RAY CUNHA
BRASÍLIA, 11 DE
OUTUBRO DE 2025 – A tarde morria sob flocos negros, anúncios luminosos,
luzes dos postes e faróis dos carros. Dentro do bar do hotel a vida recomeça. Podia
ver parte do Setor Hoteleiro Sul, o shopping Pátio Brasil e alguns prédios do
Setor Comercial Sul. O tempo estava seco e quente como um soco na garganta, mas,
dentro do bar, o ar refrigerado e o umidificador funcionavam ajustados como um
foguete.
– O 8 de Janeiro foi o maior tiro no pé que eu já vi na minha vida; ainda vai aterrorizar muita gente por muito tempo – disse meu amigo, velho jornalista, que não conseguiu se adaptar aos novos tempos. – Eles não contavam com Klark Kent.
Quanto
a mim, ainda logrei ajustar-me à informática. Lembrei-me de William Faulkner:
“É uma vergonha que haja tanto trabalho no mundo. Uma das coisas mais tristes é
que a única coisa que um homem pode fazer durante oito horas diárias, dia após
dia, é trabalhar. A gente não pode comer, beber ou fazer amor durante oito
horas diárias: só o que se pode fazer, durante oito horas, é trabalhar. Eis aí
a razão por que o homem torna a si próprio e a todos os demais tão miseráveis e
infelizes”.
– Klark Kent; Donald Trump – eu disse. Ele sorriu.
Estava alegre. Acho que o livro no qual trabalhava ia bem.
Uma jovem entrou no bar do hotel. Remetia imediatamente a
jambo maduro, com sua alva pele cafuza e longos cabelos de índia descendo-lhe
como ervas daninhas até a garupa de DNA africano. Trajava vestido de seda
branco, estampado de amarelo e vermelho. Foi direto ao balcão e se aboletou em um
tamborete, os quadris maravilhosos enchendo meus olhos, e os do meu velho amigo
jornalista, que perdeu, de repente, o interesse por política.
Duas jovens europeias, com suas peles brancas, rosadas,
quase vermelhas, inflamadas pelo sol tropical, também olharam para a cafuza,
que deixou um rastro de jasmineiros chorando em noites tórridas, em Macapá,
cidade que flutua na boca do maior rio do mundo, o Amazonas. A cafuza pediu
água tônica. Inadvertidamente, levei minha água tônica à boca. Gelada,
refrescante, a bebida assumiu sabor de Caribe, ao som da voz da mulher improvável,
que tinha sotaque francês.
“Será da Guiana Francesa?” – pensei, referindo-me à colônia
que os franceses mantêm vizinha ao Amapá, o Estado do presidente do Senado Federal,
Davi Alcolumbre, o segurança de Alexandre de Moraes e aliado do presidente Lula
da Silva. Lula é antissemita; Alcolumbre é judeu, mas, como apoia Lula em tudo,
é, por extensão, antissemita também.
Meu velho amigo jornalista suspirou. Parecia o último
suspiro de décadas de álcool, cigarro, noites indormidas, desregramento.
– Produto genuíno do trópico – cochichou-me, quase babando.
Fiz sinal ao garçom para que trouxesse mais uma garrafa de água tônica para mim e
uma Cerpinha para meu amigo. Cerpinha é a melhor cerveja do mundo. Quando eu
era alcoólatra e ia a Belém, começava a beber Cerpinha enquanto tomava banho e
depois observando a cidade pela janela do quarto de hotel, de modo que ao
mergulhar nas veias da Cidade Morena já estava pronto.
– É da Guiana Francesa – disse-lhe. – Ou de Macapá, há muito
tempo morando em Caiena.
– Conheci uma assim no Acre – confidenciou-me.
– Temos mulheres assim em toda a Amazônia – comentei, pois sabia
que meu amigo conhece a Hileia tanto quanto eu, o que quer dizer que ambos já
mergulhamos na alma da mulher amazônida, e sentimos o mundo girar, a mesma
experiência de tomar tacacá às 6 horas da tarde na banca do Colégio Nazaré.
