Ray Cunha observa o mundo na janela do seu quarto |
RAY CUNHA
BRASÍLIA, 25 DE OUTUBRO DE 2024 – Criado em 10 de julho de 1989, o Sudoeste é parte de um projeto idealizado pelo urbanista Lúcio Costa, que o chamou de Brasília Revisitada. Em 1993, surgiram os primeiros prédios residenciais e comerciais. Separado do Parque da Cidade pela Estrada Parque Indústrias Gráficas (Epig), ao sul, ao norte fica a via Eixo Monumental, a fuselagem do avião de Oscar Niemeyer, ou Plano Piloto, centro de Brasília, que é a mesma coisa que Distrito Federal. Ao leste, o bairro faz divisa com o Setor de Indústrias Gráficas (SIG), e a oeste ficam os bairros do Cruzeiro Velho, Cruzeiro Novo e Octogonal. Em 2018, o Sudoeste já era um dos metros quadrados mais caros do país.
Comecei a frequentar o bairro na virada do século. Havia um restaurante paraense na Quadra 302 e eu, minha esposa, Josiane, e minha princesinha, Iasmim, íamos lá comer unha de caranguejo, vatapá e maniçoba, e tomar tacacá. Depois, a Associação da Seicho-No-Ie local saiu do Cruzeiro e passou a funcionar na Quadra 103 do Sudoeste.
A última vez que vi o poeta Heitor Andrade, pouco antes de morrer, em 2017, ele estava morando na Editora Thesaurus, no Setor Gráfico. Fomos andando, naquela tarde, até a Pães e Vinhos, uma cafeteria na Quadra 103, a menos de um quilômetro da Thesaurus. Comemos pão torrado com manteiga e café com leite, e conversamos, como sempre, sobre tudo.
A Pães e Vinhos é padaria, confeitaria, café e restaurante. Muito agradável. Vive lotada. Outro dia fiz uma coisa que havia parado de fazer. Jantei lá, com minha gata, e tomei algumas Cerpinhas enevoadas.
O Sudoeste é o melhor bairro de Brasília. É óbvio que se trata, aqui, de uma opinião. Para muita gente haverá de ser o Lago Sul. Mas considero o Sudoeste porque, em primeiro lugar, a Avenida Comercial do bairro é o maior aglomerado de restaurantes e cafés de Brasília. Não tem livraria, é verdade, mas há uma loja da Leitura no Terraço Shopping, na Octogonal, sub-bairro no quintal do Sudoeste.
A Avenida Comercial conta com supermercado e farmácia 24 horas, e, é claro, café também. Até certa hora da noite há todo tipo de comida. De todos os restaurantes que já frequentei no bairro gosto especialmente de dois. Um deles é self service, a Choparia Sudoeste, no Bloco C da 101 Sul. A comida de lá é uma delícia. Rabada divina e feijoada para chef francês comer ajoelhado. Outro restaurante muito bom é o Buteko da 101, no Bloco A da Quadra 101. Picanha de primeira categoria. Gosto bem-passada. Com fritas.
Costumo caminhar no Parque da Cidade, ao lado de onde moro, mas, às vezes, caminho no próprio Sudoeste. A Avenida Comercial é a principal via do bairro, composta de cinco superquadras de um lado e cinco do outro. São quadras comerciais e residenciais. Os prédios nas quadras comerciais são de dois andares e nas quadras residenciais, de seis andares.
O bairro é bem urbanizado, tranquilo e perto de tudo. Pode-se pegar ônibus circulares na Avenida Comercial ou de ligação na Estrada Parque Indústrias Gráficas (Epig), e uber, rapidamente. De uber, ou de ônibus, chegamos ao Setor Comercial Sul (SCS), coração de Brasília, ou ao shopping Pátio Brasil, em 10 minutos. Gosto de ir a cinema do Pátio Brasil, porque fica perto de casa, embora os cinemas de lá precisem de reforma, pois as cadeiras são velhas e já ficaram um pouco desconfortáveis.
Saindo do Pátio Brasil, do outro lado da Avenida W3 Sul, fica o Setor Comercial Sul. Nas minhas caminhadas rotineiras atravesso o Parque da Cidade até o Setor Comercial Sul, onde paro, às vezes, no Sebo do Ed, passo pela frente do Conic, um aglomerado de arranha-céus ao lado do SCS, sigo até o Conjunto Nacional, o primeiro shopping de Brasília e segundo do Brasil, e, de lá, para a Rodoviária do Plano Piloto, e retorno de ônibus para casa.
Em 4 de outubro de 1974, em plena fase on the road, em Buenos Aires, escrevi o poema NOITE HORRÍVEL, publicado no livro SOB O CÉU NAS NUVENS. Esse poema revela o horror de uma noite estrangeira, sem amanhã. Mas é encerrado com a sensação de conforto do nosso quarto. O Sudoeste é como meu quarto na cidade feérica.
