidade do país, a terceira praça gastronômica, a mais cara, os brasilienses são a maior parte da população e todo mundo presta atenção na cidade, devido à Praça dos Três Poderes. 

Nos meios literários, há quem fique tiririca quando alguém diz que aqui não há escritores dos bons; defendem que aqui há gente tão boa quanto os monstros sagrados do país, mas ainda não surgiu um romance que todo mundo leia e diga: isto é Brasília. 

Conheço pessoas que viajam e são atacadas com perguntas: estão roubando muito? A resposta é sempre: sim, o pessoal que vocês mandaram para lá. Fora isso, os brasilienses são como qualquer cidadão desta grande república das bananas. Estão lutando para sobreviver, contra o arrocho fiscal, arrocho salarial, falta de vaga de trabalho, inflação, violência desenfreada e mordaça. 

O brasiliense que sai à luta todas as manhãs vive às voltas com carestia e falta de perspectiva, uma longa noite acordado à espera de picanha, desde 2023. Deu para cochilar um pouquinho de 2019 a 2022, mas agora a coisa arrochou para valer. 

A identidade é a cultura que recebemos na infância e adolescência. Vejam o caso do escritor Ruy Castro. Ele nasceu em Caratinga/MG, mas passou sua infância e adolescência mais no Rio de Janeiro do que em Caratinga, e, aos 17 anos, ficou de uma vez no Rio. Sua memória se alicerça no Rio. É o mais carioca dos cariocas. Então, a identidade é moldada pela memória da infância e adolescência. 

Outro caso é o do poeta, contista, ensaísta e compositor Fernando Canto, que nasceu em Óbidos/PA, mas migrou ainda criança para Macapá. Foi o mais macapaense dos amapaenses. Macapá é a capital do estado do Amapá, no setentrião do litoral brasileiro, na Amazônia. 

Fernando Canto escreveu três dos mais emblemáticos ensaios sobre a cultura amapaense: Literatura das Pedras – A Fortaleza de São José de Macapá como locus das identidades amapaenses (doutorado); Fortaleza de São José de Macapá: Vertentes discursivas e as cartas dos construtores (mestrado); e Água Benta e o Diabo, sobre a maior manifestação folclórica do Amapá, o marabaixo. 

Outro dia, o poeta e cronista amapaense Edevaldo Leal referiu-se a mim como brasiliense nascido em Macapá. Aí, disse-lhe, brincando, que sou caboco tucuju. Os tucujus eram uma etnia que viveram no Brasil-colônia, onde hoje é Macapá. É claro que ele sabe que sou nada mais do que um caboco de Macapá; apenas quis dizer que moro em Brasília. Edevaldo Leal foi o primeiro escritor a me orientar nas trilhas da escrita. Eu tinha 14 anos e ele, também garoto, mas um pouco mais velho do que eu, já era então jornalista e cronista. 

Não sei como será agora que Fernando Canto partiu para o azul. Quando eu ia a Macapá, quase não nos separávamos. Passávamos o dia vagabundando no carrão do Fernando, que eu chamava de 007, comendo e bebendo; entrávamos pela noite e nunca parávamos de conversar, sobre tudo. Podíamos conversar sobre qualquer coisa: literatura, pintura, música, mulheres, bebidas, geopolítica, ETs, qualquer coisa. Agora é curtir o que ele escreveu. 

Ser macapaense, e poeta, é comer mapará assado na brasa com pirão de açaí, ouvir merengue e tomar tacacá quando a tarde está morrendo, beber Cerpinha, comer camarão pitu, sentir o perfume dos jasmineiros chorando e ficar ainda mais embriagado, e ofertar rosas para a madrugada. 

Eu era garoto e às vezes passava pelo Gato Azul e ficava olhando aquela fauna bebendo. O Gato Azul foi o bar mais emblemático da minha memória macapaense. O simples ato de ficar olhando para o pessoal bebendo inflamava minha mente de futuro escritor. Ficava imaginando a vida de cada um, os locais inimagináveis que conheciam, suas experiências, seus mundos. 

O Gato Azul era como Macapá em miniatura. Então, fiz o seguinte, recriei-o no meu romance JAMBU, modificando sua arquitetura e enchendo-o de personagens de ficção. Segue o trecho.

