sexta-feira, 21 de abril de 2023

Jessica Rabbit

RAY CUNHA 

Jessica Rabbit foi a única mulher casada com quem me meti. Eu era repórter do jornal A Crítica, de Manaus, e morava sozinho numa casa do artista plástico Álvaro Pascoa, arranjada pelo meu amigo o cineasta José Pereira Gaspar, e que abrigava uma fortuna em telas do pintor amazonense Hahnemann Bacelar. À noite, costumava beber com o poeta Jorge Tufic, do Clube da Madrugada, no Bar Nathalia, onde enxugávamos garrafas e mais garrafas da maravilhosa Antarctica manauara. Eu tinha 21 anos; era, por conseguinte, belo e imortal. Mas Jessica Rabbit se apaixonou por mim por outra razão: pelo meu texto. Todos os dias, pessoalmente ou por telefone, eu tinha que apontar para ela todas as matérias que eu escrevera, publicadas no jornal. E queria ler também todos os poemas e contos novos que eu produzia.

Jessica Rabbit foi a mulher mais sensual que eu conheci. Acho que sensualidade é alguma coisa parecida a cio permanente. Ela era ruiva e tinha sardas na pele, tão branca que suas veias pareciam azuladas. Seus cabelos lembravam a juba de um leão, espalhando-se nas costas como fios de cobre, e cobrindo-lhe, às vezes, parte do rosto. Suas sobrancelhas pareciam sempre feitas recentemente e seus olhos, de manhã, eram azuis celestes, e, à noite, verdes como clorofila.

Eu sempre ficava hipnotizado ao vê-la nua; a cintura era tão estreita que eu acreditava que Jessica carecia de estômago, embora ela comesse o dobro do que eu comia. Deitada de bruços, nua, as ancas formavam a mais bela obra de arte, mais bonita até do que rosas despindo-se ao sol da manhã, e levavam a labirintos, a abismos insondáveis de mistério, onde eu me perdia inteiramente, montado na luz. Seus seios, túrgidos, eram aureolados pelos maiores mamilos que já tive a graça de apreciar longamente, de tocar, cheirar, lamber, segurar desesperadamente, de tentar engolir, e eles tinham o mesmo sabor dos lábios, da língua e do sexo de Jéssica: jambu.

Conhecemo-nos no Amarelinho, que era um bar que ficava na Avenida Getúlio Vargas, no centro de Manaus. Eu estava com um livrinho, Xarda Misturada, que os poetas José Edson dos Santos (Joy Edson), José Montoril e eu publicáramos, em 1971, em Macapá. Jessica Rabbit era casada com um empresário americano, do ramo de turismo, que passava parte do tempo em Miami e a quem ela chamava de “meu coelho”. Ela tinha mestrado nos Estados Unidos em literatura norte-americana. Começamos a conversar sobre Ernest Hemingway, William Faulkner, Francis Scott Fitzgerald e vários outros escritores, ela folhando Xarda Misturada.

Esse livrinho revela as angústias de três garotos de uma cidade ribeirinha, que tiveram uma visão além do rio Amazonas e da Linha Imaginária do Equador, por uma porta aberta pelo poeta Isnard Brandão Lima Filho. Entrei por essa porta, peguei a estrada e nunca mais parei. O Rio de Janeiro foi o primeiro porto de chegada, e Manaus foi um deles. No início da madrugada, fui deixá-la a casa.

Quase passei a morar na casa onde Jessica nascera, e de onde eu podia ver, de madrugada, o Igarapé do 40, bebendo Mateus Rosé e beijando o corpo todo dela. Às vezes, ela cantava para mim. Poderia ter sido cantora, atriz, o que quisesse.

Não cheguei a conhecer o coelho, porque ela teve que ir a Miami, já não me lembro mais por que. Parece-me que o coelho trabalhava com turismo também nas Bahamas e estava precisando dela, pois Jessica falava fluentemente, além de português e inglês, francês, italiano, espanhol, alemão, holandês e russo. O fato é que ela precisou ir, mas garantiu que não se demoraria. No dia seguinte ao de sua partida meu pai morreu e fui a Macapá, e depois mudei-me para Belém. Anos depois, soube que Jessica Rabbit se tornara estrela em Hollywood.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Roberto Carlos joga no time de Pablo Picasso?

Ray Cunha e Roberto Carlos, no Hotel Amazonas, em 1976

RAY CUNHA

Ray Cunha e DE TÃO
AZUL SANGRA
, em 2023
BRASÍLIA, 19 DE ABRIL DE 2023 – Roberto Carlos completa 82 anos, hoje. O mais famoso cantor popular brasileiro ainda compõe? Será ele do time de Pablo Picasso? Um dos maiores gênios espanhóis do pincel criou até os 92 anos, quando morreu trabalhando. Desde Esse Cara Sou Eu, de 2012, Roberto não compôs mais nada. Mas sabe tudo de música popular e sua voz, embora tenha perdido o tônus da juventude, ainda é uma das mais melodiosas do Brasil. Não, não joga no time de Picasso. É como Bob Dylan, Paul McCartney, Santana. Não compõe mais nada. Contudo, ainda pode surpreender. 

Já imaginaram Roberto com LP inteiramente novo, as músicas suas ou em parceria, arranjo cinematográfico e gravação com banda e orquestra? E ele soltando a voz como nunca se viu? Que ele é um gênio isso não há o que discutir. Talvez lhe falte um pouco do instinto de aventura. Um pouco do cataclismo do primeiro beijo. O azul sangrando. 

Em junho de 2018, sonhei com ele. Estava todo de branco, na casa onde eu então morava, na 711 Sul, em Brasília. No sonho, era uma casa enorme e arejada. Eu chegava da rua e o encontrava lá. Alguém me disse que Roberto estava me aguardando; queria falar comigo. No instante seguinte, como só nos sonhos acontece, ele e eu já nos encontrávamos na biblioteca da casa, ampla, bem iluminada e aconchegante. Roberto pegou um poema meu, impresso em uma lauda A4, e me pediu autorização para trocar uma palavra do poema, para ajustá-lo à melodia na qual estava trabalhando. 

