RAY CUNHA
BRASÍLIA, 15 DE JULHO
DE 2020 – Um dia, o poeta Jorge Tufic me disse, em Manaus, que um homem lê
com verdadeiro prazer durante sua juventude; maduro, ocupado em ganhar a vida,
lê mais por obrigação do que por prazer. Ele tinha, então, 46 anos, e eu, 21.
Comecei a ler aos 5, especialmente gibis. Aos 14, lia de Hemingway a
enciclopédias. Varava as noites lendo.
Certa vez, em Brasília, mencionei Dan Brown a um amigo,
erudito, que resmungou alguma coisa em resposta, como se eu estivesse falando
besteira. Ele só lê clássico. Li Os
Irmãos Karamázov, de Fiódor Dostoiévski, adolescente. Outro dia comprei a
edição da 34, avancei algumas dezenas de páginas e larguei o livro. Não
aguentei. Para traçar o perfil de uma personagem Dostoévski consome pelo menos
10 páginas. Lembrei de Marcel Prout no Em
Busca do Tempo Perdido, que leva umas 30 páginas para descrever o filho
esperando o beijo matinal da mãe.
Hemingway revolucionou a literatura com O Sol Também se Levanta, de 1927, no qual adota uma linguagem
jornalística, direta e enxuta, e sem papa na língua, tanto que ele foi chamado
de devasso nos Estados Unidos durante algum tempo pelas beatas de plantão. O Sol Também se Levanta acaba com o
rebuscado proustiano, sem deixar de ser tão profundo como Proust, ou
Dostoiévski. É um clássico moderno.
Outro dia, resolvi fazer nova leitura de Dom Casmurro e de Memórias Póstumas de Brás Cubas, ambos de Machado de Assis. Também
não aguentei. Larguei-os. Já Dalcídio Jurandir não consigo levar adiante nem
seu principal livro, Chove nos Campos de
Cachoeira. Dalcídio, apesar do pouco que li dele, reconheço como o maior
escritor da Amazônia; lembra um Proust amazônida. O caboco é bom, mas há um, ou
dois fatores fundamentais que norteiam o leitor de ficção.
O primeiro é o seguinte: acho que é preciso o leitor ter
alguma coisa a ver com o tempo psicológico do romance ou conto em questão. Por
exemplo: já li Don Quixote de la Mancha,
de Miguel de Cervantes, publicado em 1605, em Madri, Espanha, mas não consigo
lê-lo, hoje. Tenho 65 anos de idade e sou eminentemente homem tropical e do meu
tempo. Não me interesse por castelos nem por cavaleiros andantes, muito menos
por loucos. Será por isso? Tentei reler também O Nome da Rosa, de Umberto Eco, e não consegui.
Aí dirão: daí não conseguir ler Machado de Assis, o escritor
mais incensado do Brasil, é demais. Pois é! Amo o Rio de Janeiro. Mas vivo
intensamente o agora. Amo o Rio tal qual ele é, e não o Rio de Machado de
Assis, não as personagens de Machado de Assis. Acho Capitu uma das personagens
de ficção mais sensuais do mundo, com olhar oblíquo, dissimulado, e olhos de
ressaca. Do jeito que Machado a cria, levanta até defunto.
E Dalcídio? Já que sou caboco ribeirinho, nascido em Macapá,
a capital do estado do Amapá, em 1954, quando era um povoado na beira do rio
Amazonas! Os que leram algum livro meu, romance ou contos, ambientados na
Amazônia, sabe que meus personagens são da cidade grande, principalmente Belém
e Manaus. São cabocos da cidade grande, políticos obscenos, mulheres sensuais,
adolescentes endiabrados, psicopatas... e também gente direita.
Adoro a ficção de um carioca de quem já li sete romances e
estou lendo o oitavo, Luiz Alfredo Garca-Roza, que me leva pelas ruas do Rio de
agora, principalmente Copacabana. São livros policiais, mas de uma profundidade
guanabarina, reconhecida até pela academia. Outro carioca, embora nascido em
Minas, que leio como devoro um bom prato de comida: Rubem Fonseca.
Um dos escritores que mais li é Ernest Hemingway, mas não
sei quando enfrentarei novamente Adeus às
Armas, ou Por Quem os Sinos Dobram.
E já houve livro de Hemingway do qual me desfiz: Verdade ao Amanhecer, de memórias. Acho que é aí que surge o
segundo fator que norteia o leitor de ficção: sua história pessoal. Bom, aí é
pessoal; não há o que discutir.
Há um escritor que Hemingway degustava: Joseph Conrad, que
nasceu em meados do século 19. Leio tudo o que ele escreveu. Trata-se,
simplesmente, do autor de O Coração das
Trevas. Sua ficção está ancorada no século 19, na África, no mar, no
Oriente, mas é sempre um mergulho na alma, além de que Conrad utiliza as palavras
como o cirurgião talentoso maneja o bisturi.
Leio tudo, também, de Dan Brown, aquele de O Código da Vinci, de quem não espero
voos faulknerianos, mas apenas as surpresas de uma trama moderna, desenrolada
em um mundo cada vez mais globalizado e totalitário, que é o mundo em que
vivemos. Assim, com o mesmo gosto, li a série Millennium, de Stieg Larsson e
David Lagercrantz.
Voltando ao Jorge Tufic, concordo com ele em que leitura é
prazer, principalmente prazer do espírito, seja ela ficção, ensaio ou poesia.
Já li livros sem entendê-los, ou apenas como desafio, mas era tempo de
juventude, de aprendizado, de desbravamento. Isso porque um livro será sempre
uma aventura. Até os livros científicos. O fato é que livros são caminhos pelos
quais enveredamos na vida, ou nos quais nem entramos, ou desistimos deles.
Alguns desses caminhos acabam se tornando trilhas seguras, onde descobrimos
tesouros, e até a luz.
Mas não há a melhor ou a pior escolha, porque a escolha é
sempre pessoal, intransferível. Assim, um livro é como a própria vida: seu
significado e o prazer, ou a dor, que nos proporciona ou nos provoca, serão
sempre subjetivos.