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AMAZÔNIA, contos, edição do Clube de Autores, 363 páginas, 2024 |
RAY CUNHA
O Rio Amazonas arremetia e rugia contra o muro de arrimo, salpicando água longe. O trapiche lembrava o dorso negro de uma sucuri imensa. Podíamos ver o rio se contorcendo como o mar nas manhãs de ressaca em Copacabana.
– Não parece um rio – disse Mara. Estávamos em um quarto do Macapá Hotel. Mara deixou a janela e foi para a cama. Nos dias muito quentes, seus olhos eram azuis; à medida que a tarde navegava, iam-se tornando verdes, e, quando os flocos da noite se acamavam nas nossas almas, eram duas esmeraldas. Ela tinha sabor de Mateus Rosé e qualquer coisa espanhola. Estava nua. Sua nudez flutuava naquele momento de transição entre a tarde e a noite; momento com sabor de tacacá da banca do Colégio Nazaré, em Belém. – O que vamos jantar? – Mara me perguntou. Almoçáramos no Café Aimorezinho, pirarucu ao molho de castanha-do-pará.
– Cerpinha – respondi-lhe, absorto, observando o abstracionismo das nuvens paradas no céu, pintadas pelos derradeiros raios solares, saídos da paleta de Olivar Cunha. – Vamos jantar no quarto? Podemos pedir cogumelos e ostras e comê-los com vinho. – E antes que ela replicasse que talvez não houvesse ostra disse-lhe que poderíamos pedir filhote ao tucupi.
– Tu achas que o Bigode vai se safar dessa? – ela perguntou, com aquele seu delicioso sotaque belenense.
– O Bigode ainda continuará dando as cartas, mas agora todo mundo já sabe que ele é o maior mafioso do país e que seu lugar verdadeiro é o esgoto – eu disse. De vez em quando, voltava-me para ela. – Quanto a Nove Dedos, continuará enganando a massa ignara. Ocorre que o Estado não é apenas o governo. É muito mais complexo. Não vês o caso do ladrão bolivariano? Logo, logo até os cachorros venezuelanos vão perceber que o patife está apenas assaltando o país.
– Puxa, se eu soubesse que tu ficas tão indignado com o que está acontecendo eu nem teria falado no Bigode – ela disse.
Concluíramos uma investigação sobre as atividades do Bigode, que integraria extensa reportagem sobre a folha corrida do chefão da máfia, e Mara era minha fotógrafa predileta. No dia seguinte, voltaríamos a Belém. Aquela seria a última noite que passaríamos na cidade.
A noite entrou no quarto imperceptível como sons de um concerto de Debussy, que flutuam alguns segundos e se desfazem no ar. Pensei: se eu fosse poeta, como Isnard Brandão Lima Filho, ofertaria rosas para a madrugada, que é a parte mais sublime da noite. Mara silenciara; creio que cochilava. Sua nudez maravilhosa flutuava no veludo negro da noite e à luz, tênue, que vinha da janela, onde eu estivera. Fui ao banheiro, voltei ao quarto e me vesti, depois desci e procurei o quiosque aonde fôramos mais cedo, pedi uma Cerpinha e comecei a compor, mentalmente, a abertura do meu texto.
Do livro de contos AMAZÔNIA, à
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