sexta-feira, 25 de março de 2022

Amapá comemora um dos mais criativos artistas plásticos da Amazônia Caribenha: Olivar Cunha

A Última Ceia recriada por Olivar Cunha: o primeiro
apóstolo, à esquerda, é o próprio artista, e o sexto
apóstolo, também à esquerda e junto a Jesus Cristo,
é o 
ensaísta, ficcionista e poeta Fernando Canto

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 25 DE MARÇO DE 2022 – O escritor Fernando Canto, maior colecionador do trabalho do artista plástico Olivar Cunha, prepara, com a presença do pintor em Macapá/AP, em julho, uma exposição em comemoração aos 70 anos do artista e 55 anos de profissão. Em 31 de março de 1952, João Raimundo Cunha plantou uma seringueira no quintal. Na casa, nascia Olivar Cunha, na Rua Iracema Carvão Nunes, esquina com a Rua Eliezer Levy, um prédio de alvenaria pintado de amarelo, remanescente do antigo Aeroporto de Macapá, ao lado do Colégio Amapaense, que, à época, só tinha metade do que é hoje. 

Atualmente, a seringueira intercepta o muro oeste do Colégio Amapaense, na Rua Eliezer Levy, e bem que merece ser melhor tratada pela Prefeitura de Macapá, pois se tornou um ícone da cidade, por representar um dos maiores artistas plásticos amazônidas. Amazônida no sentido do termo atribuído pelo jornalista Lúcio Flávio Pinto: o caboco, o ribeirinho, o nativo da Hileia. 

A seringueira já escapou de ser decepada graças à intervenção do engenheiro florestal Luiz Guilherme Dias Façanha, nascido em 18 de julho de 1952, amigo de infância de Olivar Cunha. Em 1983, Luiz Façanha trabalhava como especialista em seringueira (Hevea brasiliensis) na extinta Superintendência da Borracha (Sudhevea), um dos órgãos federais absorvidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A seringueira apresentava uma grande lesão no tronco. Debilitada, foi atacada por fungos e insetos. 

Segundo Luiz Façanha, estudantes fizeram forte pressão junto à Prefeitura de Macapá e ao Governo do Estado para que autorizassem abater a árvore, alegando risco de vida para quem por ali transitava. Foi então que o repórter da Rede Globo, Antônio de Pádua, solicitou a Luiz Façanha que fizesse uma gravação no local, para dar sua opinião sobre o caso. Após minuciosa inspeção, Façanha verificou que a árvore estava se recuperando do ferimento, embora muito lentamente, e em razão disso posicionou-se contrário ao abate. 

– É claro que pesou na minha decisão todo o histórico da nossa infância brincando em volta daquela árvore: Olivar, João, Chico, Ray Cunha e eu. Minha convivência com o Olivar foi, basicamente, no nosso período de infância. Estudamos juntos no então Grupo Escolar Anexo da Escola Normal e lá fizemos todo o Curso Primário, nos idos dos anos 1950/1960. Após as aulas, dividíamos nosso tempo brincando pelos quintais do seu João (pai do Olivar), correndo por cima dos muros e se pendurando nas árvores do quintal – lembra Luiz Façanha. O fato é que a Rede Globo e Luiz Façanha salvaram a Seringueira. 

Em 2004, a Editora Cejup, de Belém do Pará, publicou meu romance A CASA AMARELA, ambientado em Macapá, a partir do ano de 1964. Nele, a Seringueira, já com inicial maiúscula, se tornou personagem do romance, com atitudes humanas, como, ao se emocionar, sacudir as folhas sem vento e verter leite sem golpe no tronco. 

O gênio do artista plástico começou a se revelar no curso primário; seus trabalhos eram formalmente impecáveis e já revelavam criatividade. Pré-adolescente, começou a brincar com seu pequeno prato de massas coloridas e pincéis de tamanhos variados. Aos 14 anos, em 1966, Olivar Cunha já pintava profissionalmente e aos 15 expôs pela primeira vez. Uma madrugada, um marchand francês acordou todo mundo, em casa, porque teria que viajar para a França naquela manhã e queria porque queria levar alguns quadros do Olivar, e levou o que estava disponível. 

Nas décadas de 1970/1980, casado com Maria da Glória Nascimento Cunha, o artista morou em Belém, quando produziu algumas dezenas de telas que o colocam como um dos mais importantes artistas plásticos contemporâneos: seus mendigos do Guamá, subúrbio da Cidade das Mangueiras, são chocantes. Olivar e Glória namoraram durante 7 anos e foram casados por 7 anos. Ela partiu cedo para o mundo espiritual. 

Em Belém, Olivar Cunha ganhou um novo nome: Lili, batizado pela sua filha Tatiana, assim que ela aprendeu a falar, e que lhe deu um neto: Bernardo Cunha Barros. Lili teve outra princesa com Glória: Taiana, que também lhe deu um neto: Alexandre Cunha de Sousa. 

