sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Um louco... e sua comunicação, happening no salão da Rádio Educadora São José de Macapá

O escritor e sua estante, no Sudoeste, em Brasília/DF, onde mora

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 27 DE OUTUBRO DE 2023 – Depois de lançar XARDA MISTURADA (poemas, Macapá, 1971, 45 páginas), de Joy Edson (José Edson dos Santos), José Montoril e deste que ora lhes escreve, atravessei o rio Amazonas de Macapá/AP para Belém/PA, peguei a Belém-Brasília, que ainda estava em construção, de carona com um caminhoneiro, e fui para o Rio de Janeiro, em 1972.

Com 17 anos, não tinha sequer carteira de identidade. Levava apenas algumas dezenas de XARDA MISTURADA, que fui vendendo e sobrevivendo. A princípio, fiquei na casa de um amigo meu, em Niterói, e depois fui morar numa vaga, em Copacabana, ajudado pelo Itabaracy Nunes Batista, irmão do músico Aimorezinho.

No Rio, fiz um curso na Escola de Teatro de Comédia da Guanabara e encarnei um coveiro na peça Morte e Vida Severina, em apresentação única no antigo Teatro de Arena, no Largo da Carioca. Vi, ali, que meu negócio era poesia, mesmo. O curso de teatro serviu para me enturmar. 

Dois anos depois, peguei novamente a estrada e fui até Buenos Aires, onde tive a oportunidade de assistir a um happening encenado um ator de quem não me lembro mais. No happening não há separação entre ação e público, de modo que o público é atingido diretamente pela performance do ator, levando o espectador a pensar, escandalizar-se, chocar-se, emocionar-se com o que o ator está fazendo. Nunca tinha visto aquilo, nem sabia que aquilo fosse possível. “Preciso levar isso a Macapá” – pensei. 

De volta a Macapá, resolvi apresentar um happening. Tive ajuda do meu irmão, Pedro Cunha, que conseguiu o salão nobre da Rádio Educadora São José de Macapá, então sob o comando do padre Jorge Basile, que chegou a Macapá em 1948. Italiano, virou amapaense. Era também professor, jornalista, radialista e membro da Academia Amapaense de Letras. 

A apresentação ocorreu no dia 11 de janeiro de 1975, um sábado, às 20h30. O nome do espetáculo era Um louco... e sua comunicação. Redigi um impresso informativo que anunciava uma peça teatral em um ato, um monólogo tragicômico improvisado, com atuação e direção de Ray Cunha.

“Um acontecimento em termos de arte pode deleitar, ensinar ou, até mesmo, assustar. Na vida, nós aprendemos por caminho batidos, conhecidos e decorados, de maneira que quando nos perdemos, sabemos por quê. Na vida, nós aprendemos a evitar as sendas selvagens, medonhas e estranhas, de maneira de quando nos achamos, não sabemos por quê.

“Um acontecimento nas cadeias da corrente artística encaixa-se um pouco diferente das outras cadeias. Talvez pela cor, talvez pela forma. Na música, por exemplo, o acontecimento recebe o nome de “happening”, como recebeu em “Woodstock” – a expressão máxima de um longo e excitante sonho.

“Na literatura a lista é longa e variada, como pode ser a “Geração Beat”. Um acontecimento pictórico, Salvador Dalí, é um acontecimento vivo! Ao esculpirem o “Fauno de Praxiteles” em remota época completou-se um acontecimento maravilhoso. Alfredo Alaria foi outro acontecimento, ou événement, ou mesmo happening, como queira, pois em qualquer recanto do mundo onde pisava era a sensação. O cinema está acontecendo, inquieto e inquietante.

“O acontecimento teatral pode vir a qualquer instante. Ele pode comover, emocionar, despertar-nos ódio, indiferença, ou raiva” – dizia o texto publicitário que escrevi, anunciando o happening.

Até que foi bastante gente, acho que mais de dez pessoas. Uma delas é especial. Trata-se da dama da poesia amapaense, Alcinéa Maria Cavalcante. Ela estava lá e pode testemunhar, até contar como foi. O padre Basile também estava lá, assim como o meu irmão Pedro Cunha. Quero me lembrar de outras pessoas, mas não consigo. Não lembro se o Fernando Canto compareceu à apresentação única, mas foi ele que encontrou, na biblioteca dele, o texto publicitário da peça.

Imitei um pouco o ator portenho. Fiz caras e bocas, dancei o merengue do caboco doido, improvisei bastante. Disse também alguma coisa. Botei para fora toda a minha revolta adolescente sem causa.

Logo depois o Savino, José Figueiredo de Souza, me convidou para criar um grupo de teatro no Sesi de Macapá. Aproveito aqui para falar um pouco sobre o Savino. Ele era graduado em Educação Física pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especializado em natação e educação física pela Fundação Getúlio Vargas. Foi um dos fundadores, em 1965, do maior bloco de rua da Amazônia: A Banda. 

Cheguei até o quarto ano ginasial no Colégio Amapaense e Savino foi meu instrutor na disciplina Educação Física. Lembro que certa ocasião ele reuniu várias turmas no Ginásio Coberto do Colégio Amapaense, centenas de alunos, só homens, e pediu para cantarmos o Hino Nacional. Em dado momento ele apontou para mim, no meio da multidão, avisando que eu estava desafinado. 