O GATO AZUL, na Rua São José com a Avenida Presidente Vargas, estava sempre lotado. Fechado por vidraças que permitiam visão apenas de dentro para fora, com temperatura ambiente de 21 graus e variedade internacional de bebidas, o bar constituía-se no melhor refúgio da cidade. Era possível encontrar nas suas confortáveis cadeiras de palinha e poltronas, de senador da República a contrabandistas e traficantes. Jornalista, então, dava no meio da canela. João do Bailique gostava de passar por lá geralmente naquele momento de transição entre a tarde e a noite, procurava a extremidade sul do balcão e pedia diretamente ao barman, Antônio, um “espilantol”. Era como denominava o daiquiri, coquetel cubano feito com rum, suco de lima, açúcar ou xarope e gelo picado, agitados na coqueteleira e servido em um copo grande; o de Bailique lembrava um pouco o Daiquiri Hemingway, ou Papa Doble, criado no Bar Floridita, em Havana, Cuba, especialmente para o escritor americano Ernest Hemingway, que morou em Havana boa parte de sua vida; Papa era diabético e seu daiquiri não continha açúcar, e era servido com o dobro de rum, Bacardi. Além disso, o de Bailique era com suco de limão. Antônio lhe estendeu a bebida e o jornalista deu o primeiro gole, e veio-lhe a velha sensação que lhe despertava o tacacá da Esmeralda, naquele momento em que a tarde morre, anestesiando o calor, perfume de jasmineiros se insinuando, e um remoto som de merengue. Bebeu mais um gole. A edição de agosto da Trópico Úmido já estava praticamente editada. Bailique vinha trabalhando, intensamente, na matéria da Operação Prato, que começara a tomar corpo após longas conversas com Danielle, intensa pesquisa e uma entrevista com o escritor Jorge Bessa. Estava investigando ângulos da Operação Prato que não foram abordados pela mídia: Existem mesmo ETs? Se existem, quem são, de onde vêm? Por que se interessariam pela Amazônia? Estariam os ETs emitindo sinais de que a Amazônia está guardada para um fim maior? Sabe-se que o Brasil é visto nos meios exotéricos como o país mais avançado em termos espirituais: abriga todas as grandes religiões do planeta, além das dos índios e as africanas; e é um cadinho étnico. E a Amazônia, a maior floresta tropical do globo, a maior diversidade biológica da Terra, a maior província mineral do planeta, é a última fronteira, ambicionada por todos e sugada até o osso pelos governos que se sucedem em Brasília.

JAMBU, na edição da Amazon: A Amazônia completamente nua

domingo, 24 de novembro de 2024

Fluxo de consciência em A CASA AMARELA, que o portal UOL classificou como o romance que melhor representa o estado do Amapá

Esta seringueira continua de pé, ao lado do Colégio Amapaense, em Macapá. Em A CASA AMARELA (capa da edição da Amazon), ela tem sentimentos: agita-se sem vento algum e verte látex sem ferimento

Para o poeta e cronista Edevaldo Leal

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 24 DE NOVEMBRO DE 2024 – Fluxo de consciência é uma técnica literária criada pelo francês Édouard Dujardin, no livro Os Loureiros Estão Cortados, em 1888. Consiste em transcrever o pensamento de um personagem. Como se sabe, no pensamento não há tempo nem espaço, nem raciocínio, misturam-se emoções e sentimentos, consciente e inconsciente, realidade e lembranças, desejos e fatos. Um monólogo com o nada. Um quadro impressionista. 

Para o filósofo e psicólogo americano William James, o fluxo de consciência é um rio; o monólogo interior seria uma represa desse rio, que, adiante, volta ao seu fluxo. 

Marcel Proust, William Faulkner, James Joyce, Virginia Woolf, Samuel Beckett, John dos Passos, utilizaram essa técnica, bem como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Benedicto Monteiro. 

Édouard Dujardin descreve o fluxo de consciência como: “Discurso sem interlocutor e não pronunciado através do qual um personagem exprime seus pensamentos mais íntimos, mais próximos do inconsciente, anteriores a qualquer organização lógica, isto é, no seu estado original, por meio de frases diretas reduzidas à sintaxe mínima, de maneira a dar a impressão de não terem sido elaborados”. 

Na Amazônia, temos Dalcídio Jurandir. No seu livro mais emblemático, Chove Nos Campos de Cachoeira, publicado em 1941, o menino Alfredo sonha sair do Marajó e morar em Belém/PA, sonho que ele reparte com um caroço de tucumã, que é um coquinho da Amazônia. Os pensamentos de Alfredo são como um rio fluindo, lento, amazônico. 

Em contraste com Alfredo, seu irmão, Eutanázio, de 40 anos, é destituído de sonhos; não tem sequer um objetivo, nem sentido na própria vida. Vive em um mundo absurdo. Para completar sua miséria, a jovem Irene o despreza. Eutanázio é como um fantasma, de ectoplasma. Seria essa a matéria dos fluxos de consciência. 

Dalcídio lembra Faulkner. Enquanto Faulkner recria o sul dos Estados Unidos, mergulhado em sangue coagulado, espirrado da negrura do preconceito, Dalcídio apresenta uma Amazônia suja de lama, cabocos com a alma amortecida por cachaça, da mesma forma que seu doce linguajar silencia no amortecimento da língua pelo espilantol, o princípio ativo do jambu, a emblemática erva do tacacá, que é uma comida de origem indígena. Assim, o espilantol seria oura substância do fluxo de consciência, como neutrinos. 

Faulkner usou a técnica do fluxo de consciência ad nausean. De certa forma, Faulkner se parecia comigo. Era baixinho, media 1,65 metro, um centímetro acima de mim, e foi recusado pelo serviço militar americano. Eu fui recusado em Niterói/RJ, por falta de peso e pele inflamada pela poluição da cidade, pois passara minha vida em Macapá e estava em Niterói há pouco tempo. 

Foi demitido de uma livraria em Nova York porque lia em serviço. De volta a Oxford, trabalhou como agente dos Correios. Em um curto período da minha vida fui ajudante de carteiro nos Correios, em Copacabana. Certo dia, o gerente da agência onde eu trabalhava me flagrou em uma biblioteca pública que ficava próxima à agência, em horário de trabalho, e me fez uma advertência por ler em serviço. 