Viúvo, Lili foi para o Rio de Janeiro estudar artes plásticas no Parque Lage, onde foi aluno do professor Charles Watson. Também fez um curso de restauração no Museu Nacional de Belas Artes. De volta a Macapá, conhece a capixaba Célia Maria Rocha Cunha, em 1986, casam-se no ano seguinte, e, em agosto de 1988, mudam para o Espírito Santo. Do segundo casamento nasceram Ângelo Ticiano Rocha Cunha e Luciano Rocha Cunha. 

Nos anos de 1990, consolida sua posição como um dos grandes expressionistas contemporâneos, com a série de animais agonizando nos esgotos das grandes cidades, como na impressionante acrílica sobre tela Tuiuiú Crucificado, uma ave crucificada pairando sobre a Baía de Guanabara – talvez o berro mais fovista, o grito mais expressionista de Olivar Cunha. 

Ele pintou esse quadro em três meses, em 1992, em seu apartamento na praia atlântica de Jacaraípe, distrito do município de Serra, na grande Vitória do Espírito Santo. Trata-se de uma acrílica sobre tela, em espátula e pincel, de 120 por 100 centímetros. Pertence à fase que o pintor chama de Habitat Transform, desenvolvida no Rio de Janeiro e em Jacaraípe, após pesquisa sobre a devastação da flora e da fauna do Amapá, do Pará e do Pantanal. 

Apesar de contar com o mar onde foi fisgado o maior marlim azul do mundo, o Atlântico ao largo do Espírito Santo, é a Amazônia que pulsa nas telas do gênio. Mas, depois que se mudou para Jacaraípe, começou também a recuperar obras sacras, esculturas com valor também histórico, de igrejas de vários municípios do Espírito Santo. 

O gênio pinta a alma das suas criaturas, sejam elas pessoas ou paisagens. Assim, as telas de Olivar Cunha gritam como o coração das trevas, mas também pulsam no rio da tarde, prenhes do perfume dos jasmineiros noturnos. O artista dá à luz a Amazônia eternamente viva, a Hileia que só os cabocos entendem – os apreciadores de merengue, de mapará assado na brasa servido com pirão de açaí, o trotar da mulher amazônida no calor equatorial, o mergulho no rio que deságua na tarde, os segredos que se encerram na Fortaleza de São José de Macapá, no Trapiche Eliezer Levy, no Ver-O-Peso, na Estação das Docas, em Mosqueiro, em Salinas, no Bailique, em Caiena, na Amazônia Caribenha. 

No romance JAMBU, que mistura personagens de ficção com pessoas reais, faço uma homenagem ao pintor Olivar Cunha, ao poeta e cronista Isnard Lima, pai da minha geração perdida, e à pianista Walkíria Lima, mãe de Isnard e pioneira das artes em Macapá. Segue-se trecho: 

“Além de estudantes e expectadores em geral, que disputaram uma das duas mil poltronas da luxuosa casa de espetáculos, a aristocracia amapaense estava em peso no Teatro Açaí, do Hotel Caranã, muitos deles em roupas de luxo, algumas, espalhafatosas, lembrando sapos encasacados, inchados de tanta comida e dinheiro, guardado em bancos e malas; se fossem postos de cabeça para baixo não cairia um níquel sequer, pois quem é viciado em dinheiro esconde-o. Alguns estavam tão inchados que se alguém ficasse olhando para eles esperaria ouvi-los coaxar. 

“Quando a professora Walkíria Ferreira Lima entrou no palco, os músicos da Orquestra da Escola de Música do Amapá levantaram-se e o público também, aplaudindo-a em pé. De porte frágil, agigantava-se no púlpito. Nascera em Manaus, onde se formou em música, começando os estudos de piano aos 10 anos de idade. Chegou a Macapá na década de 1950, e começou a lecionar canto orfeônico na Escola Barão do Rio Branco e na Escola Industrial do Amapá, antes da criação do Conservatório Amapaense de Música, onde ensinou piano e solfejo. 

“Walkíria Lima foi ainda uma das fundadoras da Academia de Letras do Amapá, patrocinando a cadeira 40. Casou-se com o mágico Isnard Brandão Lima e teve um único filho, o poeta manauara-macapaense Isnard Brandão Lima Filho, autor de Rosas Para a Madrugada e Malabar Azul. Isnard sentara-se na primeira fila. Pálido, olhos amendoados e olhar intenso, cabeleira penteada como a de Castro Alves, bigode, fumante inveterado e dipsomaníaco, lembrava um misto de toureiro e dançarino de tango. Ao lado dele, sentara-se o gênio do pincel e da espátula Olivar Cunha, que assinava os 21 painéis que compunham a exposição oficial do Festival de Gastronomia do Pará e Amapá”.

O lema de Olivar Cunha sempre foi “viver é um tesão”. A presença dele, sua simples lembrança, me causa alegria, uma espécie de sensação de coisa nova, de descoberta, de novas possibilidades, de viagem, de aventura. Ele emana uma força poderosa até no repouso, no silêncio, na simplicidade. Mas seu grande poder se manifesta ao usar a paleta, o pincel e a espátula, em busca do triunfo da luz.

Tuiuiú Crucificado sobre esgoto na Baía de Guanabara, Rio de Janeiro

Klingerly, Márcio, Linda, Marina Cunha, Olivar Cunha e Mel

A Seringueira na capa de A CASA AMARELA, edição da Amazon

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