domingo, 11 de fevereiro de 2024

Contos de uma Amazônia diferente da fantasia de Leonardo DiCaprio. Memorial dos Gatos

Edição de AMAZÔNIA do Clube de Autores: a Hileia real, nuazinha

BRASÍLIA, 11 DE FEVEREIRO DE 2024 – A Amazônia povoa o imaginário das pessoas em todo o planeta. Porém, geralmente, é uma Amazônia irreal. Em AMAZÔNIA, Ray Cunha ambienta 29 contos na última fronteira da Terra, despindo-a de qualquer enfeite e exibindo-a como ela é, em toda a sua nudez e realidade – tanto a Hileia quanto as grandes cidades incrustadas na selva.

Algumas dessas histórias curtas são inéditas, mas a maioria compõe a reunião da trilogia homônima, publicada nos livros: A GRANDE FARRA, TRÓPICO ÚMIDO e NA BOCA DO JACARÉ. 

Quanto às personagens ou situações destes contos, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, pois são apenas frutos da criação do escritor. 

Ray Cunha nasceu em Macapá/AP, cidade situada na esquina do maior rio do mundo, o Amazonas, com a Linha Imaginária do Equador, e, durante uma década e meia, trabalhou como repórter nos maiores jornais da Amazônia Clássica, viajando amplamente por todo o Trópico Úmido brasileiro. 

É autor dos romances: JAMBU, OCLUBE DOS ONIPOTENTES, FOGO NO CORAÇÃO, HIENA, A CONFRARIA CABANAGEM e A CASA AMARELA, todos à venda no Clube de Autores e na amazon.com.br. 

Segue-se o conto Memorial dos Gatos.

Os três animais, com seus donos, estavam quietos, na antessala do ambulatório do Curso de Graduação em Veterinária da Faculdade de Ciências Agrárias do Pará. Eu os via através do vidro que separava o ambulatório da antessala. Não sei por que me lembravam criminosos baleados, capturados pela polícia e levados ao pronto-socorro. Atendi primeiramente o cachorro, que fora esfaqueado.

    – Doutor, este meu cachorro não tem culpa. Não deixe prenderem ele. Só atacou meu vizinho, que é açougueiro de profissão e assassino de cachorro por prazer. Só porque meu Hércules avançou nele deu essa baita facada no bichinho. Sorte que não degolou o pobre. Se a facada não tivesse pegado de jeito nele, meu Hércules teria arrancado os colhões daquele assassino, com licença da palavra.

– Foi só de raspão, madame.

– Sempre me disseram que aqui o tratamento é de primeira; posso consultar o senhor?

– Só animais, senhora.

– Me disseram que o senhor é o mandachuva daqui, por isso faço questão que meu Hércules seja atendido pelo senhor.

– Sou apenas um dos professores e atendo a comunidade todas as segundas e sextas-feiras – disse à mulher.

– Mas o senhor merecia ser médico. Tem jeito para pegar no meu Hércules. Como é que eu vou lhe pagar, meu santo doutor?

            – Aqui, tudo é de graça.

– Meu Deus, onde já se viu isso! Vou acender uma vela para o dono disso aqui. Na minha cidade, Abaetetuba, o médico de lá cobra por tudo e corta todo mundo. Diz que todo mundo tem o tal de câncer. Depois que vim pra cá pra Belém tudo é de graça e do bom e do melhor. Até remédio é de graça; o senhor não poderia me arranjar alguns?

– O que é que a senhora sente?

– Uma opressão aqui no peito! Quando vi meu Hércules sangrando na peixeira daquele assassino tive uma vertigem. Só não fui dar parte na polícia porque ainda iam querer prender meu Hércules. O Geronço açougueiro é irmão de um investigador muito brabo. Mas vou mandar darem uma surra naquele assassino. Só tenho medo do investigador descobrir, me prender, bater em mim e em todo mundo lá em casa e depois expulsar a gente da cidade sem direito a levar nada. Mas vou acender uma vela preta que é pra ele ver o que é bom.

– A senhora tem de trazer o cachorro de novo, sexta-feira. Traga neste mesmo horário. E não o deixe atacar as pessoas.

– Mas ele é manso, doutor. Avança nos outros só de brincadeira.

        – Dê esse remédio para ele, de seis em seis horas. Dilua num pouco d’água.

– Vou trazer uns peixes para o senhor.