A convite de Homero Platon, delegado do Sesi no Amapá, Savino começou ministrando aulas de educação física e ascendeu ao cargo de superintendente do Sesi local e depois coordenador das superintendências do Sesi na Região Norte. 

Aceitei o convite do Savino. Comecei a criar o grupo e a ensaiar um texto meu. Mas, confesso, tratava-se de um testículo, não renderia nem uma hora de espetáculo, e eu estava ainda perdido, ainda na estrada, e assim larguei tudo, mais uma vez, peguei o rio e sumi do mapa. Desta feita fui para Santarém/PA e depois para Manaus/AM, onde comecei minha carreira de jornalista. Eu tinha 21 anos.

Aí, descobri que, além de poeta, era também contista, e comecei a escrever meus primeiros contos e, tempos depois, já morando em Belém, parti para o romance.

Adoro teatro, mas como espectador. A última vez que vi um happening foi uma apresentação do poeta Heitor Andrade, em Brasília. Heitor Humberto de Andrade, H2A, como ele se identificava, nasceu em Salvador/BA, em 21 de junho de 1937, e morreu em Brasília, a cidade que adotou como sua, em 1 de dezembro de 2017. 

O poeta deixou publicados os livros: Corpos de concreto (Salvador, Imprensa Oficial da Bahia, 1964); Sigla viva (Rio de Janeiro, Grupo de Planejamento Gráfico Editores, 1970); 3x1: a matemática do poema (Brasília, Senado Federal, 1978 – Coleção Machado de Assis, 14); Nas grades do tempo (Brasília, André Quicé, 1994); Minha moldura é o Universo (Brasília, Siglaviva, 2012); O cão selvagem (Brasília, Siglaviva, 2013); Corpos de concreto (Brasília, Siglaviva, 2014); e Probabilidade do jogo (Brasília, Siglaviva, 2016).

A partir de 1970, publica os seguintes pôsteres-poemas: Sigla Viva e Só amo (1970; arte: Sami Mattar), Lirismo (1985; arte: J. L. Paula), Pequena Revolução Burguesa (1989; arte: Simone Queiroz), Vislumbre (1994; arte: Mônica Indig), A Mulher dos Meus Sonhos (2006; arte: Beto Sá), A Mario Quintana (2010; arte: Ilva Araujo), Momento (2010; arte: Marcos Design) e Delicadeza de Lorena (2013; arte: Renato Cunha).

Em 8 de março de 1985, o poema Lirismo foi ofertado pela Mane do Brasil, com tiragem de mil peças, distribuídas em todas as filiais da empresa no mundo, oferecidas aos grandes clientes como brinde da inauguração da fábrica. A matriz, francesa, foi fundada em 1871 e hoje é administrada pela quarta geração da família Mane.

Especializada na criação de essências aromáticas do perfumismo e produção de bebidas destiladas, a filial brasileira é sediada no bairro de Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro. O designer J. L. Paula criou, em 1960, para a Mane do Brasil, a arte para Lirismo.

No cartaz, o poema flutua juntamente com uma grande balança, frascos, garrafas e um almofariz: “Havia um jasmineiro/lá em casa/florescia todo ano/Nem a fumaça que o envolvia/obscurecia sua alvura/aos olhos da rua/Ele brincava de florir/cuspindo todo mundo/com suas pétalas de perfume”.

Em 2008, Heitor Andrade apresenta o monólogo dramático Teatro do Imprevisto, no Café com Letras. Depois ele se apresentou em bares na noite de Brasília. Assisti uma dessas apresentações.

Convivemos bastante. Pouco antes de morrer, Heitor morou no prédio da Editora Thesaurus, no Setor Gráfico. Uma tarde, fomos andando até a Pães e Vinhos, uma padaria, cafeteria e restaurante na Quadra 103 do Sudoeste, próximo de onde eu moro, hoje. Comemos pão torrado com manteiga e café com leite, e conversamos, como sempre, sobre tudo. Ele estava com 80 anos, mas era um garoto.

Curtia tudo, como só os poetas sabem fazê-lo. Adorava a noite, as luzes, vinho, e tinha o faro dos poetas, que conseguem sentir cheiro de mulher trazido na aragem de leste.

Desconfio que não sabia da sua idade, e nem queria saber. Parecia um monge. Era pequeno, seco, sua pele era rosada e seus olhos, verdes. Escrevia poemas o tempo todo e tirava seu sustento do jornalismo. Amou muitas mulheres lindas e todas pelejaram para retê-lo, mas ele era indomável. Só tinha compromisso com a poesia. Lembra-me Pablo Picasso. 

Não conheci Picasso, que nasceu em Málaga, Andaluzia, Espanha, onde veio à luz em 25 de outubro de 1881, e, aos 91 anos, em 8 de abril de 1973, após uma noite de trabalho, até as 3 da manhã, morreu de infarto horas depois, em Mougins, na Côte d'Azur, França. Pintor, escultor, ceramista, cenógrafo, poeta e dramaturgo, foi criador inesgotável, artista incansável e amante intenso da vida. Picasso, como Heitor, podia sentir o cheiro de mulher nua na aragem do leste.

Além disso, era prolífico como seu nome de batismo: Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso. Era também bom marqueteiro de si mesmo. Contava que nasceu morto, mas o médico, Don Salvador, o salvou, trouxe-o de volta à vida soprando-lhe fumo de um charuto na face, que o fez chorar, e viver.

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