– Sim, é claro – disse-lhe, e acordei. 

Acordei com o livro DE TÃO AZUL SANGRA na cabeça e passei aquele dia e os dias seguintes trabalhando nisso. Reuni os poemas que publicara no jornal que eu editava, Intelligentsia, mais os poemas eróticos produzidos até junho de 2018, e publiquei, em dezembro daquele ano, DE TÃO AZUL, no Clube de Autores e na amazon. 

Eu o conheci pessoalmente, no início de 1976, em Manaus. Trabalhava no jornal A Notícia, de Andrade Netto, pai da Natacha Fink de Andrade, uma das grandes chefs brasileiras, profunda conhecedora dos sabores da Amazônia, e que deixou sua marca no Rio de Janeiro, onde foi proprietária do Espírito Santa, então um dos restaurantes mais badalados da cidade, na Rua Almirante Alexandrino 264, bairro de Santa Teresa. 

Pois bem, naquele ano, 1976, Roberto fez um show em Manaus e a produção do jornal conseguiu entrevista exclusiva com ele, no antigo Hotel Amazonas, centro da cidade, onde Roberto estava hospedado. Na época, eu assinava a coluna semanal No Mundo da Arte e era sempre eu que cobria matérias de cultura. O chefe de reportagem instruiu-me a perguntar a Roberto se ele usava, antes dos shows, meia de mulher como touca, para que sua cabeleira ficasse bem bacana. Esse assunto fora objeto de revista de fofoca. A pergunta era bizarra, mas satisfaria o suposto perfil dos leitores do jornal, que tendia ao sensacionalismo. 

Tudo bem! O problema era outro: o único gravador do jornal estava falhando e isso foi meu terror, porque se chegasse à redação sem a entrevista só me restaria fazer o que fiz tempos depois: demiti-me e fui para A Crítica, levado pelo senador Fábio Lucena, de quem fiquei amigo no Clube da Madrugada, sediado nos bares Caldeira e Nathalia, e que reunia jornalistas, artistas e apreciadores da enevoada Antarctica manauara. 

Saí para fazer a entrevista, marcada para o fim daquela manhã. No hotel, fomos conduzidos, o fotógrafo e eu, ao corredor do apartamento onde Roberto estava hospedado. Dois seguranças pediram para aguardamos. Roberto não nos recebeu no apartamento; acho que o apartamento era simples demais para as fotos. Ele me recebeu no corredor, e me deu a entrevista ali mesmo. 

Sou 14 anos mais jovem do que Roberto. Na época, ele tinha 35 anos e eu, 21. Roberto é um sujeito carismático. Ele me deixou à vontade e eu me senti como se fosse velho amigo dele. Perguntei-lhe sobre o negócio da meia e ele me respondeu numa boa. Nem me lembro mais o que ele disse. Eu estava de olho no gravador, preocupadíssimo com o funcionamento dele, vigiando para ver se o rolo de fita estava girando. Fazia perguntas a Roberto e me voltava para o velho gravador. Eu costumava fazer entrevistas anotando rapidamente a resposta, mas a orientação que recebera era a de que eu teria que transcrever ipsis litteris as palavras do Roberto. 

Mais tarde, na redação, ao degravar a entrevista, vi o quanto foi burocrática, a pior que fiz, e logo com quem, Roberto Carlos. Mas tudo bem! O jornal publicou a matéria, ninguém reclamou, e ainda restou uma fotografia com Roberto, por insistência do fotógrafo, de quem não lembro mais quem era. 

Fui cobrir também o show do Roberto, e, naquele clima dos grandes shows, senti, na alma, o perfume que exalam muitas das canções do grande artista, algumas delas compostas com Erasmo Carlos. Certas gravações do Roberto nos remetem, em um salto quântico, à eternidade da juventude, quando transitar pelos labirintos de uma mulher é como montar a luz, tão azul que sangra. 

Sobre DE TÃO AZUL SANGRA, escreve o ensaísta e contista amapaense Fernando Canto: “Nem fesceninos ao estilo bocageano, nem pornográfico à moda Boris Vian. Contudo, profanos são os novos versos do poeta Ray Cunha. Não no sentido antirreligioso – assim a poesia teria prosélitos fanáticos –, mas no sentido da irreverência, da violação, da transgressão do texto, em cuja tessitura surge o inopinado, que fragmenta, com certeza, a reação dos ouvidos suscetíveis. 

“Estes poemas, DE TÃO AZUL SANGRA, evocam, invocam, enfocam a mulher, aliás, o sexo feminino; a afirmação do adolescente, o orgulho do adulto, ou, talvez, o fruto da observância do mundo mundano – experiência edipiana a penetrar em barreiras antes inacessíveis. Poemas que denotam a sensualidade e detonam-se em palavras lúbricas. Sutis, às vezes, como em Bethania. Impolidas, como em Olhar para a mulher amada – um rasgo narcisista, um produto da consciência machista e desembocadura para o gozo psicológico do autor. 

“A apologia de Ray Cunha à mulher é feita, então, sem disfarces. Despojada da roupa ela se torna provedora de sentidos, manancial e matéria-prima ao fabricante de versos. Está ali nua, nuinha na sua forma ímpar de ser apenas mulher, vênus perscrutada pela oportuna fresta que faz a felicidade de um voyeur; deusa mítica em seu mistério, desvendada pelo arguto e fulminante olhar e pelo sensível olfato do poeta. 

“Bem poderia chamar-se Essa Copacabana Triste Mulher o conjunto desta obra. O melhor poema da coletânea traz o melhor do autor, embora o contraste do “triste” trace o “ideal” do jovem solitário, qualquer jovem solitário nas praias deste Brasil afora. Essa irreverência trata da socialização do sexo no entendimento paradoxal de que todos possam ser burgueses em bacanais tropicais regadas a coquetéis afrodisíacos, num tempo hedonista que ficou há muito nos salões dos palacetes romanos. É forma compacta de abarcar o mundo. É válido. É poesia. Nela está o sol, o azul do mar no verão. Pois aí o azul que sangra não é o azul do céu. É o azul açoitado pela relação geográfica e íntima entre o sol e o mar. É o azul afetado pela natureza do gasoso (as nuvens) no espelho sangrado do mar. Mar que sangra, que se esvai, que beija a praia de Copacabana e salga o corpo nu da mulher desejada, da mulher que brilha com a clivagem dos grãos de areia e à noite vai para a cama gemer seu gozo e se sangrar de mar de Copacabana. Enorme, a cama de Copacabana. 

