RAY CUNHA
BRASÍLIA, 15 DE JULHO
DE 2025 – A Igreja Católica Apostólica Romana, que começou a ser
estabelecida a partir do século IV d.C., criou o inferno, um lugar tenebroso. O
poeta florentino Dante Alighieri (Florença, entre 21 de maio e 20 de junho de
1265 – Ravena, 13 ou 14 de setembro de 1321) recriou o inferno na primeira
parte da sua epopeia A Divina Comédia.
Na Idade Média, a Igreja botou o inferno de Dante para
funcionar com a Inquisição, que impunha o terror por meio das mais
inimagináveis torturas. A mais comum era tocar fogo na pessoa viva.
Esse tipo de terror sempre foi praticado nas ditaduras.
Qualquer uma. Nos antigos impérios e nos regimes totalitários a criatividade
dos torturadores nos porões é ilimitada. Mulheres são estupradas, curradas,
homens apanham nos ovos, são mutilados. Órgãos são retirados para venda. Presos
são postos para lutar até um deles morrer, com apostas. Crianças são vendidas
para escravidão sexual.
No império de Hitler, os crimes de tortura e assassinato
ultrapassam até a imaginação do Marquês de Sade. Assassinaram, muitos deles
postos vivos em fornos, 6 milhões de judeus, fora mestiços, homossexuais e tudo
o que os alemães achavam que não eram arianos. Acho que não é preciso dizer que
as casas dessas pessoas e todos os seus pertences simplesmente passam para as
mãos de outros.
No seu livro A festa
do Bode (La fiesta del chivo,
Alfaguara/Objetiva, Rio de Janeiro, 2011, 450 páginas), do Nobel Mario Vargas
Llosa, é uma reportagem sobre a ditadura de Rafael Leónidas Trujillo Molina, o
Bode, de 1930 a 1961, na República Dominicana, país que divide com o Haiti uma
das ilhas do Mar do Caribe, Hispaniola, primeiro território americano a ser descoberto
por Cristóvão Colombo.
Se quiserem chamar A
festa do Bode de romance, tudo bem. “Se o leitor preferir, considere este
volume como um trabalho de ficção. Seja como for, ficção ou não, há sempre a
possibilidade de que lance alguma luz sobre aquilo que foi escrito como matéria
de fato” – escreveu Ernest Hemingway, no prólogo de Paris é uma Festa. O fato é que A
festa do Bode disseca a mecânica da mente de um ditador, qualquer um deles.
Basicamente, perseguem o poder absoluto, poder que,
paradoxalmente, será sempre seu inferno pessoal. Ditadores, e os que gostariam
de sê-lo, têm em comum alguns traços: são, em potencial, populistas,
nepotistas, patrimonialistas, mentirosos, profundamente covardes, ladrões,
perversos, bestas crudelíssimas, torturadores, estupradores, assassinos,
criaturas diabólicas. Como se diz em psicologia: psicopatas. Chegam ao poder
porque são ousados, e maus, e porque se cercam de preguiçosos, ávidos por
carniça, a quem alimentam, para se cercarem de zumbis dispostos a empalar a
própria mãe por dinheiro.
A festa do Bode,
ao descrever o ditador estuprando a filhinha de um assessor dele, com o
consentimento do pai dela: “Ele a segurou pelo braço e deitou-a ao seu lado.
Com movimentos de pernas e de cintura, montou sobre ela. Aquela massa de carne
a esmagava, afundando-a no colchão; o bafo de conhaque e a raiva lhe davam
náuseas. Sentia seus músculos e ossos sendo triturados, pulverizados. Mas nada
disso impediu que notasse a rudeza daquela mão, daqueles dedos que exploravam,
escavavam e entravam nela à força. Sentiu-se rachada, esfaqueada; um relâmpago
percorreu seu corpo do cérebro aos pés. Gemeu, sentindo que ia morrer”.
– Grite, sua cadelinha, vamos ver se você aprende – cuspiu a
vozinha ferina e ofendida de Sua Excelência. – Agora, abra-se. Deixe eu ver se
está furada mesmo, se você não está gritando só de farsante que é.
Creio que foi em 2006 que visitei meu amigo Walmir Botelho,
em Belém do Pará. Ele era um dos leitores mais sem limites que conheci.
Recomendou-me que lesse A festa do Bode.
Já em Brasília, procurei o livro de Llosa, mas estava esgotado. Em 2010, Llosa
ganhou o Nobel; logo depois as livrarias exibiam montes de livros dele. Comprei
A festa do Bode no dia 24 de dezembro
de 2011 e terminei-o de ler no dia 11 de janeiro de 2012. Lia-o à noite, em
casa, ou no ônibus a caminho do trabalho. Desde o início, não dormi mais
direito, passando, às vezes, a noite em claro, ou entrecortada de pesadelos. Às
vezes, lendo-o, eu era possuído de indignação, e também sentia meus olhos
ficaram úmidos.
A festa do Bode:
“Quando o castraram, o fim estava próximo. Não cortaram os testículos com uma
faca, mas com uma tesoura, enquanto estava sentado no Trono. Ouvia risos
hiperexcitados e comentários obscenos, de uns sujeitos que eram apenas vozes e
cheiros ácidos, de axilas e fumo barato. Não lhes deu o prazer de ouvi-lo
gritar. Eles lhe enfiaram os testículos na boca, e ele os engoliu, desejando
que tudo aquilo apressasse a sua morte, coisa que nunca imaginou que pudesse
desejar tanto”.
A festa do Bode:
“Duas ou três semanas depois, em vez do habitual prato fedorento de farinha de
milho, trouxeram para o calabouço uma panela com pedaços de carne. Miguel Ángel
Báez e Modesto quase engasgaram, comendo com as mãos até se fartar. Pouco
depois, o carcereiro voltou a entrar. Olhou para Báez Díaz: o general Ramfis
Trujillo queria saber se não lhe dava nojo comer o seu próprio filho. Do chão,
Miguel Ángel o insultou.
– Diga a esse filho da puta nojento que engula a língua e se
envenene.
O carcereiro riu. Foi e voltou, mostrando pela porta uma
cabeça juvenil que segurava pelos cabelos. Miguel Ángel Báez Díaz morreu horas
depois, nos braços de Modesto, de um ataque cardíaco.
A festa do Bode será sempre um alerta contra as ditaduras,
como, para ficar em dois exemplos pertos do Brasil, a de Fidel Castro e
família, que fez de Cuba uma favela; e a de Hugo Chávez e Maduro, que, juntamente
com suas famílias, roubaram tudo dos venezuelanos.
Mas por que essas serpentes não caem? Porque, como a
metástase, contaminam quase todo o país, sobrevivendo do cadáver. Por isso é
que não basta apenas eliminá-los – é necessário recomeçar tudo. O povo cubano,
por exemplo, terá que enterrar, além dos ossos de Fidel Castro e quadrilha,
também o comunismo cubano, que hoje é apenas nostalgia das viúvas do regime.
Ditaduras, sejam de esquerda (?) ou de direita (?), são uma
coisa só: degradação humana. É nisso que o Brasil está se transformando?
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