A transcrição do fluxo de pensamento para o papel na obra de Faulkner é um rio grande como o Amazonas, provavelmente o Mississipi. São longos parágrafos, longos períodos, com pontuação irregular. Isso exige, no mínimo, cumplicidade do leitor, além de muita concentração e mais ainda interesse, se não o leitor não irá adiante, pois já basta o fluxo de consciência dele mesmo. 

Gosto do fluxo de consciência. E acho, mesmo, que todo mundo gosta. Acho também que usei o fluxo consciência no romance A CASA AMARELA, o zeitgeist de Macapá/AP, minha cidade natal, especialmente nos anos de 1960. Mas, nesse romance, o fluxo de consciência é mais material do que pensamento, porque, nele, é apenas um estado da matéria, neutrinos, ectoplasma, como em Pedro Páramo, de Juan Rulfo. Talvez nem haja fluxo de consciência algum, nele. Apenas impressão.

A CASA AMARELA foi selecionado pelo UOL como o romance mais emblemático do Amapá. Você pode adquiri-lo no Clube de Autores, na Amazon ou na amazon.com.br

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Por que existimos, Fernando Canto, senão para amar? Deixaste os jasmineiros chorando

Ray Cunha e Fernando Canto no Aeroporto de Brasília
Juscelino Kubitschek (Foto de Sônia Canto - 2024)

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 29 DE OUTUBRO DE 2024 – Fernando Canto e eu nascemos em 1954. Ele, em 29 de maio; eu, em 7 de agosto. Ele sempre esteve à minha frente. Nossas famílias são oriundas do Baixo Amazonas, no Pará, a dele, de Óbidos, onde nasceu, e a minha, de Belterra. Ele foi criança para Macapá e eu nasci lá. Conhecemo-nos aos 14 anos, quando minha família foi morar no Morro do Sapo, sub-bairro do Laguinho, em uma casa a alguns metros da casa do Fernando. 

Na época, 1968, por aí, o Fernando, guitarrista e bastante afinado, já frequentava o meio musical, e eu frequentava a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho e me infiltrava nas rodas do pintor Olivar Cunha, dois anos mais velho do que nós, e pelejava em alguns poemas e crônicas. Acho que o Fernando também. 

Em 1971, publiquei, juntamente com os poetas Joy Edson (José Edson dos Santos) e José Montoril, o livro de poemas XARDA MISTURADA. O livro, exceto pelos poemas do Joy Edson, é apenas uma coletânea de poemas adolescentes, de descobertas, mas tínhamos, todos, 17 anos, e isso foi uma coisa histórica em Macapá. 

No começo do ano seguinte, ainda com 17 anos, peguei o rio e a estrada, e minha cota de XARDA MISTURADA, e fui parar no Rio de Janeiro. O Fernando Canto foi para Belo Horizonte e frequentou os meios musicais de lá, o pessoal que estava fazendo música. 

Em 1975, fui conhecer a família do meu pai, em Manaus, e lá comecei a trabalhar como jornalista, até 1977/1978, quando fui para Belém e comecei a trabalhar em O Liberal. O Olivar Cunha estava morando em Belém, assim como o Isnard e o Fernando, que cursava Ciências Sociais na Universidade Federal do Pará. 

Nessa época, o Fernando e eu bebemos bastante e batemos muito papo. Acho que o melhor conto do Fernando é ambientado nessa época, Os Tempos Insanos, que eu chamo de My Friend Mundico. 

Voltei para a estrada. Andei para lá e para cá, até 1982, quando minha inquietação baixou, acho que devido ao cansaço. Tinha interrompido meus estudos no quarto ano ginasial, o equivalente ao oitavo ano do ensino fundamental. Fiz o supletivo do então primeiro grau e passei, o supletivo do segundo grau, passei, o vestibular para Jornalismo na Universidade Federal do Pará e passei. 

O Fernando tinha se formado e ido para Macapá. Quanto a mim, graduei-me em 1987 e caí fora de Belém. Ia para o Rio, mas parei em Brasília para um papo com o jornalista Walmir Botelho, que me convenceu a ficar em Brasília, onde me encontro até hoje. 

Só que em 1996, a convite do Walmir, que era, então, diretor de redação de O Liberal, fui para Belém, trabalhar como repórter no jornal, e encontrei com o Fernando, que assumira o Núcleo de Arte da Universidade Federal do Pará e se tornara contista premiado. 

Em 1998, retornei para Brasília. O Fernando foi para Macapá, para ajudar na instalação da Universidade Federal do Amapá. Já era, então, o mais conhecido escritor amapaense. Compositor talentoso, fundara, em 1975, a mais famosa banda do Amapá, o Grupo Pilão, e foi presidente da Universidade de Samba Boêmios do Laguinho. Ainda nos anos 1980, começou a publicar livros de poemas, crônicas e artigos. A academia coroou seu trabalho. 

Escreveu, como tese de mestrado e de doutorado, as duas obras de maior fôlego sobre o Amapá: Fortaleza de São José de Macapá – Vertentes discursivas e as cartas dos construtores e Literatura das pedras – A Fortaleza de São José de Macapá como locus das identidades amapaenses. Em 2022, assumiu a presidência da Academia Amapaense de Letras (AAL). 