“Nostálgico e terrível é romper o laço em Um cheiro de madrugada. Neste poema Ray Cunha instiga um sentido amargo sobre o que se convenciona chamar de amor. É um trabalho sincero, diria, onde o conteúdo está exposto para o leitor atento; onde nada mais se precisa dizer, pois que a lembrança adquire a possibilidade de entrega a outros caminhos, nos quais existem outros remédios para os males da paixão. É simples, realista. 

“Ray Cunha ironiza a relação poética entre a morte e a poesia. Morrer na mesa de um bar é produto do inconsciente etilizado. Ser salvo, porém, é dormir com a princesa e metáfora-tônica de um anti-valor, concessão do sono ao acordar de supetão de um pesadelo borgeano: sensação esquisita, estapafúrdia. Morte e poesia andando juntas, porque o trágico pode ser frenético, fétido e cômico – dura realidade! – exatamente na hora irônica do enforcamento. 

“Poemas como Sessenta e Nove I e II trazem sobretudo o rústico, o rude, o seco mal lixado. São versos extraídos de uma realidade obstinadamente crua, ausentes de recursos semânticos mais elaborados, e duros como a pretensa e voraz virilidade do poeta. Nem por isso ele peca. 

“Se transgredir é a virtude do recurso, doces são as circunscrições colocadas em Ah! Se tu fosses minha e nos dois poemas sem títulos que se entrepõem a ele. Chegam á trazer à tona a ingenuidade do poeta, que verdadeiramente ama sua musa de Parnaso, líricos como uma aquarela a Belle-Époque. 

“Não se pode deixar de enfocar o trato poético-erótico-libidinosos dos classificados de Acompanhantes. O autor ousa de várias maneiras. E coopta o leitor a acompanhá-lo em aventuras sexomaníacas de pleno envolvimento. Comunicação, mídia impressa, espurcícia? Não. Mistura de elementos cuidadosamente colocados sob a arquitetura da realidade atual, ossatura forte dos arrabaldes das megalópoles. Assim é a estrutura desse poema. Real. Firme e transparente. Enfoque de uma sociedade periférica desprezada pela tradicional e hipócrita sociedade burguesa. É retrato da nova cultura urbana, nascida, infelizmente, ainda da miséria, da perda de status, de poder aquisitivo e que se torna antepasto para qualquer Sade pós-moderno, certamente. Instigante, claro e azul, o poema indica água fervendo, páprica picante, poesia nova, e acima de tudo coragem de inovar pela forma e revolucionar pelo conteúdo da ideia.

“Esta é a marca poética de Ray Cunha, que, sob o céu nas nuvens, descobre que o azul sangra como a vagina menstruada de uma nereida de qualquer gangue dos subúrbios brasileiros”.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

O Rio de Janeiro é uma festa permanente

Ruy Castro e a Cidade Maravilhosa: se a conhecemos na
juventude, ela estará conosco onde quer que estejamos

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 12 DE ABRIL DE 2023 Paris é uma Festa é o único livro de memórias do romancista e contista americano Ernest Hemingway, que relata sua passagem por Paris, nos anos de 1920. A tradução do título em inglês, A Moveable Feast, seria “uma festa móvel”, pois o livro não retrata Paris, mas viver em Paris. Principalmente quando as personagens são, além do lendário Hemingway, Pablo Picasso, Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald, Ford Madox Ford, John Dos Passos, James Joyce, Gertrude Stein etc. Certa vez, Hemingway disse em uma carta: “Se você tiver tido a sorte de ter vivido em Paris na sua juventude, então, aonde quer que você vá no resto da sua vida isso ficará com você, porque Paris é uma festa móvel”. 

Agora, o jornalista Ruy Castro publica Metrópole à Beira-Mar – O Rio Moderno dos Anos 20 (Companhia das Letras, São Paulo/SP, 2022, 494 páginas). Enquanto Hemingway escreveu um livro de memórias sobre quando viveu na Cidade Luz, Ruy Castro escreveu a biografia de uma certa década na Cidade Maravilhosa, a cidade luz do trópico. Se escrever a biografia de uma pessoa é tarefa para pouquíssimos jornalistas, imagine a biografia de uma cidade. E não é qualquer cidade, porém a mais feérica do planeta. 

Ruy escolheu a década definitiva da formação da identidade carioca, e, por extensão, brasileira. Até 1500, éramos uma nação tupi. Aí vieram os colonos portugueses e antes de findar o século XVI os tupinambás foram praticamente varridos da Baía de Guanabara, que é onde o Brasil começou a se formar. Com a instalação do Império de Portugal no Rio de Janeiro, no século XIX, o Brasil começou a configurar-se o mapa que assumiu hoje e nossa identidade cultural começou a se definir, o que se consumou nos anos 20, no Rio de Janeiro. 

“Se você tiver tido a sorte de ter vivido em Paris na sua juventude, então, aonde quer que você vá no resto da sua vida isso ficará com você, porque Paris é uma festa móvel.” Não tive a sorte de viver em Paris na minha juventude, mas no Rio. Vivi lá de 1972 a 1974. Intensamente. Sempre que posso caio lá. E é como Hemingway disse, o Rio está em mim o tempo todo. Está em toda parte, pois ele simboliza a identidade dos brasileiros, nosso tropicalismo, nosso samba, nossa feijoada, o futebol, o carnaval, Copacabana. 

