O autor e capa de AMAZÔNIA na edição do Clube de Autores |
BRASÍLIA, 21 DE SETEMBRO DE 2024 – Um dos escritores fundamentais para se entender a Amazônia, o manauara Márcio Souza, autor de Mad Maria, escreveu o ensaio História da Amazônia: Do período pré-colombiano aos desafios do século XXI, uma pesquisa de fôlego sobre a Hileia. Assim é com meus romances e contos ambientados na Amazônia. Passo longe do folclore, lendas e causos, e me concentro na ciência, história e dramas urbanos. A ação, na minha ficção, é jornalística e se desenrola nas maiores cidades da Amazônia: Manaus/AM, Belém do Pará, Rio Branco/AC e Macapá/AP, minha cidade natal.
Considero Macapá a cidade mais emblemática da Amazônia por duas razões. A primeira é que a cidade é o portão de entrada da Hileia, pois é banhada pela margem esquerda do Canal do Norte do maior rio do mundo, o Amazonas, que corta a Amazônia em toda a sua extensão de Oeste para Leste. Macapá foi erguida justamente na esquina do Amazonas com a Linha Imaginária do Equador, o centro do Trópico Úmido, que secciona a cidade.
A segunda razão é que em Macapá ergue-se o maior símbolo da Amazônia portuguesa: a Fortaleza de São José de Macapá, construída pelos lusitanos com mão de obra escrava, africanos e índios. O resultado é que nas ruas de Macapá, hoje, transitam descendentes de portugueses, índios, negros, mulatos, mamelucos e cafuzos, falando uma mistura de português chiado de Lisboa com tupi e crioulo.
Coube a um dos mais incensados escritores do Amapá, o contista, poeta e compositor Fernando Canto – presidente da Academia Amapaense de Letras (AAL), doutor com formação em Sociologia, professor na Universidade Federal do Amapá (Unifap), decifrador do Amapá –, um mergulho descomunal para entendermos a Fortaleza, como simplesmente a chamamos.
Fernando escreveu, como tese de mestrado, Fortaleza de São José de Macapá: vertentes discursivas e as cartas dos construtores (Editora do Senado Federal, Brasília, 2021, 512 páginas), e, como tese de doutorado, Literatura das Pedras – A Fortaleza de São José de Macapá como locus das identidades amapaenses (Editora da Universidade Federal do Amapá, Macapá, 2017, 312 páginas).
Na mesma linha, porém no âmbito ficcional, publiquei os romances A CASA AMARELA e JAMBU, e o conto LATITUDE ZERO, que decifram Macapá e, por conseguinte, a Amazônia, inclusive a caribenha.
A Amazônia povoa o imaginário das pessoas em todo o planeta. Porém, geralmente, é uma Amazônia irreal. Trata-se do subcontinente mais fascinante do planeta e, ao mesmo tempo, o mais inóspito. Não à toa, é chamado de Inferno Verde. E eu o chamo, às vezes, de Coração das Trevas. Trata-se de um legado lusitano, a região mais rica da Terra, razão pela qual as potências hegemônicas estão de olho nela. E, nestes tempos comunistas, os chineses só não se apossaram da Amazônia porque estamos no quintal dos Estados Unidos.
Quanto a mim, além do romance ensaístico JAMBU, que é um painel da Amazônia, a partir de Macapá, recentemente publiquei AMAZÔNIA, essencial para se entender não só o Trópico Úmido, mas também a alma do amazônida – o caboco, o ribeirinho, o índio, o quilombola, o descendente do europeu que vive no Coração das Trevas, onde a escravidão é tão aterrorizante quanto malária, inclusive a escravidão sexual, de crianças, e para a venda de órgãos.
AMAZÔNIA enfeixa 29 contos em 363 páginas, todos ambientados na região. Algumas dessas histórias curtas são inéditas, mas a maioria compõe a reunião da trilogia homônima, publicada nos livros: A GRANDE FARRA, TRÓPICO ÚMIDO e NA BOCA DO JACARÉ.
Este livro despe a Amazônia de qualquer enfeite, exibindo-a como ela é, em toda a sua nudez e realidade – tanto a Hileia quanto as grandes cidades incrustadas na selva. Quanto às personagens ou situações destes contos, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, pois são apenas frutos da criação do autor. Segue-se o conto LATITUDE ZERO.
