domingo, 21 de setembro de 2025

Por que escrevo? Escrever é preciso; viver não é preciso. Porque esta noite é excessivamente azul

Ray Cunha, da janela do apartamento onde mora

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 21 DE SETEMBRO DE 2025 – Foi o poeta Max Martins quem me mostrou o significado de um poema. Entrevistando-o para O Liberal, em Belém/PA, perguntei-lhe para o que servia um poema; ele me respondeu que uma poesia não tem a utilidade de um prato de comida, que um texto poético pode, quando muito, despertar emoções em quem o lê. Com efeito, ninguém compra um poema. Compra um livro. E se uma poesia não tem valor monetário algum, por que a escrevemos?

Esta charada, por que escrevemos literatura, quem a matou, para mim, foi o tcheco Franz Kafka (1883-1924). Há até livros inteiros sobre por que escritores famosos escrevem e alguns escritores produzem verdadeiros tratados sobre isso. Já li algumas respostas longas e vi que elas acabam se esvaziando na própria extensão do texto. Essa questão não foi perguntada a Kafka, pelo menos que eu saiba, mas ele me mostrou por que, nós, escritores, escrevemos.

Quando viu que ia morrer, Kafka pediu a seu maior amigo, Max Brod, que queimasse seus originais, pois não tinha coragem para fazer isso. Seu amigo não queimou nada e ainda publicou os romances O Processo e O Castelo. Kafka influenciou meio mundo. Gabriel García Márquez só descobriu que um escritor pode criar o que quiser ao ler A Metamorfose, e eu também entendi isso com o comentário de Márquez.

Kafka chamava para seu trabalho como escritor de “meu chamado” e a seu emprego em uma companhia de seguros de “ganha pão”. Pronto, matou a charada. Escrevemos porque há um chamado, um chamado que vem do além. Só o entende quem o recebe. Escrevemos porque escrever é preciso; viver não é preciso.

Outro dia disse a uma paciente (sou terapeuta em Medicina Tradicional Chinesa, também) que levanto às 4 horas. Ela ficou escandalizada. Aí percebi que só escritores entendem escritores.

Certa vez, a romancista Lindanor Celina me disse o seguinte: levantamos de madrugada sem que ninguém exija isso, apenas para escrever, também sem que alguma editora nos tenha encomendado um livro. Por que fazemos isso? Acho que é o chamado de Kafka.

O que eu sei é que basta eu passar alguns dias sem escrever para me sentir vazio, inútil, infeliz, e começar a fazer os outros infelizes, também. Por isso, preciso escrever! Escrever é preciso; viver, nem tanto.

Mesmo assim, vivo também. Márquez me mostrou outro truque. Ele esclareceu que um escritor de verdade escreve até preso, inclusive em uma cama. Que dinheiro não melhora texto de ninguém, mas pode ajudar o escritor a aliar conforto ao ambiente de trabalho. Antigamente, eu escrevia em qualquer lugar, a qualquer hora; hoje, prefiro a madrugada, no meu escritório, que é o quartinho de empregada no apartamento onde vivo.

O apartamento fica no que eu considero o melhor bairro de Brasília/DF: o Sudoeste. O bairro faz divisa com o Cruzeiro e Octogonal a Oeste; com o Setor Gráfico à Leste; com o Parque da Cidade ao Sul; e com o Eixo Monumental ao Norte. Fica a 10 minutos da Rodoviária do Plano Piloto, Conjunto Nacional e Setor Comercial Sul.

A principal rua comercial do Sudoeste tem oito quadras com tudo o que se pode imaginar em termos de cafeterias, padarias, confeitarias, restaurantes, bares, serviços e comércio, inclusive com supermercados e cafeterias 24 horas. O bairro é bem-iluminado e policiado, e quase não se vê mendigos ou moradores de rua nas quadras.

Moro na 102, bem no centro da rua comercial. Gosto de encontrar amigos na Pães e Vinhos, padaria, bar e restaurante, na 103, e de comer, às vezes, na Choparia Sudoeste, na 101. A feijoada de lá é de primeira categoria. Eles servem os elementos da feijoada separados. Assim, posso me servir de charque à vontade.

Curto muito o Sudoeste, sobretudo a proximidade da cidade grande, pois só me sinto bem em grandes cidades. E há o silêncio. No Sudoeste, dá para ouvir o palpitar do coração de Brasília e o silêncio, ao mesmo tempo.

Às vezes, saio do Sudoeste. Outro dia fui ao Bar Beirute da 107 Norte me encontrar com os presidentes da Abrajet (Associação Brasileira de Jornalistas de Turismo), Luiz Pires, da Nacional, e Wílon Wander Lopes, do Distrito Federal. Bebemos Antarctica Original, que continua boa como sempre. Depois de meio século bebendo pesadamente, pus o pé no freio quando comecei a perder a memória. Escritor sem memória está lascado. Mas, de vez em quando, dependendo das circunstâncias, enfio o pé na jaca.

Em agosto passado, estive com meu amigo, o jornalista José Aparecido Ribeiro, no Condomínio Alphaville, na Região Metropolitana de Belo Horizonte/MG. A manhã estava belíssima. Sentamos com vista para a Lagoa dos Ingleses e começamos a tomar cerveja. Não me lembro a marca da cerveja, mas foi uma das mais deliciosas da minha vida.

Além da Antarctica, sempre fui apaixonado pela Cerpinha. Ela me lembra Belém do Pará vista da janela do sétimo andar de um hotel, no início da madrugada: 

A noite mais azul é quando

Assassinos me perseguem, derroto-os

E durmo com a princesa.

Isto só acontece nas noites tão azuis

Que um Boeing 777 ferem-nas

E sangue verte sobre as rosas

Que o acme da princesa

Transforma em colombianas.

A noite mais azul é tórrida e os jasmineiros choram

O mundo recende a maresia     

E o meu corpo

Volta a ser rijo como os punhos de Muhammad Ali

Quando acabou com George Foreman, no Zaire.

Então me transformo em luz

Nesta noite excessivamente azul

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