Enquanto Hemingway reportou sua própria experiência em Paris, Ruy Castro fez o trabalho do jornalista: aproximar-se, o mais perto possível, da verdade. Ruy Castro é desses jornalistas que, ao trabalharem em uma biografia, tornam-se um perigo para a família, de modo que a esposa de alguém assim só não o deixa porque o ama, é claro, pois trata-se do tipo de jornalista que começa a viver e a sonhar com o objeto da biografia. No caso dos anos 20, no Rio, Ruy se transportou para eles, investigando tudo o que se passou e ouvindo o máximo de testemunhas. 

É claro que toda biografia é seletiva e planejada, senão o trabalho de produção não acabaria nunca, já que o passado não existe, razão pela qual precisa ser recriado. Então, bastou a Ruy organizar o que de mais importante aconteceu naqueles anos em diversos setores de atividade. Um deles foi o literário. Aí, vemos que nos anos 20 o Rio de Janeiro já era o que é hoje: a cidade mais moderna do país, a cidade onde as coisas acontecem. Inclusive, Ruy prova por A mais B, a Semana de Arte Moderna de São Paulo foi uma espécie de eco do que era rotina no Rio de Janeiro. 

Mas para escrever a biografia dos anos mais definidores de uma cidade é preciso que o biógrafo seja uma espécie de amante dessa cidade, além, é claro, de ser detetive e psicólogo de primeira linha. Também é fundamental que o biógrafo escreva bem para chuchu. Tudo isso Ruy Castro é; inclusive, carioca. Ele nasceu acidentalmente em Caratinga, uma cidade de Minas Gerais, em 26 de fevereiro de 1948, mas mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro, onde sua família já morava. Formou-se em Ciências Sociais na Faculdade Nacional de Filosofia, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas nunca foi pegar seu diploma. 

A partir de 1967, trabalhou em importantes jornais e revistas do Rio e São Paulo e em 1988 se torna escritor. Publicou O Anjo Pornográfico, biografia de Nelson Rodrigues, Estrela Solitária, de Garrincha, e Carmen, de Carmen Miranda, além de Chega de Saudade, sobre a Bossa Nova, Ela é Carioca, sobre Ipanema, e A Noite do Meu Bem, sobre o samba-canção. Etc. 

Ruy se criou na Zona Sul do Rio de Janeiro, região que ele conhece como a palma da mão. Também conhecedor profundo da literatura brasileira e um dos jornalistas mais cultos do país, é inquieto e poderia ser um dos guias mais interessantes da Cidade Maravilhosa, pois frequenta dos sebos à Academia Brasileira de Letras (ABL), da qual é membro, e certamente sabe onde se come melhor e mais barato.

Fazendo um paralelo entre Hemingway e Ruy Castro, Hemingway era também como Ruy, só que recriava o que vivia, legando-nos monumentos como Adeus às Armas, O Sol Também se Levanta, Por Quem os Sinos Dobram e O Velho e o Mar, para citar alguns dos seus livros. Ruy Castro vive o que recria, pois ele sabe o segredo, que o mergulho que damos ao passado é agora. Quanto ao Rio, é uma festa permanente.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

A Amazônia nunca mais será a mesma depois da CPI das Ongs. Nem o tráfico de escravas sexuais

Mendigo em Belém, óleo sobre tela, de Olivar Cunha 

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 6 DE ABRIL DE 2023 – A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das organizações não governamentais (Ongs) já pode ser instalada. Terça-feira 4, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, leu, em Plenário, o requerimento do senador Plínio Valério (PSDB/AM) para criar a CPI, que terá 130 dias para investigar a liberação de recursos públicos para ongs e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Amazônia Legal abriga 15.919 fundações privadas e associações sem fins lucrativos. Descobriu-se, porém, que muitas das ongs estão pouco se lixando com os amazônidas; não querem seu bem, mas seus bens. 

“O país passou, com frequência cada vez maior, a conviver com denúncias de existência de ongs de fachada, cujos reais propósitos seriam repassar recursos a partidos políticos ou mesmo a particulares. Também se avolumaram as suspeitas de que, mesmo sem receber verbas governamentais, ongs se envolvem em atividades irregulares, inclusive a serviços de empresas com sede no exterior e a interesses de potências estrangeiras” – registra Plínio, no requerimento. Ongs são usadas na Amazônia com duas finalidades: o desvio de dinheiro público; e crimes que vão da espionagem de Estado ao narcotráfico, passando pelo comércio de mulheres e crianças para escravidão sexual. 

A Amazônia é um paradoxo. A mais rica província mineral e biológica do planeta é também O Coração das Trevas, obra-prima de Joseph Conrad, uma zona imprecisa da alma. Esse pequeno romance de pouco mais de 150 páginas é um golpe de navalha seccionando tecido humano, obsceno como o ataque de hienas. É o mais intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu, disse o labiríntico Jorge Luís Borges. É a face obscura da Amazônia. O inferno verde não é a selva profunda, mas o latejar da escuridão, espasmos da alma amazônida, a loucura e o malogro da civilização colonialista. 

Subcontinente brasileiro, a Amazônia foi conquistada pelos nossos ancestrais portugueses sob o fio da espada, o trabalho insano dos jesuítas, a morte em forma de novos microrganismos e a cobiça internacional. É uma região cheia de inimigos, mas, além dos que ambicionam suas riquezas intermináveis, como as nações hegemônicas, o Trópico Úmido tem dois inimigos letais, baseados, confortavelmente, dentro de casa: um deles são os próprios amazônidas, que recebem lavagem cerebral do novo colonizador, os políticos; o outro é o establishment da região, especialmente os políticos, muitos dos quais procuram se eleger para melhor estuprar. 

Para Brasília, a Amazônia é uma reserva continental de commodities: minério, madeira, água para mover turbinas, pedras preciosas, animais, mulheres e crianças. O tráfico de mulheres e crianças se dá sob um clima de banalidade, como se índias, caboclas, ribeirinhas, negras e brancas analfabetas fosse gado da floresta e dos rios, a serem pegas em armadilhas e anzóis, e jogadas em puteiros imundos, onde não existe setor público, para serem usadas até a morte. 

