O poeta Fernando Canto e Ray Cunha, em Macapá/AP
RAY CUNHA
Queria ter a
onipotência de escrever uma crônica que lembrasse um navio noturno, feérico, passando,
lento, na frente de uma cidade maravilhosa como o Rio de Janeiro. Uma crônica,
Fernando Canto, que tirasse as rosas da sua indiferença.
O dia
amanheceu azul como um diamante, e saí para caminhar. Tu, que és poeta, sabes
que caminhar no azul é sentir o perfume do choro dos jasmineiros, ouvir o riso
de crianças e ter um encontro marcado.
Querido
Fernando Canto, gosto de andar pela cidade, comer rabada na Feira do Guará e
bife no Giraffas do Conjunto Nacional, e jabazada no Mercado do Núcleo
Bandeirante. Há estudantes na manhã e mulheres que perfumam tudo por onde
passam. Ajudam a colorir o mundo. Deu-me vontade de bater papo com Olivar Cunha,
mas o pintor está distante, próximo ao mar. Mas tu, poeta, estás sempre perto
do meu coração.
Acho que
fostes cedo demais para a companhia de Ernest Hemingway e Gabriel García
Márquez. Quase fui antes de ti, naquele 13 de novembro de 2019, quando meu
coração entrou em colapso. Lembras-te de Belém? Nas noites em que eu me sentia
deprimido, telefonava para ti. Uma noite, me levaste para o bar do teu tio e eu
fiquei bêbedo de gim fizz. No dia seguinte, ao tomar banho, bêbedo ainda,
rescendia a gim inglês.
O pior, querido,
era a nostalgia das mulheres e das cidades que eu havia amado e que deixara
para trás. Não havia drink que aliviasse a angústia. Até que um dia, em Ilhas na Corrente, Hemingway me ensinou
que aonde quer que vamos, levamos sempre nós mesmos. Então comecei a guardar as
mulheres que amei, todas as cidades, todos os amigos, no relicário do meu
coração. E nunca mais senti saudade.
Em Belém, no
Rio de Janeiro, em Brasília, em Macapá, quando nos encontrávamos é como se nos
víssemos todos os dias, pois todas as ausências eram preenchidas para sempre.
Em Macapá, comemos ventrecha de dourada com farofa, no Curiaú, e observamos
telas de Olivar Cunha na tua casa. E também sentimos o cheiro do Oceano
Atlântico na boca do Rio Amazonas. E não precisamos dizer um ao outro que
haverá sempre perfume, merengue e azul escorrendo na poesia que despejamos no
papel, deuses que somos, adoradores do sol.
Caro
querido, além do perfume das virgens ruivas, que nossas narinas, treinadas,
pressentem no ar mais rarefeito, tangível como pirão de açaí com farinha de
tapioca e camarão, há, na nossa memória, toda a alegria da juventude, embalada
por sonhos ensolarados e regada a Pitú. Tudo isso voa pela minha cabeça na
caminhada, nesta manhã. Tu, no astral, e eu, aqui.
Em casa, leio
um poema de Jorge Tufic Alauzo, fenício, Cidadão do Amazonas. Conheci-o no
Clube da Madrugada. Eu tinha então 21 anos de idade e ele já era um deus das
noites de Manaus. Degustávamos Antarctica enevoada no Nhatalia.
É noite.
Minha mulher faz um estudo da Seicho-No-Ie na sala. Minha princesinha está em
Ibiúna, São Paulo. Eu estou em toda parte. A dimensão, na minha mente, é
completamente diversa desta do mundo fenomênico. Hemingway bebe daiquiri. Está
calibrado. Aproximo-me dele.
– Acho que
podes capturar um marlim azul de 637 quilos no Atlântico, pouco acima da linha
do Equador, na altura da vila de Sucuriju, no município de Macapá, na Amazônia
Caribenha – digo-lhe. Ele bebe um grande gole de daiquiri. Não me pareceu
interessado. Certamente prefere os marlins do Caribe.
Fernando
Canto chega.
– Vamos
tomar uma Bohemia enevoada no Macapá Hotel? – convido. Eles topam.
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