Jambu! Jasmineiros chorando! Cerpinha! O céu, tão azul que sangra! Maresia! O
balanço de uma rede! Leite da mulher amada! Jambo, doces como seios!
A cafuza fazia, agora, anotações em um caderno tipo
Moleskine, e vi que era da Tilibra. Seria jornalista também? Ou secretária executiva
de algum empresário bilionário? Seja lá o que for, era tão linda que causava
dor. Eu estava tão concentrado nela que a mulher improvável se voltou para mim.
Só então vi seus olhos, de clorofila, duas pedras preciosas a me engolirem.
Fiquei petrificado, com o mesmo terror que deve acometer as presas na boca do
jacaré. Depois percebi que o olhar da cafuza fora ocasional, que ela sequer me
viu, nem à sua saída, deixando um banzeiro de romance e aventura na noite. Meu
amigo e eu ficamos calados. Eu sabia o que ele estava pensando e ele também
sabia perfeitamente o que eu sentia.
Baixinho – deve ter um metro e sessenta, mais ou menos –,
magricela, estrábico e de cabelos grisalhos, meu amigo foi compensado por
epiderme maravilhosa, lisa e rosada como a pele de um bebê. Sua expressão é a
de uma criança perdida, despertando nas mulheres o instinto materno. Contudo, o
que lhe originou o apelido, Galicíssimo, foi seu talento para lidar com as
mulheres.
Pode-se, neste caso, aplicar-lhe perfeitamente o ditado que
reza: não há mulher difícil; há mulher mal cantada. Em outras palavras, não há
mulher que resista a sentir-se princesa; isso as enlouquece completamente,
torna-as reféns absolutamente indefesas e as leva a cometer qualquer crime. Basta
meia hora de papo para as vítimas grudarem, literalmente, em Galicíssimo, que
possui o dom de dissecar a alma feminina com a mesma eficiência de um
anatomista que vasculha o corpo humano em busca de compreender melhor a posição
dos órgãos, ossos, músculos, tendões, artérias, toda sorte de tecido, já tão
estudados e catalogados.
Acho que ele conhece tanto as mulheres porque foi educado em
um meio bastante parecido ao de Gabriel García Márquez. Teve um avô como ponto
de referência e o resto da casa eram mulheres. Tornara-se, assim, um
observador, um analista, um especialista em mulheres, adivinhando os mais
recônditos desejos “dessas crianças grandes, dessas criaturas divinas, dessas
flores tão delicadas, que se defendem, quando muito, munidas apenas de
miseráveis espinhos”, como ele mesmo dizia. “Todas buscam, pura e simplesmente,
consolo, por uma razão da qual não podiam escapar: são todas inconsoláveis.” É
então que Galicíssimo dá o pulo do gato, exibindo um instrumento insuspeito,
magnífico, que transforma mulheres tristes em tarântulas subindo pelas paredes
e se voltando para encarar o surpreendente membro fálico.
– Estou trabalhando em uma reportagem que vai me render uma
grana – Galicíssimo me disse, quebrando meus pensamentos. – Estou alegrando a
vida de uma gata que trabalha no Supremo Tribunal Federal; ela sabe tudo o que
se passa, lá, e encontrou indícios, indícios, não, provas de ligação entre o
STF e um chefão barra-pesada da Faria Lima, envolvendo narcotráfico
internacional e até ligações com o Irã.
Fiquei calado, olhando para ele.
– É para o teu livro? – perguntei.
– Sim! – disse. – Também já tenho material que dará perpétua
para o molusco e o piroca.
Galicíssimo vivia cercado de mulheres, mas morava sozinho.
Quanto a mim, minha mulher havia viajado; eu saíra para me encontrar com
Galicíssimo, o cara mais bem informado sobre a ditadura, e eu precisa escrever
também. O bar se esvaziou. Logo depois paguei a conta e saímos. A noite era um
relicário. De volta à casa, ouvi, baixinho, Tender is the Night.
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