Em 27 de junho de 2006, publiquei, na minha antiga coluna Enfoque Amazônico, no site brasiliense ABC Politiko, o mapa da escravidão sexual infantil na Amazônia. Relendo o texto, vejo que essa realidade continua como um nervo exposto. O tráfico de crianças para escravidão sexual é um dos crimes mais repudiados pela sociedade, por sua feição abjeta, mas é corriqueiro na Amazônia. Em 1979, fiz, para o antigo mensário Varadouro, em Rio Branco/AC, uma reportagem sobre o tráfico de meninas pela BR-364, espinha dorsal do Acre, que liga o estado ao resto do país. 

Frequentei boates e bares, pontos de encontro de caminhoneiros, entrevistei prostitutas e rodoviários, e bisbilhotei registros policiais, concluindo que parte dessas meninas que sumiam em Rio Branco era atirada em prostíbulos de Porto Velho, Manaus e Goiânia. Outras, simplesmente fugiam da miséria. Hoje, a situação piorou, e muito. O drama, que afeta toda a Amazônia, foi ampliado em escala assustadora. 

Já foram identificadas 76 rotas de tráfico de mulheres, crianças e adolescentes na Amazônia, segundo a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins Sexuais, coordenada pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Exploração Sexual, do Congresso Nacional. A Interpol francesa calcula que a rede internacional de tráfico de pessoas movimenta cerca de US$ 9 bilhões por ano. 

Nesse comércio negro, assim como ocorre com políticos corruptos, a imunidade, digo, impunidade, é garantida. O holandês Kunathi, um dos maiores traficantes de pessoas em atividade na Amazônia, já foi preso em flagrante no Pará, mas a Justiça o soltou para responder ao processo em liberdade. Não deu outra, Kunathi fugiu para o Suriname, antiga Guiana Holandesa, onde é dono de boate na qual só trabalham brasileiras, muitas delas do Pará e do Amapá. 

No Vale do Jari, no Amapá, há prostituição infantil em larga escala. O rio Jari divide o Amapá do Pará desde a Serra do Tumucumaque, na fronteira com o Suriname, até desaguar no rio Amazonas, no sul do Amapá. O Beiradão, no município amapaense de Laranjal do Jari, é apenas uma das zonas de “fronteira” na Amazônia, nas quais a escravidão sexual infantil é crime banalizado e recorrente. 

O comércio de crianças amapaenses e paraenses é intenso na Guiana Francesa e no Suriname, ao norte do Amapá, principalmente em cidades como Kourou, onde fica a base francesa de lançamento de satélites; o balneário de Montjoly e Saint Laurent. Meninas e meninos amapaenses e paraenses são bastante apreciados para bacanais, corrompidos por promessas de casamento com franceses ou pela possibilidade de ir para a Europa, onde imaginam que possam ganhar até 100 euros, cerca de R$ 500, por programa, escapando, assim, da miséria. 

Dos 200 mil habitantes da Guiana Francesa, 50 mil são brasileiros ilegais, amapaenses em sua maioria, que fogem do Amapá, estado assolado pela miséria social, roubalheira de colarinho branco, nepotismo e corrupção endêmica. A capital, Macapá, é reflexo do desleixo administrativo. Cidade sem esgoto, cheia de ruas esburacadas, com fornecimento precário de energia elétrica e água encanada, apesar de se situar na margem do maior rio do mundo, o Amazonas, a cada dia fica mais inchada e violenta. 

Próximo de Caiena, a capital da França na Amazônia, localiza-se a cidade amapaense de Oiapoque, porta de entrada para a prostituição internacional na Amazônia Caribenha. Antes de as meninas seguirem para as três Guianas, passam, geralmente, por um estágio em Oiapoque. Boates locais são o internato que prepara meninas e meninos para o abate. 

Assim, guianenses que atravessam o rio Oiapoque atraídos por sexo são recebidos na cidade de braços abertos - inúmeros bares nos quais o lenocínio prospera, de manhã à noite, açougues onde se pode comprar crianças de, em média, 13 anos. No Amapá, cidades como Laranjal do Jari, Tartarugalzinho, Calçoene e Santana, esta, na Zona Metropolitana de Macapá, são, como Oiapoque, vitrines de carne infantil. O jornal O Liberal, de Belém, o mais influente da Amazônia, contém, no seu banco de dados, várias reportagens que confirmam o que eu estou dizendo, com nomes, lugares e datas. 

Em janeiro de 2005, o Jornal Nacional, da TV Globo, publicou uma série de reportagens intitulada Povos das Águas, na qual focalizou o trânsito de balsas em Breves, na ilha do Marajó. Nessas balsas, na cabine de carros, crianças marajoaras serviam de repasto sexual durante o cruzamento do rio. De um modo geral, os municípios marajoaras são miseráveis, apesar da natureza pujante da maior ilha marítimo-fluvial do planeta. 

O Marajó, uma das mais belas regiões do mundo, é do tamanho da Suíça. A ilha é banhada pelos rios Amazonas e Pará, e pelo Oceano Atlântico. No arquipélago, ratos d’água atacam as casas de ribeirinhos, roubam e estupram as mulheres, e crianças são estuprados dentro de carros enquanto balsas cruzam os rios e no interior de embarcações. Silenciadas por comida, são empurradas aos mais torpes atos, às vezes, a troco de querosene, para acender lamparinas. 

Quando as embarcações se aproximam, meninas partem em grupo em canoas e remam em direção a balsas, barcos e navios. É lançada uma corda para ajudar as “balseiras”, como são chamadas, a subir às embarcações, onde tentam vender produtos agrícolas. Mas os homens geralmente estão interessados em outra coisa, e as estupram a troco de pacotes de biscoito, leite em pó ou condensado, ou óleo diesel. 

Em declaração ao jornal Beira Rio, da Universidade Federal do Pará (UFPA), a pesquisadora Monique Loma explicou que as famílias não veem isso como exploração sexual, mas como “uma oportunidade para eles; além de gerar renda, os pais olham para a prática como uma chance de as meninas se casarem com algum marinheiro e terem uma chance melhor na cidade”. 