Aqui e ali vou a Macapá, onde sempre tive encontro marcado com Fernando Canto. Não consigo imaginar Macapá sem ele. Uma das vezes que estive lá, de 11 a 16 de janeiro de 2022, foi uma grande farra. O Fernando e eu estivemos juntos quase o tempo todo, vagabundando por toda a orla, até o Curiaú, e parando em restaurantes e bares da cidade. Na companhia do Fernando sinto a velha sensação de aventura, de novas possibilidades, de coisa nova. 

A realidade é infinita como a própria vida. Cada qual tem a sua própria realidade, assim como cada circunstância e cada local e horário têm realidade específica, de modo que a realidade é um labirinto infinito em sucessão e variação. A sensação de que só há uma realidade é que só nos encontramos em um determinado ponto desse labirinto e em determinado momento, de modo que aquele ponto e aquele momento criam a ilusão de que só há aquela realidade. 

De certa forma, isso se parece com a observação do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955), de que só é possível chegar ao entendimento ao superar as próprias circunstâncias, que estão, por sua vez, em permanente processo de mudança: “O homem é o homem e a sua circunstância”. Acho que, em suma, esta foi a conversa que tive com Fernando Canto, durante os quatro dias em que estive em Macapá, ora a bordo do carrão tipo James Bond do Fernando, ora em bares, ora ao telefone. 

Fui à Macapá para ver minha irmã Linda, mas, confesso, fiquei mais com o Fernando Canto. É que sempre tivemos muita coisa para conversar. Coisas que nunca terminam. O Fernando é meu amigo com quem viajo mais fundo, pois conversamos sobre tudo. Batemos muito papo durante esses poucos dias, aproveitando bastante o tempo. 

O Fernando me disse, então, que estava às voltas com seu romance. Vinha tentando escrever esse romance já há algum tempo. O problema é que ele ainda não havia encontrado a técnica certa para avançar. Estava escrevendo o livro linearmente. Aconselhei-o a não se preocupar com a linearidade, ir escrevendo os capítulos sempre que surgisse um gancho e só depois que sentisse que havia escrito tudo o que precisava escrever é que ordenaria os capítulos. Ele respirou aliviado. Os originais do que ele escreveu deve estar na biblioteca dele. Assim como sua pinacoteca. Na sua casa, há o maior acervo de trabalhos de Olivar Cunha. 

Eu me sinto personagem de ficção do Fernando, o Mundico dos Tempos Insanos, conto publicado inicialmente no livro O Bálsamo e Outros Contos Insanos, pela Editora da Universidade Federal do Pará, em 1995. 

My friend Mundico 

“Como vai, seu puto? Espero encontrar você como sempre, lúcido e saudável. Eu estou indo, me arrastando neste vale de adrenalina, sempre pensando na morte, nas coisas que deixei de fazer e querendo-e-não-querendo me matar. É que os acontecimentos às vezes me induzem a esse desatino. 

“Mesmo sem tempo para escrever e meio surdo pelo barulho vindo lá de fora, hoje, enfim, resolvi iniciar esta e lhe contar o que está acontecendo, talvez como registro deste tempo insano. Olha, é difícil para mim falar de tantas agruras num lugar onde tudo é inopinado, como lâmina a se movimentar no escuro e a cortar meu coração cheio de saudade. Uma coisa, entretanto, posso garantir: o velho coração é duro para com as coisas duras. Eu aprendi a domá-lo e a dosar seu líquido nas circunstâncias mais terríveis, graças aquilo de que sempre debochavas. O coração ganha forças misteriosas quando é tempo da Grande Reverência, do ajoelhar contrito do nosso sofrido povo. É que por aqui os dias passam como se andássemos de mãos atadas em uma estrada cheia de buracos, sob os olhares vigilantes de rottweilers. 

“Lembra-se do Círio, my friend? Da procissão que sacaneavas imitando o barulho de foguetes subindo e explodindo? Ah, vê-lo e participar do seu clima são as únicas alegrias que tenho e que me comovem, pois é indizível o fervor e a fé quando a Santa passa no seu andor iluminado. Faço minhas preces e comungo das aspirações do povo, mas não sou mais um sentimental. Hoje isso é luxo, coisa do passado. O que existe mesmo é um grande sentimento de ira coletiva escamoteada por todos. Um dia falarei a você sobre essas coisas. 

“Mundico, como o Círio mudou! E nós com ele. Pudera! O tempo passa e a gente só espera o fim da vida – o último objetivo racional e grande referência da existência.” 

Comentário: Para o personagem narrador tempos insanos quer dizer tempos de desencanto, de cansaço. De muito esforço para obter pouca coisa. Talvez o narrador sinta saudade do Mundico, pois quando os dois se encontram há sempre bebida, comida e papo interminável, ou seja, o prazer de descobertas infinitas. 

Falar nisso, voltei a comentar com o Fernando, no nosso último encontro, que namorei sua irmã, a Savina, por pouco tempo. Já havia comentado isso com ele, mas ele havia esquecido. Talvez tenha sido bom a Savina e eu não termos namorado por muito tempo, pois, assim, só houve tempo para sentirmos o perfume das flores na brisa do Trópico Úmido. Só houve suavidade no nosso relacionamento. Não houve tempo para mais nada, pois logo sumi no meu labirinto, e ela, como os beija-flores, continuou seu voo, atraída pelos jasmineiros e as orquídeas. 