Noite que não mais termina
Nesta estação aeroviária
Noite que apenas começou
E que não mais termina
Para um aventureiro enveredado na solidão
Inconfortado e sozinho
Revelando sua gana de escrever suas amarguras
Noite miserável rastejando devagar como lesma
Esta noite que não mais termina
Assustará nas noites de recordação
Fazendo estremecer com seu mais leve cheiro
Noite cheirando a prisão desconhecida
Que paralisa os nervos dos forasteiros ao desabrigo
Ar que fulmina
Com seu bafo gelado
Na solidão de uma chegada
Frio que não deixa sossegar.
Eis porque estou cansado e quero o aconchego de um lar
O amor de uma mulher
Ou uma poesia qualquer
Não mais essas noites.
Acho que a incerteza achei numa noite estranha
Agora sou cético
Acredito num prato de sopa
Feito por minha mãe
Não nessas sopas regadas de favores
Aprendi a ser feliz onde moram os que me dizem respeito
Aprendi, mas aprendi por aí
Onde o mar é salgado
O frio gelado
E a solidão mais forte
Quando se é fraco
Aprendi a ser feliz dando uma volta em meu quarto
Meu quarto é minha casa
Meu quarto é um desejo sem conter-se...
Tenho ambientado alguns trabalhos meus no Sudoeste. Por exemplo, o início desta crônica foi retirado do romance O CLUBE DOS ONIPOTENTES, mas um dos trabalhos que mais me remete ao bairro é meu conto A REDE, do livro TRÓPICO, e que transcrevo a seguir.
DURANTE O DIA, a umidade relativa do ar caía para 11% e a sensação térmica ficava acima de 40 graus centígrados; agora, no início daquela madrugada de domingo, a temperatura estava bastante agradável no Fran’s Café, aberto 24 horas por dia, na Quadra 302, Bloco C, Edifício Athenas, no Sudoeste, bairro de Brasília. O jornalista consultou sua caderneta Tilibra, tipo Moleskine. Estivera em algumas cidades no interior de Goiás, hospedara-se durante alguns dias nos hotéis Ita e Rio Roxo, em Goiânia, e passara uma semana no Melita Brasil 7. A jovem com quem se encontraria dali a pouco era o elo que faltava para concluir a reportagem. Pensava nisso quando seu telefone celular emitiu os primeiros acordes de Para Elisa, de Ludwig van Beethoven. Era ela. Pagou o espresso que tomara e seguiu para um prédio distante cerca de 200 metros dali. Disse ao porteiro aonde ia. Subiu pelo elevador e desceu no primeiro andar. Ela trajava uma camisola vermelha, tinha quadris largos e seios empinados, pele rosada, olhos verdes como duas grandes esmeraldas e lábios que lembravam os de Alinne Moraes. Parecia medir 1,60 metro e pesar 55 quilos.
– Você quer café? – ela perguntou ao jornalista, que se sentara em uma poltrona.
– Acabei de tomar um espresso – ele respondeu, tirando da bolsa um pequeno gravador.
A jovem havia se sentado à frente dele e cruzado as pernas.
“É linda demais” – pensou o jornalista.
Era em torno de 8 horas quando ele deixou o apartamento. O porteiro olhou-o com inveja. Caminhou até o Fran’s e pediu café com leite e uma baguete tostada com manteiga. Na entrada da confeitaria Pão de Ouro havia uma dupla de mendigos. Passou por eles, desejando-lhes boa sorte. O carro, um Gol vermelho, estava estacionado próximo de dois containers. Centenas de pombos fervilhavam ali; havia até um carcará, que bicava alguma coisa presa em uma de suas garras. Quando pôs o carro para funcionar os ratos de asas pararam um segundo e logo voltaram a fervilhar, como formigueiro assanhado. Reinaldo pôs o carro em marcha e minutos depois entrou no Eixo Monumental. Passou defronte à Câmara Legislativa, “o albergue dos parasitas”, e logo alcançou a Esplanada dos Ministérios, com as bacias do Congresso Nacional destacando-se ao fundo. Estacionou na Rodoviária do Plano Piloto e se dirigiu à banca de revistas. Comprou a revista Veja e o jornal O Globo. Pegou o carro e se dirigiu rumo à ponte Juscelino Kubitschek e cruzou o Lago Paranoá. “O sol já está a ponto de matar europeu sem protetor solar e chapéu” – pensou. “A bacanal de alguns príncipes do Congresso Nacional, empresários, diplomatas e turistas libidinosos vindos do frio vai sofrer um abalo, a partir de quarta-feira, quando o Observador de Brasília chegar às bancas. Brasília vai pegar fogo.”
Só prestou atenção à moto quando ela já estava ao lado da sua janela. O carona disparou duas vezes. O carro entrou no cerrado e parou logo adiante. O que atirou correu até lá, pegou a bolsa do jornalista e deu mais dois tiros na cabeça dele.
Vistos ao longe, o comércio e as casas do Lago Sul dormiam,
indiferentes, ao sol.
Muito interessante e bem escrito o conto acima. Aaaaaadoreeeeei! Parabéns, querido Ray!
ResponderExcluirComo sempre, um bom artigo com a indelével marca desse grande escritor, Ray Cunha.
ResponderExcluir