RAY CUNHA
BRASÍLIA, 19 DE DEZEMBRO DE 2025 – Ele a segurou pelo braço e deitou-a ao seu lado. Com movimentos de pernas e de cintura, montou sobre ela. Aquela massa de carne a esmagava, afundando-a no colchão; o bafo de conhaque e a raiva lhe davam náuseas. Sentia seus músculos e ossos sendo triturados, pulverizados. Mas nada disso impediu que notasse a rudeza daquela mão, daqueles dedos que exploravam, escavavam e entravam nela à força. Sentiu-se rachada, esfaqueada; um relâmpago percorreu seu corpo do cérebro aos pés. Gemeu, sentindo que ia morrer. “Grite, sua cadelinha, vamos ver se você aprende” – cuspiu a vozinha ferina e ofendida de Sua Excelência. “Agora, abra-se. Deixe eu ver se está furada mesmo, se você não está gritando só de farsante que é.”
Quando o castraram, o fim estava próximo. Não cortaram os testículos com uma faca, mas com uma tesoura, enquanto estava sentado no Trono. Ouvia risos hiperexcitados e comentários obscenos, de uns sujeitos que eram apenas vozes e cheiros ácidos, de axilas e fumo barato. Não lhes deu o prazer de ouvi-lo gritar. Eles lhe enfiaram os testículos na boca, e ele os engoliu, desejando que tudo aquilo apressasse a sua morte, coisa que nunca imaginou que pudesse desejar tanto.
Duas ou três semanas depois, em vez do habitual prato fedorento de farinha de milho, trouxeram para o calabouço uma panela com pedaços de carne. Miguel Ángel Báez e Modesto quase engasgaram, comendo com as mãos até se fartar. Pouco depois, o carcereiro voltou a entrar. Olhou para Báez Díaz: o general Ramfis Trujillo queria saber se não lhe dava nojo comer o seu próprio filho. Do chão, Miguel Ángel o insultou: “Diga a esse filho da puta nojento que engula a língua e se envenene”. O carcereiro riu. Foi e voltou, mostrando pela porta uma cabeça juvenil que segurava pelos cabelos. Miguel Ángel Báez Díaz morreu horas depois, nos braços de Modesto, de um ataque cardíaco.
Os parágrafos acima são do livro A festa do Bode (La fiesta del chivo, Alfaguara/Objetiva, Rio de Janeiro, 2011, 450 páginas), de Mario Vargas Llosa. Trata-se de uma reportagem romanceada sobre a ditadura de Rafael Leónidas Trujillo Molina, o Bode, de 1930 a 1961, na República Dominicana, país que divide com o Haiti uma das ilhas do Mar do Caribe, Hispaniola, primeiro território americano a ser descoberto por Cristóvão Colombo.
Marco Aurélio era uma máquina espantosa. Nunca adoecera e aos 18 anos já era mestre em aikido. O caso aconteceu logo que começara a fazer estágio, como estudante do curso de Política Internacional da Universidade de Brasília, no gabinete do deputado candango Nonato Domingos, mais conhecido como Mazaropi, e que vivia mais na sua cidade natal, Unaí, município do estado de Minas Gerais, na divisa com o Distrito Federal. Estava sozinho com o deputado no gabinete quando se sentiu mal.
– Vou levar você agora mesmo para ser atendido no Hospital do Corpo – disse o deputado, que era médico e um dos sócios do Hospital do Corpo, na 716 Sul.
Marco Aurélio seguiu-o sem pestanejar, embarcaram no carro do deputado e o motorista rumou para o Hospital do Corpo. “Nome horrível” – pensou Marco Aurélio, que cada vez mais mergulhava numa sonolência completamente desconhecida para ele. Setenta e duas horas depois seu corpo era velado no Cemitério Campo da Esperança. O rapaz era filho de um casal de preletores da Seicho-No-Ie, e uma amiga do casal, a também preletora Maria Augusta, pedira a Apolo Brito para acompanhá-la no enterro. Apolo Brito acabou sendo escalado para ajudar a erguer o caixão e pô-lo no carrinho. Foi o primeiro a pegar numa das alças, erguendo aquela parte sem dificuldade. Arriou o caixão, pediu aos outros três carregadores que aguardassem um instante, abriu a urna funerária e examinou os olhos do rapaz.
– Esperem! – disse, em voz alta. – Aguardem 20 minutos!
Olharam-no espantados.
– Por quê? Não podemos esperar, pois precisamos desocupar o salão! – alguém disse.
– Este rapaz foi assassinado! – disse Apolo Brito, falando a seguir com alguém, ao telefone celular.
Não deu 5 minutos quando um carro da Polícia Civil chegou e dele desceu o delegado Madeira, titular da Primeira DP, sediada ao lado do cemitério. O corpo foi levado para uma sala fechada. Minutos depois o delegado saiu de lá.
– Houve um assassinato. Este rapaz foi assassinado – disse.
Todos estavam atônitos. A mãe de Marco Aurélio desmaiou, e o pai começou a passar mal.
– Voltem para casa, por favor. Amanhã os senhores saberão o que houve – disse Apolo Brito.