“Mund, parece que estou vendo a tua cara irônica, cheia de deboche. Mas, porra, eu creio na pós-vida, principalmente depois das notícias sobre as últimas descobertas científicas que aqui chegam para mim clandestinas. Elas vêm para dirimir minhas dúvidas e proporcionar algumas certezas, tirar meus pensamentos doentios de suicídio. Ora, como qualquer imbecil que crê, procuro umas mil respostas para poucas perguntas quase nunca formuladas – Oh, drama da existência.” 

O narrador é um personagem de ficção, é claro, e os personagens de ficção, especialmente o narrador, mantêm sempre alguma intimidade com o criador, de modo que se o narrador dos Tempos Insanos influenciou o Fernando, notei, no nosso último encontro, que o Fernando cada vez mais entende o que é a vida, que a vida é infinita, que a matéria é o estado mais primitivo da vida e que há vários planos, portais, cada vez mais sutis. Acho que já disse isso, mas gostei de repetir. 

“Já é tarde, my friend. Não posso garantir que esta carta chegue em suas mãos, mas, amanhã, eu prometo. Prometo: continuarei a lhe”.

E o conto continua. É longo. 

Hoje à tarde, Macapá esteve imersa no perfume dos jasmineiros chorando, e ficará assim para sempre. Fernando Canto foi para o Azul, o Éter. Talvez, a estas horas, esteja batendo papo com outros escritores no Quartinho da Casa Amarela. Ele já sabia que a verdadeira vida se passa em um plano mais sutil do que o da matéria, e já sabia voar na luz. 

Nossa passagem aqui neste planeta é fugaz. Recebemos uma roupa espacial apropriada para suportar a atmosfera terráquea durante certo tempo, até que a roupa sofra um defeito. Nada é por acaso. Tudo tem seu tempo. Voltamos em outra roupa, até que o espírito, que é o verdadeiro eu, se ilumina, isto é, compreende o que é a verdadeira vida, e ascensione. Aqui, só aprendemos a amar. 

Acredito, querido, que cumpriste bem tua missão, pois o que fizeste senão amar?

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Caminhada pelo melhor bairro de Brasília

Ray Cunha observa o mundo na janela do seu quarto

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 25 DE OUTUBRO DE 2024 – Criado em 10 de julho de 1989, o Sudoeste é parte de um projeto idealizado pelo urbanista Lúcio Costa, que o chamou de Brasília Revisitada. Em 1993, surgiram os primeiros prédios residenciais e comerciais. Separado do Parque da Cidade pela Estrada Parque Indústrias Gráficas (Epig), ao sul, ao norte fica a via Eixo Monumental, a fuselagem do avião de Oscar Niemeyer, ou Plano Piloto, centro de Brasília, que é a mesma coisa que Distrito Federal. Ao leste, o bairro faz divisa com o Setor de Indústrias Gráficas (SIG), e a oeste ficam os bairros do Cruzeiro Velho, Cruzeiro Novo e Octogonal. Em 2018, o Sudoeste já era um dos metros quadrados mais caros do país. 

Comecei a frequentar o bairro na virada do século. Havia um restaurante paraense na Quadra 302 e eu, minha esposa, Josiane, e minha princesinha, Iasmim, íamos lá comer unha de caranguejo, vatapá e maniçoba, e tomar tacacá. Depois, a Associação da Seicho-No-Ie local saiu do Cruzeiro e passou a funcionar na Quadra 103 do Sudoeste. 

A última vez que vi o poeta Heitor Andrade, pouco antes de morrer, em 2017, ele estava morando na Editora Thesaurus, no Setor Gráfico. Fomos andando, naquela tarde, até a Pães e Vinhos, uma cafeteria na Quadra 103, a menos de um quilômetro da Thesaurus. Comemos pão torrado com manteiga e café com leite, e conversamos, como sempre, sobre tudo. 

A Pães e Vinhos é padaria, confeitaria, café e restaurante. Muito agradável. Vive lotada. Outro dia fiz uma coisa que havia parado de fazer. Jantei lá, com minha gata, e tomei algumas Cerpinhas enevoadas. 

O Sudoeste é o melhor bairro de Brasília. É óbvio que se trata, aqui, de uma opinião. Para muita gente haverá de ser o Lago Sul. Mas considero o Sudoeste porque, em primeiro lugar, a Avenida Comercial do bairro é o maior aglomerado de restaurantes e cafés de Brasília. Não tem livraria, é verdade, mas há uma loja da Leitura no Terraço Shopping, na Octogonal, sub-bairro no quintal do Sudoeste. 

A Avenida Comercial conta com supermercado e farmácia 24 horas, e, é claro, café também. Até certa hora da noite há todo tipo de comida. De todos os restaurantes que já frequentei no bairro gosto especialmente de dois. Um deles é self service, a Choparia Sudoeste, no Bloco C da 101 Sul. A comida de lá é uma delícia. Rabada divina e feijoada para chef francês comer ajoelhado. Outro restaurante muito bom é o Buteko da 101, no Bloco A da Quadra 101. Picanha de primeira categoria. Gosto bem-passada. Com fritas. 