E revela: “Quando contamos à família o que está acontecendo, o que essa atitude gera, percebemos que eles não tinham noção sobre a legislação ou sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. Jamais poderiam fazer uma ocorrência, pelo simples fato de aquilo ser o cotidiano deles, não um crime”. E o choque: “Foi uma surpresa ver que, para elas, aquilo era brincadeira. Algumas afirmaram estar procurando o príncipe encantado. A naturalidade com que elas falavam de tudo foi um choque. Como eu poderia falar de violência sexual, de exploração, se elas nunca tinham ouvido esses termos?” 

Um caso que aconteceu em novembro de 2007, em Abaetetuba, cidade no quintal de Belém, constitui-se uma metáfora da Amazônia. Delegados da Polícia Civil do Pará, com a conivência de gente do Judiciário, atiraram uma menina, uma criança, a dezenas de criminosos na cadeia da cidade. Essa criança foi currada dia após dia, durante um mês. Assassinos, estupradores, espancadores de mulheres e crianças, ladrões, arrombadores, batedores de bolsa de velhinhas, psicopatas, drogados, caíram em cima dessa menina, como hienas, e os policiais, ali perto, ouvindo e vendo tudo. Masturbavam-se? Os berros de terror eram ouvidos pelos delegados e pelos moradores da cidade, e ninguém moveu uma palha por ela. 

Quando esse caso estourou na mídia, uma delegada envolvida, em depoimento no Congresso Nacional, disse que a menina provocava os presos e se oferecia a eles. O então secretário de Segurança Pública do Pará afirmou que a menina se fez passar por maior de idade e achava que ela era retardada. A governadora, a petista Ana Júlia Carepa, que não conseguiu se reeleger, tratou o caso com a habitual alienação, e tudo mergulhou no esquecimento. Aliás, crianças são emblemáticas na tragédia da Amazônia.

Em 2006, adolescentes de Altamira, no Pará, que caíram nas garras de uma quadrilha de exploração sexual e a denunciaram, foram ameaçadas de morte se falassem na Justiça. A polícia paraense, despreparada, não pôde dar segurança às vítimas e só conseguiu provas contra 3 dos 15 acusados. A ação da quadrilha envolvia inclusive um político e empresários. “É uma rede complexa de exploração sexual, com várias vítimas e vários adultos envolvidos. É preciso que haja vontade política para que se chegue aos outros envolvidos” – disse, à época, Ana Lins, advogada da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH). 

Em março daquele ano, a polícia de Altamira localizou várias adolescentes, algumas dadas como desaparecidas por suas famílias, em uma chácara, onde eram embebedadas e servidas em banquetes sexuais fotografados. As fotos eram divulgadas na internet. As orgias ocorriam também em motéis da cidade e em imóveis de um dos acusados, além de chácaras e balneários no município, onde as bacanais duravam dias. 

Ameaçadas de morte, vítimas e suas famílias, e testemunhas, desdisseram nos depoimentos à Justiça as declarações prestadas no inquérito policial. Uma das vítimas contou que foi ameaçada na porta da escola onde estuda. Sua família recebeu até bilhetes com ameaças de morte. A jornalista Iolanda Lopes, que denunciou a quadrilha em várias reportagens, disse que recebeu três telefonemas ameaçadores. 

As adolescentes foram, ainda, humilhadas na Câmara de Altamira, onde tiveram seus nomes divulgados durante sessão plenária. “A vergonha, a humilhação, o sentimento de desesperança e a depressão são alguns sintomas encontrados em várias das vítimas desse tipo de crime” - comentou a advogada Ana Lins. “A revitimização é o calvário de ter que reviver os momentos do crime ao ter que relatá-los várias vezes. Esse calvário vai desde não ser atendida dignamente na delegacia, às vezes esperando horas e horas, até conseguir registrar a ocorrência policial, a realização de exames periciais sem a devida humanização do servidor responsável, até ver os algozes soltos livremente e voltando a delinquir em alguns casos.” 

Em Brasília, o plenário da Câmara Legislativa do Distrito Federal fechou os olhos e arquivou processo contra o deputado Benício Tavares (PMDB), que respondia na Justiça por turismo sexual no estado do Amazonas. Benício foi liberado por 14 votos favoráveis e 10 abstenções. Em 2007, o então governador de Brasília, José Roberto Arruda (ex-DEM), deu a Benício Tavares a Administração Regional de Ceilândia, o maior colégio eleitoral da cidade-estado. O povo se revoltou, pois, além da acusação de corruptor de menor, Benício Tavares é acusado de desvio de dinheiro. Arruda teve de tirá-lo do cargo. Este ano, o próprio Arruda foi preso, acusado de comandar um esquema de corrupção de dar inveja aos maiores ladrões do país. 

Madrugada de 16 de setembro de 2004, marina da Ponta Negra, Manaus, Amazonas. A bordo do iate Amazonian, de 25 metros de comprimento, 15 políticos e empresários de Brasília e de São Paulo aguardam um carregamento para zarpar rio Negro acima, aparentemente para uma pescaria em Barcelos, a 450 quilômetros da capital amazonense, em passeio organizado pelo dentista paulista Flávio Talmelli. Era o terceiro ano que o alegre grupo de políticos e empresários candangos-paulistas se reunia. 

Finalmente o carregamento chega. São peixes servidos antes mesmo da pescaria: 17 meninas, a maioria delas menor, aliciadas em casas noturnas de Manaus. O programa, de dois dias e duas noites renderia R$ 400 a cada uma, fora gorjetas. As garotas foram conduzidas ao iate pela cafetina Dilcilane de Albuquerque Amorim, conhecida como Dil, 33 anos, que ganharia R$ 100 por garota. 

Domingo 19. As meninas se dividiram em dois grupos para o retorno a Manaus. O Amazonian, com os políticos e empresários, seguiu rio Negro acima, com destino a um hotel na selva. Doze meninas retornaram a Manaus. No fim do dia, as cinco meninas restantes retornaram também, no barco Princesa Laura. O barco naufragou naquele mesmo domingo, entre Manaus e Barcelos, com 100 passageiros. Morreram 13 pessoas, entre as quais as cinco garotas que participaram da orgia: Amanda Ferreira Silva, 20 anos; Marlene Cristina dos Santos Reis, 19; Suzie Nogueira Araújo, 18; Taiane Barros, 17; Hingridy Florêncio Viana, 16. 

