
A noite é um navio, um continente, uma galáxia. Só nossa!
RAY CUNHA
BRASÍLIA, 26 DE OUTUBRO DE 2025 – Este blogh é meu laboratório como escritor. Meus dois ou três leitores já perceberam, com certeza, que, às vezes, publico crônicas novamente, com modificações. Às vezes, junto duas crônicas já publicadas. Agora, pensei publicar um livro de crônicas e comecei a trabalhar seu texto final. Então, as crônicas precisam ser buriladas, para não envelhecerem. Arte só é arte se permanecer viva para sempre. Do contrário, será apenas jornalismo.
Certa noite de 1976, o poeta Jorge Tufic e eu bebíamos a inesquecível Antarctica manauara, enevoada, em taças, como era comum no bar Nathalia.
– Lemos tudo o que precisamos ler na juventude. Depois disso, não lemos mais – disse-me o poeta, que tinha, então, 46 anos de idade.
De certa forma, o poeta tinha razão. No meu caso, aprendi a ler aos 5 anos e nunca mais parei. Era tão viciado que durante certo tempo da minha vida lia até dicionário, bula de remédio e catálogo telefônico. Comecei lendo gibis e revistas ilustradas, do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, e, pré-adolescente, passei para literatura pesada e livros técnicos, também do Paulo. Adolescente, já havia lido alguns clássicos, entre os quais Tender is the Night, Suave é a Noite, de um dos gigantes da literatura norte-americana, Francis Scott Fitzgerald.
Quarto e último romance de Fitzgerald, lançado em 1934, Suave é a Noite é ambientado na Europa, especialmente na França, onde os americanos da geração perdida farreavam. Conta a história de Richard Diver, psiquiatra que comete o erro de se apaixonar por uma paciente, Nicole Warren.
E é isso. As mais de 300 páginas do romance marcam o contraste entre a velha Europa e o modo de pensar e de viver dos norte-americanos da Geração Perdida do pós-Primeira Guerra Mundial.
Para um garoto macapaense, no fim dos anos 1960, tudo aquilo era um mundo novo que se abria. Aliás, tudo para mim era novidade. Vivi em Macapá até os 17 anos e quando saí de lá fui a Belém. Levei um choque. E ainda aos 17 anos fui para o Rio de Janeiro. Mais choque.
Passei uma década vivendo para lá e para cá, até que comecei, em 1982, a fazer faculdade de Jornalismo na Universidade Federal do Pará, em Belém. E haja leitura. Sempre foi uma das coisas mais prazerosas da minha vida. Ler, para mim, é como viajar com um cartão de crédito ilimitado.
Mas essa conversa toda é para dizer o seguinte: a imersão e compreensão de um livro são relativas à nossa experiência. Já não consigo mais ler alguns livros. Por exemplo: O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar. Passei a juventude ouvindo falar no romance e só o adquiri na velhice. Comecei a ler O Jogo com avidez, mas broxei rapidamente. Os longos diálogos entre os personagens já não significavam nada para mim. Na minha juventude, quando passava horas bebendo e batendo todo tipo de papo, teriam significado, mas, agora, não.
Depois dos 70 anos, somos mais objetivos, pois temos a clara noção de que não há mais tempo.
Quando li Suave é a Noite fiquei encantado com a Côte D’azur, aquelas mulheres longilíneas, as bebidas sofisticadas, os hotéis, a psiquiatria, a paixão. Recentemente, voltei a ler Suave é a Noite e não consegui mais. Depois dos 70 anos, tudo aquilo se foi.
Comecei a me interessar mais por autores da era da informática, como John Grisan e Stieg Larsson. Comecei a me interessar por física quântica, pelo espírito.
Os grandes escritores escrevem coisas do seu tempo, e, quando são realmente grandes, escrevem coisas que servem para qualquer tempo. Essa é a razão pela qual alguns livros envelhecem, como Suave é a Noite, ou Adeus às Armas, de Ernest Hemingway, mas são livros que melhor captam seu tempo, de modo que se quisermos saber como eram as coisas em determinado lugar e tempo basta procurarmos grandes romances que se passam nesse lugar e tempo.
Assim é com Machado de Assis. Se quisermos ter uma visão viva do que foi o Rio de Janeiro entre os séculos 19 e 20, Machado é um dos escritores capazes de nos mostrar a Cidade Maravilhosa como em um documentário dirigido por um grande cineasta.
É claro que meu ponto de vista é limitado a mim. Cada pessoa é um universo e viaja em um romance com lentes subjetivas, de modo que, além de mim, Suave é a Noite terá sempre sabor de champagne e perfume da Cote d’Azur, e Adeus às Armas, armistício pessoal.
