quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Estou só, na tarde, à espera do genuíno mistério


RAY CUNHA

A tarde é sempre cheia de mistérios, e estou só. Visto uma camisa branca, de algodão, calças e blazer azuis, de linho, e sapatos pretos, de couro. Meu rosto está bem barbeado e recendo a La Nuit de L’home, e, assim, misturo-me aos murmúrios e cheiros da tarde.

Fragrâncias do mar, vindas do meu coração, amalgamam-se ao perfume das virgens ruivas. A tarde é azul como uma tela de Olivar Cunha. Ouço sussurros, imagino o roçar dos lábios de uma mulher de olhos verdes, mas sei que são apenas sons da tarde. 

Estou só, na tarde, pois minha amada viajou. Assim, navego o rio da tarde ao encontro da noite. Meus passos me levam a um café no Setor Hoteleiro Sul. Há tantas mulheres lindas no café! Duas conversam sentadas em um sofá. Uma é loira e seus olhos são azuis como a tarde; a outra é ruiva, e seus olhos se confundem com esmeraldas. Riem. Seus risos são cristalinos como crianças recém-lavadas ao sol matinal da primavera. Conversam tão animadamente que seus lábios, grandes e vermelhos, parecem uma dança. Conversam em russo e francês. 

Degusto o primeiro coquetel do dia. Preparo-me para a noite. A tarde agoniza. Morre como uma rosa, que deixa eterno rastro de luz. Assim desliza o rio da tarde. Logo a cidade será um transatlântico iluminado, com as criaturas mais esplendorosas do Universo, que são as mulheres, espargindo perfume, como jasmineiros em tórridas noites em Manaus. 

Uma jovem mulher passa ao meu lado, quase roçando em mim. Volto-me para vê-la. É uma negra em vestido de seda; lembra-me uma que vi na Estação das Docas, em Belém. Talvez fosse da Guiana Francesa, ou de Trinidad e Tobago, ou da Martinica. Falar em Martinica, se Hemingway estivesse aqui comigo eu o convidaria para pescar ao largo de Sucuriju, no Amapá. 

Bem que Fernando Canto poderia estar comigo nesta tarde, que morre. Mas o poeta tem suas próprias tardes, que são, certamente, emersas no perfume e tepidez cafuza. Não tenho nem Hemingway, nem Fernando Canto, nem a mulher amada. Só me resta esperar mais um pouco a noite. 

Ela chega suavemente, sua luz ofuscante entra nos meus sentidos e me conduz à dimensão do mistério. Nunca estamos preparados para o genuíno mistério, prenhe de possibilidades infinitas, a noite.

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