O DEPÓSITO de madeira estava adormecido como tudo o mais na
madrugada, exceto a luz do poste debatendo-se para escapar da névoa. A
claridade lutava para libertar-se da neblina pegajosa, e, como carnicão
rompendo a pelica do tumor, vazava, arrastando-se até o depósito de madeira,
infiltrava-se por uma fresta e incidia sobre o cenho franzido de Alexandre. Ele
parecia morto, pois respirava imperceptivelmente.
A luz do poste, agora, agonizava
na claridade dúbia do amanhecer. Uma chuva pôs-se a cair, adensando o ar
saturado de umidade. Alexandre se mexeu, em um gesto instintivo de quem está
sentindo frio. Encolheu-se mais, agasalhando as mãos entre as coxas. As tábuas
sobre as quais se deitara machucavam-no. Isso o despertou. Abriu os olhos como uma
boneca: só as pestanas se mexeram. O resto todo ficou imóvel. Depois procurou
alguém com o olhar. Viu-o um pouco abaixo. Moacir Canto dormia ainda. Alexandre
se levantou, estremunhado, e ficou olhando para Moacir Canto. Apalpou o bolso
traseiro à procura da carteira porta-cédula e não a encontrou. Meteu o polegar
e o indicador no bolsinho da calça e puxou uma nota de cinquenta cruzeiros.
Neste momento Moacir Canto despertou.
– Perdi a bolsa – disse
Alexandre. – Mas tinha guardado cinquenta cruzeiros no bolsinho da calça.
– Porra... – disse o outro.
Olharam-se e depois cada qual
olhou para si próprio. A farra começara no GEN, o bar do ex-policial, na Rua
Tiradentes. Alexandre ganhara as obras completas dos irmãos Grimm em um
concurso de contos e as vendeu para a tia de Moacir Canto por duzentos
cruzeiros. Separou uma nota de cinquenta, pô-la no bolsinho da calça e foram
para o GEN. Tavares, o ex-tira, estava lá no lugar de sempre, diligente,
servindo bebida a dois caras. Alexandre pediu meiota de Pitú. Tavares serviu-os
com tira-gosto de genipapo. Limitavam-se a beber. Moacir Canto incrustara-se no
silêncio. Livrava-se do rancor que levava consigo cagando em cima dos outros.
Certa vez, trepado numa árvore da Praça Veiga Cabral, deu uma cagada tão
potente na cabeça de um homem que o derrubou ao chão. Quando o tipo se
recobrou, Moacir Canto já tinha se jogado de um galho mais baixo e pôs-se ao
fresco quase caindo de tanto rir. Certa noite, pediu a Alexandre para segui-lo
de bicicleta. Moacir Canto ia na garupa de outra bicicleta, pilotada por
Grosseiro. Ficaram andando um pouco pela Praça Nossa Senhora da Conceição até
que passaram por uma moça e uma menina. Grosseiro fez a volta, pedalando sem
pressa, e tirou o fino da menina. Moacir Canto se ajeitou e deu tal soco nas
costas dela que o barulho ecoou na praça inteira. Mas engraçado foi quando uma
noite Moacir Canto achou uma folha de coqueiro e saiu à procura de vítimas com
Grosseiro. Alexandre foi atrás para ver. Iam a certa altura da Rua Leopoldo
Machado quando avistaram seis estudantes, uma ao lado da outra, ocupando a
largura do passeio público e parte da pista. O tronco da folha de coqueiro ia
pegar no pescoço dela. Era a mais alta; uma moça rosada e vigorosa. Ela se
abaixou na hora e a folha de coqueiro passou voando por cima da sua cabeça.
Moacir canto perdeu o equilíbrio e caiu. A moça pegou a folha de coqueiro e
desferiu um golpe no queixo de Moacir Canto, que ia se levantando do asfalto.
Grosseiro havia estacionado adiante e morria de rir. Alexandre passou por perto
de Moacir Canto e salvou-o de seis mulheres furiosas. Para se vingar, Moacir
Canto foi à sua casa, pegou um fio elétrico e saiu atrás das moças. Como não as
encontrou, atacou uma velha, dando-lhe tal lambada no pescoço que a velha caiu
com um grito horripilante.
