sexta-feira, 20 de agosto de 2021

A eternidade do agora

O jornalista amazonense Isaías Oliveira inspirou
a personagem central do conto INFERNO VERDE

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 20 DE AGOSTO DE 2021 – Em 1975, em Manaus, o jornalista Isaías Oliveira me disse algo que remoí nos 25 anos seguintes: “O passado é feito do que há de melhor”. Tínhamos, então, 21 anos de idade, e Isaías Oliveira, ex guia de turistas na selva, começava, como eu, a carreira jornalística. Ele já me impressionava, sobretudo pela sua serenidade. A personagem central do meu conto Inferno Verde, o jornalista que duela com o psicopata Cara de Catarro, foi batizado de Isaías Oliveira, e tem os olhos grandes e expressivos do seu homônimo da vida real.

Criei, e utilizei em mais de um trabalho de ficção, uma frase que equaciona o que Isaías Oliveira me dissera décadas atrás: “O agora e o agora, o momento mesmo da vida”, no sentido de que não existe passado, nem futuro, mas somente a intensidade do agora.

Mas se não existe, por que Isaías Oliveira teria me dito que “o passado é feito do que há de melhor?” E aquela zona escura da nossa personalidade, que não confessamos nem para nós mesmos? E os crimes que cometemos, inconfessáveis, e que somente nossa consciência pode punir, por meio da angústia, às vezes tão aguda que sangra a alma? Como fugir dessa zona sombria, se ela está alojada no subconsciente, indelével? Podemos até esquecer esse inferno, mas, sempre que a oportunidade se apresenta, ele se manifesta.

Minha esposa, Josiane, preletora da Seicho-No-Ie e psicóloga, vive me dizendo: “Tudo o que realizamos deve ser feito como a coisa mais importante da nossa vida, com amor, para que beneficie o mais amplamente o maior número de pessoas”.

Ontem, li, em voz alta, o preceito de um calendário da Seicho-No-Ie, que diz: “Concentre-se no agora e viva plenamente. Você nasceu neste mundo para viver plenamente cada momento de sua vida. Aprimorou sua alma valorizando o passado e visualizando um futuro radioso. Concentre os esforços naquilo que deve ser feito agora. Só assim abrir-se-á a porta de seu futuro. É essencial cumprir bem a missão que lhe cabe no momento” (Seicho Taniguchi).

Minha filha, Iasmim, que me ouvia, disse: “Pai, o passado nós vivificamos; o presente, vivemos; o futuro, a gente constrói”. Com efeito, o passado é feito do que há de melhor, mas sem nostalgia, sem tentar resgatá-lo e estacionar nele, sem voltar ao passado para nos castigar e mergulhar na angústia, agonizar, morrer.

Se temos algum ajuste com o passado, só precisamos nos arrepender, ou seja, não cometer mais o que nos angustia tanto, e aceitar o resultado da colheita, por mais terrível que seja. De real, naquilo que já foi, só há os antepassados, nossas raízes, o riso mais cristalino de quando éramos criança. E o futuro será sempre o reflexo do agora e o agora, o momento mesmo da vida.

Já faz tempo que vivo cada dia, cada momento. Ainda tenho muitos livros para escrever, mas não estou preocupado com isso, não estou preocupado se conseguirei escrevê-los. Quero é ver telas novas de Olivar Cunha e ler um livro de contos de Joy Edson, quero ver crianças rindo e rosas que não se importam de se desnudarem na minha presença.

O momento mesmo da vida é o azul mais azul, intenso como a nudez das rosas vermelhas à luz de manhãs ensolaradas, como o primeiro beijo, como gemidos no silêncio da noite, ao voarmos na luz da mulher amada, na eternidade do agora.

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