Costumo caminhar no Parque da Cidade, ao lado de onde moro, mas, às vezes, caminho no próprio Sudoeste. A Avenida Comercial é a principal via do bairro, composta de cinco superquadras de um lado e cinco do outro. São quadras comerciais e residenciais. Os prédios nas quadras comerciais são de dois andares e nas quadras residenciais, de seis andares. 

O bairro é bem urbanizado, tranquilo e perto de tudo. Pode-se pegar ônibus circulares na Avenida Comercial ou de ligação na Estrada Parque Indústrias Gráficas (Epig), e uber, rapidamente. De uber, ou de ônibus, chegamos ao Setor Comercial Sul (SCS), coração de Brasília, ou ao shopping Pátio Brasil, em 10 minutos. Gosto de ir a cinema do Pátio Brasil, porque fica perto de casa, embora os cinemas de lá precisem de reforma, pois as cadeiras são velhas e já ficaram um pouco desconfortáveis. 

Saindo do Pátio Brasil, do outro lado da Avenida W3 Sul, fica o Setor Comercial Sul. Nas minhas caminhadas rotineiras atravesso o Parque da Cidade até o Setor Comercial Sul, onde paro, às vezes, no Sebo do Ed, passo pela frente do Conic, um aglomerado de arranha-céus ao lado do SCS, sigo até o Conjunto Nacional, o primeiro shopping de Brasília e segundo do Brasil, e, de lá, para a Rodoviária do Plano Piloto, e retorno de ônibus para casa. 

Em 4 de outubro de 1974, em plena fase on the road, em Buenos Aires, escrevi o poema NOITE HORRÍVEL, publicado no livro SOB O CÉU NAS NUVENS. Esse poema revela o horror de uma noite estrangeira, sem amanhã. Mas é encerrado com a sensação de conforto do nosso quarto. O Sudoeste é como meu quarto na cidade feérica. 

Noite que não mais termina

Nesta estação aeroviária

Noite que apenas começou

E que não mais termina

Para um aventureiro enveredado na solidão

Inconfortado e sozinho

Revelando sua gana de escrever suas amarguras

Noite miserável rastejando devagar como lesma

Esta noite que não mais termina

Assustará nas noites de recordação

Fazendo estremecer com seu mais leve cheiro

Noite cheirando a prisão desconhecida

Que paralisa os nervos dos forasteiros ao desabrigo

Ar que fulmina

Com seu bafo gelado

Na solidão de uma chegada

Frio que não deixa sossegar.

Eis porque estou cansado e quero o aconchego de um lar

O amor de uma mulher

Ou uma poesia qualquer

Não mais essas noites.

Acho que a incerteza achei numa noite estranha

Agora sou cético

Acredito num prato de sopa

Feito por minha mãe

Não nessas sopas regadas de favores

Aprendi a ser feliz onde moram os que me dizem respeito

Aprendi, mas aprendi por aí

Onde o mar é salgado

O frio gelado

E a solidão mais forte

Quando se é fraco

Aprendi a ser feliz dando uma volta em meu quarto

Meu quarto é minha casa

Meu quarto é um desejo sem conter-se... 

Tenho ambientado alguns trabalhos meus no Sudoeste. Por exemplo, o início desta crônica foi retirado do romance O CLUBE DOS ONIPOTENTES, mas um dos trabalhos que mais me remete ao bairro é meu conto A REDE, do livro TRÓPICO, e que transcrevo a seguir. 

DURANTE O DIA, a umidade relativa do ar caía para 11% e a sensação térmica ficava acima de 40 graus centígrados; agora, no início daquela madrugada de domingo, a temperatura estava bastante agradável no Fran’s Café, aberto 24 horas por dia, na Quadra 302, Bloco C, Edifício Athenas, no Sudoeste, bairro de Brasília. O jornalista consultou sua caderneta Tilibra, tipo Moleskine. Estivera em algumas cidades no interior de Goiás, hospedara-se durante alguns dias nos hotéis Ita e Rio Roxo, em Goiânia, e passara uma semana no Melita Brasil 7. A jovem com quem se encontraria dali a pouco era o elo que faltava para concluir a reportagem. Pensava nisso quando seu telefone celular emitiu os primeiros acordes de Para Elisa, de Ludwig van Beethoven. Era ela. Pagou o espresso que tomara e seguiu para um prédio distante cerca de 200 metros dali. Disse ao porteiro aonde ia. Subiu pelo elevador e desceu no primeiro andar. Ela trajava uma camisola vermelha, tinha quadris largos e seios empinados, pele rosada, olhos verdes como duas grandes esmeraldas e lábios que lembravam os de Alinne Moraes. Parecia medir 1,60 metro e pesar 55 quilos. 

– Você quer café? – ela perguntou ao jornalista, que se sentara em uma poltrona. 

– Acabei de tomar um espresso – ele respondeu, tirando da bolsa um pequeno gravador. 

A jovem havia se sentado à frente dele e cruzado as pernas. 

“É linda demais” – pensou o jornalista. 