Ele era um cara assim mesmo. Seu
ódio provinha da condição em que o pai deixara a família, na miséria, para
enrabichar-se por uma menina de quinze anos, mas que o manobrava como uma puta
experiente. No Dia dos Pais, Moacir Canto entrou lá e deu uma paulada na venta
do velho, arrancando-lhe pelo menos um dente. O pai de Moacir Canto era
policial. Telefonou para a polícia a fim de que pegassem o rapazinho, que devia
estar drogado para fazer um negócio daqueles. Ficou por isso mesmo. A sorte de
Moacir Canto era sua beleza. Tinha um belo queixo quadrado, o rosto oval,
sobrancelhas bem feitas e cabeleira leonina. Seus olhos, entretanto,
despertavam medo, sobretudo quando estava estupidificado de maconha. Certa vez,
Alexandre, Moacir Canto, Grosseiro e Galego Demônio amanheceram na Praia do
Barbosa. Alexandre e Grosseiro dormiam ainda. Moacir Canto e Galego Demônio já
haviam acordado há algum tempo quando avistaram a menina. Correram em cima
dela, agarraram-na e arrastaram-na para detrás de um aturiá. Alexandre e
Grosseiro acordaram com os gritos, correram para lá e viram Moacir Canto
tentando penetrar a menina por trás, enquanto Galego Demônio segurava-a pelos
cabelos, pelejando para a menina chupar o pênis grande, mole e purulento que
lhe empurrava no rosto. De todos eles, Alexandre era o único que tinha um pouco
de sensatez, e Grosseiro o atendia como a um cão. E assim livraram dos répteis
a menina.
– Está na hora de a gente se
escafeder – disse Moacir Canto, no GEN.
Pegaram a Rua Cândido Mendes e
seguiram em direção ao Igarapé das Mulheres. Todas as noites, Alexandre ia à
casa de Angélica, Sílvia e Graciette. Angélica estava no portão da varanda. Era
pequena e fofa. Usava os cabelos, de cor indefinida, bem curtos. Tinha os olhos
da cor dos cabelos e era estrábica, e tudo chamava a atenção no seu rosto: o
nariz arrebitado e os lábios vermelhos e entreabertos, como rosa despedaçada e
sumarenta. Viam-se seus dentes sob os lábios entreabertos. Isso, e os olhos,
davam-lhe um ar de avidez ninfomaníaca. Sílvia parecia uma fada morena. Tinha a
pele cor de leite, os cabelos negríssimos e longos, e os olhos azuis, da cor
dos olhos do pai. Vivia sorrindo, com seus lábios rosados. Tinha os dedos
longos, ágeis ao piano. Era bem mais alta do que Graciette. Os olhos de
Graciette ficavam entre castanho e verde. Usava unhas longas, que pintava de
vermelho, e punha uma língua tão comprida na boca dos rapazes que os sufocava.
Era ruiva. Puxava a mãe, uma potra ainda jovem que tinha o mesmo olhar
canibalesco de Angélica.
As duas outras garotas estavam na
sala ouvindo os Beatles. Nem bem os dois chegaram, Sílvia foi logo convidando
Alexandre para dançar. Ele ficou excitado. Sabia o jogo. Ela se encostava nele,
os longos cabelos negros caindo pelo rosto e pelos ombros de Alexandre. Ela não
usava soutien; os seios duros espetavam-no, e ele, de vez em quando, via os
bicos rosados dos peitos através da blusa meio desabotoada. Alexandre ia
ficando cada vez mais descontrolado. Ela batia com o púbis sobre o pênis de
Alexandre, rijo como um osso, e ele aparava as batidas, prestes a gozar.
– Vamos para o quarto? – disse
Alexandre.
Ela não falou nada. Puxou-o pela
mão em direção ao quarto, amplo e bem arrumado. Sílvia era tão delicada!
Abriu-lhe o cinto e o zíper – ele não usava cueca –, pôs o pênis duro para
fora. Ela, com seus olhos azuis, fitava maravilhada o pênis.