– Tudo bem, obrigado. Agora leve o Hércules para descansar e esqueça o açougueiro. Vá com Deus.

– O senhor é um santo! Que Deus lhe pague. Sexta-feira, vou trazer de novo meu Hércules, doutor. Que Deus lhe abençoe!

Olhei os outros dois pacientes. O galo inspirava mais cuidado.

– O que foi que aconteceu a este galo? – perguntei ao dono da ave.

– Este galo é um rei aposentado, doutor. Lutou, ontem à noite, contra o Gigante da Terra Firme. Perdeu um olho, mas acabou com a raça do Gigante; não sei se o dono, o Dicão de Abaeté, comeu ele, ou enterrou. Se fosse este meu rei, aqui, seria enterrado com missa de corpo presente. Conheço um padre que faria isso. Mas agora este bicho vai descansar.

– Está cego mesmo. Só vai dar para fazer um curativo.

– Eu lhe agradeço muito, doutor, e quero convidar o senhor para comer uma tracajazada, domingo, lá em casa. É uma casa humilde, mas farta, graças a Deus. Faça o que for possível pelo meu campeão. Este galo já me deu muita alegria, mais até do que o Paissandu, que só tem me dado raiva.

– Ele tem que ficar de repouso.

– Ele vai é ficar de repouso o resto da vida. Não vou deixar que a Geralda, minha mulher gulosa, aquela mucura velha, coma ele. Já deixei ela comer muitos galos meus, tudo pé-duro.

– Ele vai ficar bem.

– Como é, o senhor aceita a tracajazada?

– Fica para outra vez. Já tenho compromisso para domingo... É, ele só sofreu praticamente uma bicada no olho.

– Que Deus guie sempre suas mãos, doutor. Este galo é como Muhammed Ali, um bailarino, uma borboleta! Mas agora este rei do tablado vai descansar, vai curtir do bom e do melhor.

– Pronto! Agora ele pode se aposentar com dignidade.

– O senhor não sabe como eu fico feliz de ouvir isso, doutor! Sinceramente, não sei como agradecer a sua fineza. Já que o senhor não pode ir domingo lá em casa vou trazer pro senhor um quilo de tracajá e outro de tucunaré.

– Vá com Deus e o seu campeão. Sei que ele terá uma aposentadoria esplêndida.

– Que Deus abençoe essa sua mão de santo, doutor! Fique com Deus!

Na antessala aguardavam-me o gato e sua dona. O bichano estava quieto, no regaço da mulher. A água fervente atingira-o apenas em alguns pontos.

– Ele já está conformado com o que aconteceu. Foi a vizinha. Quando voltar pra casa vou tomar satisfação daquele cabo de guarda-sol empertigado.

– Deixe isso pra lá, madame, não é nada grave; por isso atendi primeiramente o cachorro esfaqueado e depois o pugilista.

Adoro gatos. Foi por causa deles que me tornei veterinário e me separei de Tharcilla. Ela não os suportava na mesma medida em que os aprecio. São dóceis, voluntariosos, macios, silenciosos. Valiosos apenas pela sua companhia silenciosa e limpa. Valem pelo que são. Mas, sobretudo, inspiram-me caridade. Tenho, atualmente, 43 bichanos na minha casa, na Estrada do Coqueiro. Herdei de meus pais a casa na Estrada do Coqueiro, onde continuo morando. Meus gatos andam por lá, à vontade, caçando e dormindo. Gosto de vê-los. Minha preferida é uma gata homônima de Tharcilla, grande e branca, que já cansou de me trazer rolinhas recém-capturadas. Depeno-as, corto-lhes a cabeça e as pernas, limpo-as e devolvo-as a Tharcilla, que as devora com grande prazer. Meu amor pelos gatos remonta à minha infância; de tanto vê-los morrer. Eles morriam como crianças que apanham até o fim. Eu tinha doze anos quando conheci Tom-Tom, um menino novato no bairro, dono de uma cadela, chamada Barriga. Uma cadela bassê. Não era bem bassê, mas uma mistura com vira-lata. Barriga era uma cadela assassina. Matava gatos. Um dia, brincávamos no monturo onde nos reuníamos. Perguntei por que o focinho de Barriga era só cicatrizes. Tom-Tom me chamou, e aos outros, para o fundo do quintal de uma das casas da vizinhança. Um gato, desses comuns, estava deitado numa parte do chão completamente sem mato. Era uma tarde terrivelmente quente e o bicho estava ali, na frescura da terra. Barriga se aproximou dele, devagar, farejando. O gato se voltou para ela, mas não se levantou. Como quem não quer nada, a cadela chegou bem junto ao gato. Nós estávamos escondidos. Então, de repente, rápida como uma cobra, ela mordeu uma patinha do gato. Ele emitiu um miado horrível, mas já estava com uma pata fora de combate. Então Barriga pegou-o na costela e deu-lhe uma dentada. A cadela era rápida como um raio. O gato tentou se arrastar, mas a cadela abocanhou seu pescoço e sacudiu-o. Logo o animal estava morto. Aquilo durou menos de um minuto. Morto, o gato parecia muito feio, ensanguentado e sujo de terra. Assemelhava-se a uma pasta feita de sangue, terra e pelo. Tom-Tom pegou um pedaço de pau e começou a cavar. Nós o ajudamos. Barriga sentara-se próximo de nós e acompanhava o serviço. Seu focinho era sulcado de cicatrizes, uma das quais começava junto do olho esquerdo.