E alguns títulos de livro são inesquecíveis de tão completos em si mesmos. Tender is the Night foi retirado do poema Ode a um Rouxinol, de John Keats. Em 1962, virou filme, dirigido por Henry King, com música de Sammy Fain e letra de Paul Francis Webster, vertida para o português por Nazareno de Brito.
É tão calma a noite
A noite é de nós dois
Ninguém amou assim
Nem há de amar depois
Quando o amanhã nos separar
Em nossa lembrança hão de ficar
Beijos de verão
Ternuras de luar
A brisa a murmurar
Sua canção
Tudo tem suave encanto
Quando a noite vem
A noite é só nossa
No mundo não há mais ninguém
Beijos de verão
Ternuras de luar
A brisa a murmurar
Sua canção
Tudo tem suave encanto
Quando a noite vem
A noite é só nossa
No mundo não há mais ninguém
Então, querida, que estou à tua espera, a noite é só nossa. Sou como os jasmineiros, que só sabem exalar perfume. Escrevo para viver, pois só com as palavras desnudo a luz e voo até o fim do mundo. Por isso, escrevo granadas intensas como buracos negros e garimpo o verbo como o primeiro beijo. Escrevo porque escrever traz aos meus sentidos cheiro de maresia, Dom Pérignon, safra de 1954, o labirinto do púbis no abismo do acme, mulher nua como rosa vermelha desabrochando.
Agora, depois dos 70 anos, curto intensamente tudo o que tenho. Posso flutuar no éter só com o pensamento, ouvir riso de crianças, Mozart, o som da Terra no espaço, dormir, meditar, andar à toa, tomar tacacá, montar a luz, sentir o cheiro da mulher amada, transcender o tempo – o passado é cinzas atiradas ao vento e não há amanhã, mas só agora se eternizando.
Depois dos 70 anos, enxergo a nudez das rosas e nos internamos, sem bússola, no mistério feminino, jamais desvendado, porque eterno. Descubro tesouros de valor inestimável, nos sentidos. Desenvolvi a capacidade de montar a luz, sentir o cheiro do mar, inalar o perfume dos jasmineiros nas tórridas noites do mundo, em agosto, e em todos os meses.
Depois dos 70 anos, sou tão bilionário quanto Elon Musk, pois voo ao plano astral, tenho telas de Olivar Cunha e, quando escrevo um poema, sinto a sensação do primeiro beijo. Meu coração tem sempre rosas que Isnard Brandão Lima Filho ofertou para a madrugada.
Não desejo mais escalar o Pico da Neblina, pilotar um Boeing 777, praticar tiro ao alvo, saltar de paraquedas, internar-me na Amazônia, beber Cerpinha enevoada no quarto de um hotel, no sétimo andar, e dormir com a princesa, depois de matar com uma katana os assassinos que me perseguiam.
Tudo o que quero é comparecer ao encontro marcado com a amada, embriagar-me com perfume pubiano, sentir a noite como um navio iluminado, ouvir o som da madrugada, diluir-me no acme e reaparecer no azul, sentir o sol no rosto, o mar, o Trópico.
Depois dos 70 anos, não posso mais amar uma noite toda, nem beber três dias seguidos, nem ir muito longe, sozinho. Mas sonho sonhos ousados, salto, de asa delta, do Corcovado e pouso no Copacabana Palace.
Vem, meu bem, estou à tua espera, vibrando de alegria, pois te esperar é como a emoção de encontrar a maior pepita de ouro no Morro do Salamangone, Serra Lombarda, município de Calçoene, no Amapá. É como a felicidade de abraçar crianças que escaparam de um naufrágio ao largo de Marajó, ver rosas nuas em toda parte só de te esperar, amor da minha vida.
Esta noite será eterna porque nesta casa só haverá nós dois e a noite, presente de Deus para ti. Já arrumei tudo, as flores, o vinho e a comida, camusquim com camarão pitu. Seremos nós dois e os diamantes que garimpei toda a minha vida e que só encontramos no céu de Macapá, em agosto, nos anos 1960. Ouviremos Como é Grande o Meu Amor Por Você, Besame Mucho e Suave é a Noite, e dançaremos lentamente, nossos lábios se roçando.
Sugarei colostro e sentirei o
sabor do teu púbis, de madrugada, a quem ofertarei teus gemidos, que espalharei
no jardim da minha alma, mulher amada. Vem logo, pois a noite já chegou, como
um navio, um continente, uma galáxia. Só nossa!
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