Horas depois o deputado Mazaropi estava preso numa cela da Polícia Federal. Ele comandava uma quadrilha de traficantes de órgãos, com ramificações em Unaí; Luziânia, cidade goiana do Entorno do Distrito Federal; Goiânia, a capital do estado de Goiás; São Luís do Maranhão; e Macapá, a capital do estado do Amapá, de onde a quadrilha tinha traficado grande parte do corpo de uma miss. Apolo Brito conhecia o delegado Madeira de um curso nos Estados Unidos; de vez em quando passava na Primeira DP para bater papo com ele, e assim ficara a par das investigações que estava fazendo sobre a denúncia de erros médicos que estavam ocorrendo no Hospital do Corpo. Ao abrir as pálpebras do estagiário do deputado Mazaropi, Apolo Brito encontrou olhos de vidro. Abriu a camisa do morto e viu que o corpo estava todo costurado. Então associou aquilo à investigação que o delegado Madeira estava fazendo. O caso teve repercussão internacional, pois além da sua natureza aterrorizante, envolvia políticos do PDB.
O trecho acima é do romance A Confraria Cabanagem, de Ray Cunha.
Se quiserem chamar A festa do Bode de romance, tudo bem. “Se o leitor preferir, considere este volume como um trabalho de ficção. Seja como for, ficção ou não, há sempre a possibilidade de que lance alguma luz sobre aquilo que foi escrito como matéria de fato” – escreveu Ernest Hemingway, no prólogo de Paris é uma Festa.
Concordo com Hemingway. O que vou dizer é paradoxal, mas paradoxo significa precisamente além do senso comum. A ficção, sendo verdadeira, pode sempre lançar alguma luz sobre a realidade, dependendo do olhar do leitor. E a realidade, às vezes, é tão inacreditável que só será crível como ficção.
Quanto ao trecho destacado do romance A Confraria Cabanagem, serve apenas para focar o personagem principal, o detetive Apolo Brito, contratado para prevenir o assassinato de um senador e que acaba deslindando a teia de corrupção que assola o Estado do Pará.
A festa do Bode e A Confraria Cabanagem, cada qual a seu modo, revelam que em uma ditadura tudo é possível. O ditador pode estuprar meninas e seus inimigos serem torturados ao inimaginável, incluindo comer o próprio filho cozido. Se o ditador precisar de órgãos, será retirado de alguém compatível, jovem e saudável.
Ditadores basicamente perseguem o poder absoluto, poder que, paradoxalmente, será sempre seu inferno pessoal. Ditadores, e os que gostariam de sê-lo, têm em comum alguns traços: são, em potencial, populistas, nepotistas, patrimonialistas, mentirosos, profundamente covardes, ladrões, perversos, bestas crudelíssimas, torturadores, estupradores, assassinos, criaturas diabólicas. Como se diz em psicologia: psicopatas. Chegam ao poder porque são ousados, e maus, e porque se cercam de preguiçosos, ávidos por carniça, a quem alimentam para garantiram a manada de zumbis dispostos a empalar a própria mãe por dinheiro.
Para que consigam chegar ao poder e nele permanecer, ditadores precisam de zumbis. Os zumbis são os bajuladores, preguiçosos, carniceiros. Jornalistas e políticos capazes de entregar suas jovens esposas e filhas para o repasto fálico de velhos sem tesão, mas libidinosos, em troca de emprego e dinheiro. Zumbis são estúpidos elevados ao quadrado, capazes de defender criaturas demoníacas como Fidel Castro, Nicolás Maduro e muitos outros ditadores da América latrina.
Mas os ditadores duradouros vivem um inferno. Vivem no luxo e na depravação, procurando extrair o máximo do prazer que a ditadura lhes oferece. Porém, vivem com medo, pois estão sempre ameaçados. Tudo lhes parece uma ameaça. Não confiam em ninguém, pois temem ser traídos. O que os sustentam, o crime organizado, alicerça-se na legalidade, como um tumor, razão pela qual quando descobertos são, naturalmente, extirpados. Ditadores querem o máximo de prazer, mas, por mais poderosos que sejam, não conseguem dar várias sem tirar, se me entendem.
Procuram, para sua companhia, a tampa do penico. Ela, por mais que chupe com talento, está ali para se associar ao poder, mas, se puder, encherá de chifre o ditador e se arreganhará para qualquer outro que o substitua.
O ditador estará sempre receoso de ser assassinado. Poderá morrer esfaqueado, baleado, explodido, envenenado, espancado, torturado, daí porque se esconde sob um batalhão de seguranças, em casamatas. E vive atormentado pensando que o dinheiro que roubou poderá ser roubado. Vive atormentado porque roubou um trilhão de reais e não poderá gastá-lo. Acho que os ditadores sofrem de hemorroida, porque esconder dinheiro gera constipação intestinal.
O presidente
dos Estados Unidos, o republicano Donald Trump, é especialista em ditador.
Gabriel García Márquez e Mario Vargas Lllosa, ambos sul-americanos e Nobel,
eram especialistas em ditadores, mas especialistas de outra ordem. Estudava-os,
dissecava-os e os tornavam personagens de ficção. Trump os mata como médicos
oncológicos matam tumores cancerígenos, impedindo-os de sugarem açúcar, ou,
simplesmente, extirpando-os. Trump impede que trafiquem drogas, ou, simplesmente,
que o dinheiro chegue a eles. Ou os esmaga, como se faz com baratas.


Nenhum comentário:
Postar um comentário