Era em torno de 8 horas quando ele deixou o apartamento. O porteiro olhou-o com inveja. Caminhou até o Fran’s e pediu café com leite e uma baguete tostada com manteiga. Na entrada da confeitaria Pão de Ouro havia uma dupla de mendigos. Passou por eles, desejando-lhes boa sorte. O carro, um Gol vermelho, estava estacionado próximo de dois containers. Centenas de pombos fervilhavam ali; havia até um carcará, que bicava alguma coisa presa em uma de suas garras. Quando pôs o carro para funcionar os ratos de asas pararam um segundo e logo voltaram a fervilhar, como formigueiro assanhado. Reinaldo pôs o carro em marcha e minutos depois entrou no Eixo Monumental. Passou defronte à Câmara Legislativa, “o albergue dos parasitas”, e logo alcançou a Esplanada dos Ministérios, com as bacias do Congresso Nacional destacando-se ao fundo. Estacionou na Rodoviária do Plano Piloto e se dirigiu à banca de revistas. Comprou a revista Veja e o jornal O Globo. Pegou o carro e se dirigiu rumo à ponte Juscelino Kubitschek e cruzou o Lago Paranoá. “O sol já está a ponto de matar europeu sem protetor solar e chapéu” – pensou. “A bacanal de alguns príncipes do Congresso Nacional, empresários, diplomatas e turistas libidinosos vindos do frio vai sofrer um abalo, a partir de quarta-feira, quando o Observador de Brasília chegar às bancas. Brasília vai pegar fogo.” 

Só prestou atenção à moto quando ela já estava ao lado da sua janela. O carona disparou duas vezes. O carro entrou no cerrado e parou logo adiante. O que atirou correu até lá, pegou a bolsa do jornalista e deu mais dois tiros na cabeça dele.

Vistos ao longe, o comércio e as casas do Lago Sul dormiam, indiferentes, ao sol.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Flashs da Família Cunha

RAY CUNHA

Meus pais: João Raimundo Cunha e Marina Pereira Silva Cunha

Macapá/AP, 1954. Meus irmãos: Pedro, João, Lindomar, Olivar, Marina (minha mãe), Ray Cunha (no colo da mamãe), Francisco, Paulo (o mais alto) e Ismeraldina. Rosa Maria e Ricardo ainda não haviam nascido

Casa dos Cunha na Avenida Presidente Vargas, em
Macapá/AP: Klingerly e Márcio André (sobrinhos), Lindomar,
Marina, o grande pintor Olivar Cunha e Ismeraldina

Exposição de Olivar Cunha na Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), seccional de Brasília/DF. O pintor,
Ray Cunha e Josiane Souza Moreira Cunha

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Linda, meu amor! Partiste para o azul!

Os sobrinhos Lili e Márcio, Linda, mamãe (Marina), o
artista plástico Olivar Cunha (
gênio da família) e Mel

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 24 DE SETEMBRO DE 2024 – Linda é uma das mulheres mais maravilhosas da minha vida. Luz, ela só faz o bem. Aqui, na Terra, sentiu as emoções humanas, inclusive as ruins, mas sempre amou, espargiu luz, e, agora, continua sua jornada no Astral. Partiu, ontem, para o azul. 

Nós dois sempre nos amamos, desde quando eu a chamava de mãe. Da nossa mãe, Marina Pereira Silva Cunha, a mais maravilhosa das mulheres, eu bebi leite; da Linda, o azul, a cor da poesia, o mergulho ascendente, o transporte quântico, a luz. 

Ela me acalantou, curou meus machucados de criança e, com a magia que só as mulheres possuem, incutiu-me serenidade, injetou-me entusiasmo e me deu exemplo de dignidade, coragem, força moral. Uma leoa, capaz de enfrentar qualquer coisa em defesa dos seus. Herdou da mãe, nossa Marina, fibra de nióbio, e do nosso pai, João Raimundo Cunha, a coragem dos que podem até cair, mas jamais se sentem derrotados. 

Linda nasceu em Belterra/PA, em 29 de julho de 1943, e chegou a Macapá/AP com 6 anos de idade. Professora, desenvolveu diversas atividades no Serviço Social do Comércio (Sesc) e na Secretaria  de Estado do Trabalho e Cidadania do Amapá, junto a idosos, e desenvolveu vários projetos sócio-educativos voltados para crianças, jovens, adultos e idosos. Também se dedicou a trabalhos espiritualistas. 

Aos nossos familiares devo esclarecer que tenho aberto meu terceiro olho. Nós, humanos, somos seres espirituais e a matéria é apenas um plano que nossa consciência habita. Aqui, desenvolvemos o que chamamos de mente, os pensamentos. 

A encarnação quer dizer que recebemos um trajo espacial, um corpo, adequado à atmosfera terrestre, com prazo de validade. Chega um momento que o trajo não funciona mais. Então, rompe-se o corpo etéreo, o fio de prata, e somos transportados para outro plano. Muitos permanecem algum tempo, às vezes, bastante tempo, no Umbral, mas os bons, iluminados, seguem diretamente para as cidades astrais. 

A vida carnal serve apenas para aprimorarmos nosso espírito, a centelha da vida. Daqui, seguimos para outros planos, para outros estados da matéria: o Astral, o Plano da Luz, o Plano dos Ascencionados e assim por diante. Abrir o terceiro olho é começar a perceber isso. 

Linda realizou, aqui na Terra, um trabalho social de tirar o chapéu. No Astral, há muito a fazer, e, estou certo disso, ela não vai descansar muito lá em cima (o Astral fica a 500 quilômetros da superfície da Terra e não o vemos porque é sutil e a luz o atravessa), pois os hospitais do Astral vivem cheios. 