Dois dias antes do acidente, alguns pais queixaram-se à polícia sobre o desaparecimento de suas filhas. Agentes da Delegacia Especializada de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente de Manaus (Deapca) descobriram que as meninas mortas haviam participado de uma bacanal e eram as mesmas que estavam sendo procuradas pelos pais. Depois, localizaram algumas meninas que retornaram a Manaus, do Amazonian. Descobriu-se, então, que três homens que estavam no Amazonian deixaram a embarcação em Barcelos e, dia 23 de setembro, retornaram a Manaus, em avião da Apuí Táxi Aéreo. 

Foi aí que identificaram o então presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal, deputado distrital Benício Tavares da Cunha Melo, do PMDB, que adotou o nome Benício Mello (prenome e último sobrenome); Randal Mendes (Sérgio Randal), cunhado de Benício Tavares e, então, chefe de gabinete da presidência da Câmara Legislativa do DF; e o advogado brasiliense Marco Antônio Attié. 

Uma das menores ouvidas pela polícia disse que Benício Tavares manteve relações sexuais com pelo menos duas menores, uma das quais Taiane Barros, 17 anos, mãe de um bebê de sete meses, e que morreu afogada no Princesa Laura. Outra garota afirmou, em depoimento à polícia, que manteve relações sexuais com Benício, que teria pago R$ 500 a ela. Uma menor disse que Benício lhe ofereceu R$ 500 para manterem relações sexuais, mas ela recusou. Seis das moças que estiveram a bordo do Amazonian garantem que Benício chegou a pagar valores entre R$ 200 e R$ 1 mil para manterem relações sexuais com ele, inclusive com as menores de idade. 

Das 17 meninas contratadas para a bacanal, seis afirmaram, em depoimento à delegada Maria das Graças Silva, titular da Delegacia Especializada de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente, que Benício Tavares esteve no iate nos dias 17, 18 e 19 de setembro, e que manteve relações sexuais com várias garotas, entre as quais pelo menos duas menores. A delegada garante que coletou elementos suficientes para provar a participação de Benício Tavares em turismo sexual. Maria das Graças Silva mostrou, dia 27 de setembro, fotografias de Benício Tavares a três meninas que participaram da orgia. Elas identificaram imediatamente o parlamentar, que é paraplégico. 

Três meninas ouvidas pela polícia garantem que no iate Amazonian havia bebida alcoólica e drogas, e que foram realizados desfiles de garotas nuas e sorteio de brindes aos participantes. Em depoimento à polícia, a cafetina Dil declarou que a bacanal foi contratada pelo dentista paulista Flávio Talmelli. “Ele disse que o passeio seria muito divertido e que todas as despesas, desde hospedagem a alimentação, seriam pagas por seus amigos. Somente convidei algumas amigas” - defendeu-se Dil. As garotas disseram à polícia que foram enganadas por Dil. O combinado é que receberiam R$ 400, mais gorjetas, mas, a bordo, receberam somente R$ 200. 

Em nota oficial, divulgada no dia 27 de setembro de 2004, Benício Tavares confirmou a viagem a Manaus, de 16 a 22 de setembro, para pescar no rio Negro, hobby até então insuspeito. Confirmou também o vôo Barcelos-Manaus. Negou relacionamentos sexuais com garotas menores de idade. Para fazer a viagem turística, Benício se licenciou da Câmara, da qual era presidente, por 10 dias, embora a casa estivesse votando uma pilha de matérias e sua presença fosse importante. Foi confirmada também a presença, no iate, do chefe de gabinete da presidência da Câmara, Randal Mendes, cunhado de Benício Tavares, e do advogado brasiliense Marco Antônio Attié. 

O Conselho Especial do TJDF instaurou processo penal contra Benício, em ação movida pelo Ministério Público. Deu em nada, e Benício foi reeleito deputado distrital.

Se a CPI das Ongs for fundo, revelará muita carniça, porque com a sacudidela que será dada inevitavelmente casos virão à tona. E os casos escabrosos na Amazônia são muitos, cometidos, muitas vezes, por políticos, empresários, funcionários públicos, que acham que não serão pegos e podem continuar devorando crianças.

domingo, 2 de abril de 2023

Metrô poderá ligar o Rio de Janeiro a Niterói por debaixo de uma Baía de Guanabara despoluída

Tuiuiú Crucificado, de Olivar Cunha: a Baía de Guanabara pede socorro

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 2 DE ABRIL DE 2023 – O jornalista carioca Rafael Freitas da Silva escreveu dois livros que resgatam nada menos do que a origem do povo brasileiro e da mais bela região metropolitana de todo o planeta, tendo como centro as cidades do Rio de Janeiro e Niterói: O Rio Antes do Rio (Relicário Edições, Belo Horizonte/MG, 2015, 472 páginas, quinta edição) e ArariboiaO indígena que mudou a História do Brasil – Uma biografia (Bazar do Tempo, Rio de Janeiro/RJ, 2022, 445 páginas). 

Em O Rio Antes do Rio, Rafael fez uma pesquisa de tirar o chapéu e resgatou o Brasil no seu nascedouro, o início do século XVI, confirmando o que somos, uma nação primeiramente tupi e depois portuguesa e africana, e tudo começou no Rio. Quando os europeus começaram a visitar o litoral, havia, na Guanabara, cerca centenas de aldeias tupinambás, entre as quais a Carioca, a mais importante delas, situada à margem do Rio Carioca, que deságua na orla do Flamengo. As mulheres tupinambás eram bonitas e quando os europeus as viram andando nuas pelas praias ficaram doidos. Não demorou a surgir uma geração de mamelucos. Aí Estácio de Sá fundou o Rio. Mais mamelucos.