– Este foi fácil – disse Tom-Tom, quando acabamos de enterrar o gato. – Sei onde tem um grande. Vamos lá, cambada!

O gato era ainda jovem, mas estava a caminho de ser realmente grande e começava a ter a cara de mau, com grandes olhos vermelhos e pelo amarronzado, que lhe dava um tom sujo e antipático. Pertencia a um vendedor de peixe. Animal e dono eram ultrajantes. Mas, apesar de repulsivo, aquele gato não merecia ter a morte que teve. Quando o encontramos comia uns restos de peixe em um monturo próximo da sua casa. Percebeu nossa aproximação ainda de longe e se pôs em guarda. Fizemos um cerco, de maneira que ele ficou encantoado no muro de um clube que havia ali, bastante frequentado nos fins de semana, onde aquele gato feio deveria comer as sobras de comida, engordar e ficar daquele jeito. Na primeira investida de Barriga o bicho ficou todo eriçado e acertou uma patada na orelha da cadela, de onde minou sangue. Barriga conseguiu morder o rabo do bichano – deve ter doído muito, a julgar pelo berro horripilante que o gato emitiu – e pulou em cima dele. Embolaram-se. Ela visava sempre a barriga. Conseguiu morder ali com tanta força que o gato se desequilibrou. A cadela aproveitou e quebrou uma das patas dele com uma dentada terrível. O bichano tentou correr, mas foi tarde demais, pois a cadela enfiou os dentes novamente na barriga dele. Dessa vez o bicho caiu sem forças para resistir. Então, sem pressa, a cadela se aproximou dele, procurando evitar a pata dianteira sã, e segurou-o pelo pescoço. O gato emitiu um lamento lúgubre. Ela apertou os dentes, sem pressa. O gato, agora, só fazia gemer. Barriga o ergueu e o atirou adiante. Fez isso várias vezes. Pensamos que o gato estava morto, mas o animal ainda tentou se arrastar. Aí Barriga acertou-o com uma daquelas dentadas implacáveis na barriga, e o gato não mais se moveu. Enterramos aquele também.

– Mais um – disse Tom-Tom. Era um menino mais velho do que nós, uns cinco garotos que frequentemente brincávamos juntos. Devia ter uns quatorze anos. Lembrando-me dele, agora, vejo-o, com seus olhinhos de tubarão e nariz de porco.