Meu amor, se encontrares com mamãe, dê, por mim, um abraço apertado nela, e também no papai, e em todos.

Linda e Mel na Casa Amarela, ao lado do Colégio Amapaense

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

É tão calma a noite. A noite é de nós dois. Ninguém amou assim, nem há de amar depois

Tudo acaba, mas as coisas que acontecem no coração são para sempre

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 6 DE SETEMBRO DE 2024 – Certa noite de 1976, o poeta Jorge Tufic e eu bebíamos a inesquecível Antarctica manauara, enevoada, em taças, como era comum no bar Nathalia. 

– Só lemos tudo o que precisamos ler na juventude. Depois disso, não lemos mais – disse-me o poeta, que tinha, então, 46 anos de idade. 

De certa forma, o poeta tinha razão. No meu caso, aprendi a ler aos 5 anos e nunca mais parei. Era tão viciado que durante certo tempo da minha vida lia até dicionário, bula de remédio e catálogo telefônico. Comecei, aos 5 anos, lendo gibis e revistas ilustradas, do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, e, pré-adolescente, passei para literatura pesada e livros técnicos, também do Paulo. Adolescente, já havia lido alguns clássicos, entre os quais Tender is the Night, Suave é a Noite, de um dos gigantes da literatura norte-americana, Francis Scott Fitzgerald. 

Quarto e último romance de Fitzgerald, lançado em 1934, Suave é a Noite é ambientado na Europa, especialmente na França, onde os americanos da geração perdida gastavam seus dólares. Conta a história de Richard Diver, psiquiatra que comete o erro de se apaixonar por uma paciente, Nicole Warren. 

E é isso. As mais de 300 páginas do romance marcam o contraste entre a velha Europa e o modo de pensar e de viver dos norte-americanos da Geração Perdida do pós-Primeira Guerra Mundial. 

Para um garoto macapaense, no fim dos anos 1960, tudo aquilo era um mundo novo que se abria. Aliás, tudo para mim era novidade. Vivi em Macapá até os 17 anos e quando saí de lá fui a Belém. Levei um choque. Ainda aos 17 anos fui para o Rio de Janeiro. Mais choque. 

Passei uma década vivendo para lá e para cá, até que comecei, em 1982, a fazer faculdade de Jornalismo na Universidade Federal do Pará, em Belém. E haja leitura. Sempre foi uma das coisas mais prazerosas da minha vida. Ler, para mim, é como viajar com um cartão de crédito ilimitado. 

Mas essa conversa toda é para dizer o seguinte: a imersão e compreensão de um livro são relativas à nossa experiência. Já não consigo mais ler alguns livros. Vejam o caso de O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. Passei a juventude ouvindo falar no romance e só o adquiri na velhice. Comecei a ler O Jogo com avidez, mas broxei rapidamente. Os longos diálogos entre os personagens já não significavam nada para mim. Na minha juventude, quando passava horas bebendo e batendo todo tipo de papo, teriam significado, mas, agora, não. 

Quando li Suave é a Noite fiquei encantado com a Côte D’azur, aquelas mulheres longilíneas, as bebidas sofisticadas, os hotéis, a psiquiatria, a paixão. Esta semana, voltei a ler Suave é a Noite e não conseguir mais. Aos 70 anos, tudo aquilo se foi. Comecei a me interessar mais por autores do nosso tempo, como John Grisan e Stieg Larsson, por física quântica e o espírito etc. 

A verdade é que os grandes escritores escrevem coisas do seu tempo, e quando são realmente grandes, escrevem coisas que servem para qualquer tempo. Assim é que alguns escritores envelhecem, como Fitzgerald em Suave é a Noite, ou Ernest Hemingway em Adeus às Armas, mas serão sempre os que melhor captaram seu tempo, de modo que se quisermos saber como eram as coisas em determinado lugar e tempo basta procurarmos grandes romances que se passam nesse lugar e tempo. 

Assim é com Machado de Assis. Se quisermos ter uma visão viva do que foi o Rio de Janeiro entre os séculos 19 e 20, Machado é um dos escritores capazes de nos mostrar a Cidade Maravilhosa como em um documentário dirigido por um grande cineasta. 

É claro que meu ponto de vista é limitado a mim. Cada pessoa é um universo e imerge em um romance com lentes subjetivas, de modo que, além de mim, Suave é a Noite terá sempre sabor de champagne e perfume de rosas, e Adeus às Armas, armistício pessoal. 

Além disso, alguns títulos são inesquecíveis de tão completos em si mesmos. Suave é a noite foi retirado do poema Ode a um Rouxinol, de John Keats. Em 1962, virou filme, Tender is the Night, dirigido por Henry King, e música, de Sammy Fain com letra de Paul Francis Webster, vertida para o português por Nazareno de Brito:


É tão calma a noite

A noite é de nós dois

Ninguém amou assim

Nem há de amar depois

 

Quando o amanhã nos separar

Em nossa lembrança hão de ficar

Beijos de verão

Ternuras de luar

A brisa a murmurar

Sua canção

 

Tudo tem suave encanto

Quando a noite vem

A noite é só nossa

No mundo não há mais ninguém

 

Beijos de verão

Ternuras de luar

A brisa a murmurar

Sua canção

 

Tudo tem suave encanto

Quando a noite vem

A noite é só nossa

No mundo não há mais ninguém