domingo, 18 de fevereiro de 2024

TRÓPICO: qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência. Em Brasília é assim mesmo

Edição do Clube de Autores: Tuiuiú Crucificado, de Olivar Cunha

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 18 DE FEVEREIRO DE 2024 – Desde 1987, acompanho o dia a dia da política em Brasília. Trabalhei nos maiores jornais da cidade e alguns portais, como repórter, redator e editor, bem como prestei assessoria de imprensa para vários congressistas, durante mais de meia década, o que me proporcionou um filão de personagens, situações e ambientes para meu trabalho de criação. 

Esse tipo de experiência que o jornalismo fornece ao escritor é usado por todos nós. Ernest Hemingway, por exemplo, usou esse recurso largamente. Seu mais ambicioso romance, Por Quem os Sinos Dobram, é ambientado no que Hemingway viveu durante a Guerra Civil da Espanha, como jornalista. 

Basta lermos um pouco sobre a imprensa brasileira durante a virada do século XIX para o XX para vermos escritores, como Machado de Assis, acompanhando a política com artigos e crônicas e usando também esse material no seu trabalho de criação. Aliás, é uma tradição mundial os escritores ganharam a vida como jornalistas. É claro que, quem pode, procura ficar longe das redações, principalmente, hoje, no Brasil, com uma imprensa tão podre que fede longe. 

Pois bem, conheço razoavelmente o Congresso Nacional, a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios. Atualmente, aparece, eventualmente, algum político encomendando um editorial, ou algum empresário da mídia me pedindo um artigo ou uma matéria. Desde que isso não signifique empurrar uma peixeira no ventre da verdade, escrevo-os, e isso me proporciona algum dinheiro. Mas procuro reservar meu tempo para escavar minha memória e alicerçar meu trabalho de invenção. 

TRÓPICO (Editoras Clube de Autores e amazon.com.br, 229 páginas) reúne 29 contos, a maioria ambientada na Brasília política. Porque existe a Brasília dos candangos, dos brasilienses, gente trabalhadora e honesta. A Brasília política abriga uma fauna enviada por todos os estados do Brasil; nenhum com marca na testa. 

Já teve até um deputado, Hildebrando Pascoal Nogueira Neto, do Acre, que matava pessoalmente seus desafetos com motosserra, cortando-os vivos, a partir dos membros. E tem deputado que já foi flagrado pela polícia com a cueca recheada de dinheiro roubado, assim como colarinho branco graduado com malas de dinheiro clandestino, compra de parlamentares, assalto a estatais, o cão chupando manga verde no despautério do mundo. 

Em TRÓPICO, há esse ambiente. Bandidos de alta periculosidade, matadores de aluguel, rede de prostituição, jornalistas canalhas, excrescências capazes de entregar até suas filhas aos mandachuvas. Mas, caro leitor, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A fauna que pulula em TRÓPICO são apenas personagens de ficção. 

Selecionei um conto de TRÓPICO para o distinto leitor. Boa leitura! 

O Deputado 

O deputado parecia uma égua prenha de tão barrigudo. Acabara de comer de uma marmita de um quilo a mesma comida gordurosa que seu chefe de gabinete, e soltava pequenos arrotos em sequência.

– É pegar ou largar – disse para seu assessor de imprensa.

O caso era o seguinte: o deputado fora eleito líder da Minoria e colocaria seu assessor de imprensa lá, desde que ele concordasse em lhe repassar um terço do seu salário.

– Eu lhe dou a resposta, amanhã, deputado – disse o assessor de imprensa.

O deputado pensou um pouco.

– Está bem – disse. – Amanhã!

A esposa do deputado, que estava presente, disfarçava lixando as unhas, mas estava atenta ao diálogo. Era uma dessas mulheres fúteis, que passava a vida participando de festas com o único objetivo de aparecer nas colunas mundanas.

“Liderança da Minoria, meu Deus, onde fui parar” – pensava o jornalista, ao deixar o gabinete do deputado. “E ainda ter que continuar a dar o suor do meu rosto a esse depravado...” Ele sabia o que é que o deputado fazia, de vez em quando. Enquanto uma assessora dirigia seu carro, ele comia a outra no banco traseiro. Depois, a que acabara de ser comida ia ao volante enquanto a outra era papada. O deputado parecia um porco reprodutor. A mulher dele devia saber de tudo, mas não se importava. Certamente tinha seu pé de pano. “Bom, de qualquer forma tenho que dar uma resposta a esse filho de uma égua.”

No dia seguinte, o assessor de imprensa se apresentou ao novo líder da Minoria, para dar a resposta.

– Consegui um salário de 10 mil reais, mas tu vais repassar 5 mil para o Machado (o chefe de gabinete) e vais ter que atender ao gabinete e à liderança. Outra coisa: para de replicar matéria falando mal do Presidente. Vamos publicar no site somente matérias positivas, mostrando o crescimento do país. Que mania, só ver o lado ruim das coisas! Quero que tu cries um blog para mim e também quero ter um Twitter – disse o deputado, igual uma metralhadora.

O soco pegou-o na boca e ele caiu igual Silvio Berlusconi quando tomou aquela porrada... Levantou-se grogue. O chefe de gabinete, que também estava na sala, ficou amarelo.

– Filho duma égua, eis teu Twitter, ladrão do caralho. Acho que vou fazer teu parto, mensaleiro buchudo. Mete esse ultraje, que é a liderança da minoria, na flor do teu jardim de trás – disse o assessor de imprensa.

– Você não pode fazer isso – balbuciou o chefe de gabinete e levou um tabefe na cara.

Estavam somente os três homens no gabinete e um gabinete ao lado passava por reforma, de modo que o barulho na sala era abafado pela barulheira ao lado.

– E mais, patife, tu vais me pagar 24 mil reais, agora, referentes aos 1 mil reais que repasso todo mês, há dois anos. Agora! Anda, assinas o cheque! Tenho todos os recibos bancários dos depósitos na conta desta anta corrupta, aqui – disse, apontando para o chefe de gabinete. – Vamos! Vamos! Não há sobre o que pensar. Se não, vou rebentar com vocês. Tenho alguém no jornal O Estado de S.Paulo que publicará minha história com prazer, pois tenho documentos também daqueles favores que tu fizeste para o Sarnento Filho. Anda! Anda!...

“Ai, que alívio deixar esse esgoto” – disse o assessor de imprensa, de si para si. Do zebrinha ele via a Esplanada dos Ministérios, “capital da corrupção”. Com os 24 mil reais iria respirar um pouco em Salinópolis.

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