Certa vez estávamos jogando peteca quando ouvimos os latidos de Barriga. Ela apareceu com o focinho ensanguentado. Queria que a seguíssemos. Pouco adiante, o mato estava revolvido e havia sinais de luta por ali. O gato, enorme, estava deitado, como que descansando, ganhando força. Deve ter sido uma luta e tanto, pois Barriga tinha um corte feio, do pescoço até quase o olho. Quando nos viu o gato tentou se arrastar. Estava no fim. Barriga o moera literalmente. Tenho a impressão de que aquela cadela chamou a gente para vê-la executar o gato, e isso me deixa arrepiado. Sem pressa, o pescoço ensanguentado, ela se aproximou do bichano, que ficou atento, e pegou-o pela única pata sã. Ouvimos quando suas mandíbulas rebentaram aquela pata e ouvimos o lamento do gato. O animal era uma massa sanguinolenta. Não podia mais sequer arrastar-se. Então Barriga o segurou na barriga e deu não sei quantas dentadas, até que aquela massa sanguinolenta se aquietasse definitivamente. Era quase noite. Tom-Tom fora embora para ver os cortes na cadela e os outros meninos o acompanharam. Sentei-me na relva e fiquei ali, sozinho, até que escurecesse de vez. Tom-Tom enterrava sempre os gatos que sua cadela matava, mas dessa vez, como Barriga estivesse sangrando, deixou o cadáver ali. Um pouco mais adiante de mim, mergulhado na negrura da noite que se espalhava como neve, jazia o cadáver do gato. Então ouvi um miado. Parecia que o miado viera de outro mundo. Talvez tenha sido impressão minha, mas um grande cansaço tomou conta de mim. Naquele momento tomei duas decisões: matar Barriga e me tornar veterinário.

Tom-Tom jamais soube quem matou sua cadela. O caso aconteceu da seguinte maneira: um desses circos caindo aos pedaços se instalou na Cidade Nova, no município de Ananindeua, zona metropolitana de Belém. Eles tinham um leão velho e ossudo e soube que o alimentavam com cachorros vira-latas. Combinei tudo com o tratador do leão. Tom-Tom estudava de manhã. Eu também. Disse em casa que não haveria aula naquele dia, peguei Floco de Neve, meu gatinho, agasalhei-o na cestinha da bicicleta e passei defronte à casa de Tom-Tom. Barriga me viu e ficou hipnotizada pelo meu bichano, um lindo gatinho que ganhara de presente. Chamei a cadela. Ela veio. Atraí-a até um terreno baldio próximo de casa, onde já havia guardado a caixa. Abri-a. Barriga viu o pedaço de carne e entrou na caixa para pegá-lo. Fechei-a. Barriga era uma cadela silenciosa. Isso facilitou seu fim. Fui rapidamente em casa, deixei Floco de Neve e a bicicleta e voltei para pegar a caixa com Barriga. Apanhei um ônibus, levando a caixa comigo, e desci na Cidade Nova. O tratador pegou Barriga com uma vara comprida e um laço na extremidade. Vocês precisavam ver como a cadela se debatia e gania à caminho da morte. O leão devia estar doente, pois parecia muito quieto. Era possível ver suas costelas. O tratador abriu uma portinhola na parte de cima da jaula, ergueu Barriga e atirou-a lá dentro. Ela defecou. O leão se levantou. A cadela pulou, tentando sair pela portinhola por onde entrara, e que agora estava fechada. O leão lhe deu uma patada e ela caiu tremendo. Então a fera abocanhou a cadela no pescoço. Ouvimos ossos sendo partidos. Pedi ao tratador a cabeça de Barriga, que pus num saco e a escondi numa árvore até tarde da noite, quando dei um jeito de sair de casa e joguei a cabeça na varanda da casa de Tom-Tom. Pouco depois sua família mudou-se do bairro e nunca mais o vi.

Minha ex-mulher é policial, exímia atiradora. Eram duas horas da tarde. Fazia um calor dos diabos. Tharcilla estava de folga e tentava cochilar. Naquela época, eu criava um gato grande, branco, malhado de preto. Chamava-se Colhudo, porque o bicho tinha um par de ovos que pareciam de carneiro. Era um gato sacana. Vivia na sacanagem com as gatas da vizinhança. Pois bem, naquele dia, em pleno sol de rachar, o bichano estava tentando comer uma gata. Minha ex-mulher se levantou da cama aborrecida, pegou o rifle, foi para a janela e fez pontaria. Foi tudo muito rápido. Eu estava sentado à escrivaninha, lendo e dormitando, próximo à cama.

– Grita agora, sacana! – ela disse.

Levantei-me e olhei em direção ao tiro e vi Colhudo tombado sobre a latada de maracujá. Saí de casa e corri para a latada. Colhudo parecia estar deitado. Sua cabeça fora pulverizada. Seus miolos voaram longe. Retornei à casa.

– Cai fora, cadela – disse à Tharcilla. Ela não se mexeu. Só se mexeu três dias depois, quando viu que eu não estava brincando. Casáramos com separação de bens e a casa era herança do meu velho.

Como se aquela puta não fizesse barulho quando gozava.

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