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Acima, o centro de Macapá nos anos 1950: o complexo arquitetônico à esquerda é o Hospital Geral. À direita, a Primeira Igreja Batista. O casarão de madeira era a estação de rádio dos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul e residência da família Rocha; o bosque atrás da casa era conhecido como Mata do Rocha. Em primeiro plano, o telhado da Casa Amarela. A foto parece ter sido feita do Colégio Amapaense. O registro do meio é a Casa Amarela, vista de onde é hoje a Rua Eliezer Levy. A terceira foto é a capa da edição de A CASA AMARELA da amazon.com.br, onde aparece a Seringueira interceptando o muro do Colégio Amapaense |
RAY CUNHA
BRASÍLIA, 11 DE NOVEMBRO DE 2025 – Nasci no coração de Macapá/AP, onde havia o antigo aeroporto da cidade, hoje, Avenida FAB e Ruas Eliezer Levy e Iracema Carvão Nunes. Além do aeroporto, havia o Hospital Geral de Macapá, um grande complexo arquitetônico, onde nasci. Era o ano de 1954. Na, hoje, Avenida FAB, havia o prédio da Primeira Igreja Batista de Macapá, branco, com uma pequena torre. Na igreja, havia uma escola, gerida por americanos. Estudei lá. Uma professora americana queria me levar para os Estados Unidos. Minha mãe, Marina Pereira Silva Cunha, não deixou. A igreja continua lá.
Atrás da igreja havia uma grande casa de madeira, onde morava a família Rocha e onde funcionava a Estação de Rádio dos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul, empresa na qual meu pai, João Raimundo Cunha, trabalhava. Atrás da Estação ficava a Mata do Rocha, onde passei parte da minha infância, imaginando-me como Tarzan.
A Casa Amarela ficava na esquina das Ruas Eliezer Levy e Iracema Carvão Nunes, ao lado do Colégio Amapaense. Pertencia também aos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul. Quando minha família se mudou de Belterra, então distrito de Santarém, para Macapá, foi morar na Casa Amarela. Vivi nela até os 11 anos de idade. O romance A CASA AMARELA é uma recriação dela.
Durante muito tempo, tive sonhos recorrentes, noite após noite, voando sobre a Casa Amarela. No sonho, o quintal, onde ficava a Seringueira, a Mangueira e o Cajueiro, era coberto por roseirais e zínias multicoloridas, até o horizonte. Depois que escrevi o romance, parei de sonhar voando sobre os roseirais.
Das árvores do quintal só sobreviveu a Seringueira, que agora intercepta o muro oeste do Colégio Amapaense, na Rua Eliezer Levy, e apresentava uma grande lesão no tronco. Debilitada, foi atacada por fungos e insetos. Estudantes pressionaram então a Prefeitura de Macapá e o Governo do Estado para que autorizassem abater a árvore, alegando risco de vida para quem por ali transitava.
Após minuciosa inspeção, o engenheiro florestal Luiz Guilherme Dias Façanha, nascido em 18 de julho de 1952 e amigo de infância de Olivar Cunha e eu, especialista em seringueira (Hevea brasiliensis) na extinta Superintendência da Borracha (Sudhevea), um dos órgãos federais absorvidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), verificou que a árvore estava se recuperando do ferimento, embora muito lentamente, e em razão disso posicionou-se contrário ao abate.
Então, solicitou ao repórter Antônio de Pádua, da Rede Globo, que gravasse com ele uma matéria junto à Seringueira para dar sua opinião sobre o caso. “É claro que pesou na minha decisão todo o histórico da nossa infância brincando em volta daquela árvore: Olivar, João, Chico e eu” – disse, referindo-se aos meus irmãos Olivar Cunha e os gêmeos Francisco e João. Conclusão: a Rede Globo e Luiz Façanha salvaram a Seringueira.
Tombei-a no romance A CASA AMARELA, no qual ela se torna personagem e assume sentimentos humanos. Quando o protagonista, Alexandre Picanço Cardoso, é assassinado nos porões da Fortaleza de São José de Macapá, a Seringueira verte látex e suas folhas se agitam, mesmo sem vento.
Atualmente, a Seringueira está à espera de um vereador que apresente um projeto de seu tombamento, pois está ligada à história de um dos maiores pintores expressionistas do país, Olivar Cunha, e vem sendo agredida, servindo, seu tronco, com o ferimento já sarado, de lixeira.
Quanto a Macapá, na época em que a nação Tucuju ainda a habitava, em 1544, Carlos V de Espanha a chamou de Adelantado de Nueva Andaluzia e a deu ao navegador Francisco de Orellana. Em 1738, onde, hoje, é a antiga Praça São Sebastião, atual Veiga Cabral, foi instalado um destacamento militar. Em 4 de fevereiro de 1758, o capitão-general do Estado do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, fundou a Vila de São José de Macapá.
A cidade, seccionada pela Linha Imaginária do Equador, se debruça sobre o maior rio do mundo, o Amazonas, não muito distante do Atlântico. Na maré alta, o gigante avança sobre a cidade, entre o açoite do vento e o muro de arrimo, onde estaca, recua e arremete com mais ímpeto. Em meio à agitação, o Trapiche Eliezer Levy emerge, indiferente.
Entre as cidades que amo, Macapá é como a mulher que desejamos por muito tempo e que, inesperadamente, está diante de nós, nua. É sempre uma surpresa, seguida de deslumbramento e entrega total. Macapá emerge do rio como uma miragem, e só acredito que estou nela quando a cidade me engole. Entro no santuário, despido de todas as feridas, mergulho em um mundo prenhe de jasmineiros que choram nas noites tórridas, merengue, mulheres que recendem a maresia no embalar de uma rede no rio da tarde, tacacá, Cerpinha, e lhe oferto rosas, pedras preciosas, luz, toda a minha riqueza.
Nesse mergulho insano sempre me perco em ti, Macapá, e sempre de propósito, em uma vertigem da qual só me recupero em Brasília, dias depois. As viagens que fazemos no coração são vertiginosas demais para o pobre corpo.
A casa da minha infância, cada palavra que garimpei em madrugadas eternas, cada gota de álcool com que encharquei meus nervos, cada mulher que amei nos meus trêmulos primeiros versos, cada busca do éter, nas noites alagadas de aguardente, o jardim da casa da Leila, no Igarapé das Mulheres, o Elesbão, a casa da Myrta Graciete, a casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho, na Rua Mário Cruz, o Macapá Hotel, o Trapiche Eliezer Levy, pulsam para sempre no meu coração, que enterrei na Casa Amarela.
Macapá, amor
da minha vida, tudo o que posso te dar é o rubi que há no meu peito e que sempre
foi teu.



Que texto maravilhoso. Ah, seringueira, sempre que por lá, sorrio com ternura lembrando de ti. Abraços. Alcinéa
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