No século XVI, a Baía de Guanabara já era estratégica para os portugueses, daí porque Portugal tratou de exterminar os franceses da França Antárctica e fundar uma cidade. O Rio Antes do Rio vai até aí. Então entra Arariboia, que fundou Niterói. Só que Arariboia, que era também tupi, mas da etnia temiminó, aliada dos portugueses, lutou lado a lado de Estácio de Sá contra os franceses e os tupinambás, também tupis, mas inimigos dos lusitanos. Assim, Arariboia ajudou a fundar também o Rio de Janeiro. 

Arariboia foi tão importante na construção do Brasil que recebeu do rei dom Sebastião o título de Cavaleiro da Ordem de Cristo, o nome de Martim Afonso de Sousa e terras que iam da praia do Gragoatá ao Rio Maruí, divisa de Niterói com São Gonçalo. Era um lambe-botas dos portugueses? Não! Foi o primeiro índio brasileiro a conversar com os colonos portugueses, que eram destemidos e perigosíssimos, olhando nos olhos, de igual para igual. E tinha visão. Sabia que os portugueses vieram para ficar, que viriam novos tempos. 

No século XVIII, os portugueses encontram o que mais eles procuravam: ouro e diamante, em Minas Gerais, e o Rio de Janeiro passou a ser o local de embarque da produção para Portugal, e, naturalmente, a capital da colônia. 

No século XIX, o então príncipe dom João fez o imperador da França, Napoleão Bonaparte, de otário. Quando o general Junot entrou em Lisboa para saquear Portugal, ainda viu os navios que levavam dom João e sua corte para o Rio de Janeiro. Foi uma jogada de mestre. Do Rio, dom João pôde organizar, juntamente com a Inglaterra, a resposta a Napoleão. Assim, o Rio passava a ser a capital do Império do Brasil, Portugal e Algarves. 

É a cidade mais bonita do mundo, e, a cada ano, fica mais bonita ainda. Suas praias, montanhas e avenidas são de tirar o fôlego. E fica na região mais aprazível do globo, a zona tropical. É a cidade-luz do Trópico. Tanto que é a cidade que mais recebe turistas no Hemisfério Sul. Nela, só as pessoas muito estúpidas ficam olhando a cor dos outros. O Rio é moderníssimo e ninguém, que tenha mais de um neurônio, perde tempo com arrogância étnica. Lá, também, cada qual tem sua religião. 

Em termos de Brasil, foi a partir de lá que o país começou a se tornar uma nação. De modo que o Rio de Janeiro é, para a civilização brasileira, o equivalente à Grécia para o Ocidente. Assim, o Rio é o maior difusor da cultura brasileira. Estácio de Sá, ao fundar o Rio, com ajuda de Arariboia, lançava a pedra fundamental do Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. 

Mas quando o presidente da República, o ministro da Infraestrutura, o governador do Rio e os prefeitos dos municípios banhados pela Baía de Guanabara resolverem realizar duas obras, então teremos uma cidade mais do que maravilhosa. 

A Baía de Guanabara (seio do mar) tem 380 quilômetros quadrados, sua barra  mede um quilômetro e 600 metros, e sua profundidade vai de 3, próximo às margens, a 8,3 metros, na altura da Ponte Rio-Niterói, e de 17 metros na entrada da barra. Desaguam nela dezenas de rios, que formam uma bacia de 4 mil quilômetros quadrados, banhando 17 municípios, com 10 milhões de habitantes. Dados do início da década de 1980 indicavam 5 mil indústrias jogando 460 toneladas de esgoto por dia na baía. Em vez de resolverem o problema, deixaram-no ampliar-se. 

A baía agoniza, vítima dos esgotos domiciliares e industriais, além de derrame de óleo. Hoje, são mais de 14 mil indústrias, 14 terminais marítimos de carga e descarga de produtos oleosos, dois portos comerciais, estaleiros, duas refinarias de petróleo, mais de mil postos de combustíveis e uma rede de transporte de combustíveis, produtos industrializados e matérias-primas jogando lixo diariamente na baía. Dos 260 quilômetros quadrados originalmente cobertos por manguezais no entorno da baía sobram 82 quilômetros quadrados, hoje. 

Durante os Jogos Olímpicos de Verão de 2016, no Rio, constatou-se que as praias dentro da baía contêm adenovírus, rotavírus, enterovírus e coliformes fecais. A Lagoa Rodrigo de Freitas é um esgoto. Em janeiro de 2000, vazaram para a baía 1,3 milhão de litros de óleo. Foi uma mortandade só de peixe. Antes, em março de 1975, foram 6 milhões de litros de óleo. Além de esgoto, a Baía de Guanabara é também um cemitério de embarcações abandonadas: 78, atualmente. 

O prejuízo para o Estado, na saúde, no turismo e no transporte, é de pelo menos 50 bilhões de reais ao ano. Com 15 bilhões de reais se despolui da baía. Sabe-se que é no Rio que o poder público mais rouba no Brasil. É fácil confirmar isso. Até a mídia adestrada é obrigada a publicar isso de vez em quando. De modo que há dinheiro na burra. 

Outra obra que tornaria o Rio ainda mais maravilhoso é o metrô ligando-o a Niterói por debaixo da Baía de Guanabara, como Paris é ligada a Londres por trem, com um trecho submerso de 37,9 quilômetros de extensão por debaixo do Canal da Mancha, a até 75 metros de profundidade, de Folkestone, no Reino Unido, a Coquelles, na França. A construção do Eurotúnel começou em 1988 e foi inaugurado em 6 de maio de 1994. Custou 4,650 bilhões de libras esterlinas. 

O túnel por baixo da Baía de Guanabara, da Praça XV, no Rio, à Praça Arariboia, em Niterói, beneficiaria em torno de 750 mil passageiros, diariamente. Sua construção não teria que desapropriar terrenos. De modo que se houver vontade política para estancar a roubalheira e melhorar o transporte viário do Rio-Niterói haverá dinheiro de sobra. Com a despoluição da Baía de Guanabara e metrô por debaixo dela o Rio-Niterói, que já é a cidade do Hemisfério Sul que mais cintila, ficará ainda mais maravilhosa.