– Caralinho lindo! – disse, e
desceu, suavemente, seus lábios rosa sobre a glande vermelho-escura. Ele não
aguentou muito tempo. Logo se desintegrou em um gozo suculento, inundando
aquela boca de fada, respingando de esperma os lábios sedentos.
Três pares de olhos acompanhavam
tudo, sem perder nada. Ao ver o suco espermático escorrendo da boca da irmã,
Angélica se despiu em um piscar de olhos. Tinha a bundinha mais linda do mundo.
Estava gozando só de ver. Possuía o dom dos gozos múltiplos. Pegou os cabelos
de Alexandre e puxou-o para seu púbis. Cheirava a Mateus Rosé, e o líquido que
escorria pela sua coxa tinha sabor de acme. Ao ver o traseiro de Angélica,
Moacir Canto enfiou-se ali. Graciette masturbava-se com seus dedos de garras e
chorava.
Era meia-noite. Os cinco estavam
banhados, na sala, bebendo vodka e ouvindo os Beatles, quando a mãe das meninas
chegou. O pai delas, como sempre, estava em Belém. Dona Frênia deu um alô para
os garotos, a caminho do seu quarto.
– A velha está bêbeda – Moacir
Canto cochichou para Alexandre.
Foi neste momento que a garrafa
de Wyborowa do pai das meninas, que Alexandre bebeu, subiu de uma vez para a
cabeça dele.
– Vou fodê-la – disse, ensaiando
ir para o quarto da dona Frênia.
Moacir Canto estava em melhor
estado. Atirou-se de cabeça nele. As meninas jogaram-se também em cima dele.
Acabou tudo numa risada geral.
Quando Alexandre voltou a si
estava deitado no meio da Rua Cândido Mendes, de braços estendidos como Jesus
Cristo na cruz, gritando: fodam-se seus filhos da puta. Então começou a chover.
O chofer do táxi não estava vendo as coisas muito bem e pegou um susto ao
vislumbrar aquele vulto erguer-se do asfalto quase em cima do carro. Parou para
averiguar do que se tratava. Alexandre entrou no táxi. Moacir Canto veio
correndo da calçada, onde estivera vomitando, e entrou no carro.
– Bar Caboclo – Alexandre disse
ao motorista.
A chuva engrossara. Da mesa onde
estavam podiam ver a chuva estalar na calçada. Bebiam em silêncio a meiota, em
pequenos goles de apreciadores de bebida.
– Vamos voltar à casa das
meninas? – Alexandre sugeriu. Moacir Canto levantou-se incontinenti.
– Desta vez quem vai comer a
velha sou eu – disse.
– Está bem – Alexandre concordou,
chamando o garçom e pagando a meiota.
Saíram do bar na chuva, que
estava mais fina agora. Atravessaram a Rua Cândido Mendes na altura do antigo
Igarapé da Fortaleza. Escorregaram em uma poça d’água no outro lado da rua.
Chapinharam lá dentro, até que Moacir Canto conseguiu levantar-se e arrastar
Alexandre para fora da poça. Andaram em direção ao rio Amazonas, mas pararam
logo adiante, ao verem que alguém passava a chuva debaixo de uma marquise.
Aproximaram-se. Era uma moça. Moacir Canto disse alguma coisa para a moça. Ela
tentou falar, mas era muda. Moacir Canto pegou-a e começou a se esfregar nela.
A moça tentava afastá-lo. Moacir Canto subiu a saia dela e depois desceu a
calcinha. A muda começou a rir e depois procurou beijar Moacir Canto. Ele se
desviava dos seus beijos e aquilo fazia Alexandre se torcer de rir. Quando
parou de rir não viu mais a muda. Moacir Canto estava com uma calcinha na mão.
De quem diabo era aquilo? Subiram por uma escada lá mesmo naquele prédio.
– Conheço um cara que mora em um
apartamento lá em cima – disse Moacir Canto. – É da polícia e é veado.
Bateram lá e logo um sujeito
branquela meteu a cara na porta entreaberta.
– Oh! Você! – disse para Moacir
Canto, olhando também para Alexandre. – Entrem! Entrem! Vou preparar um drink
para vocês. Por que vocês não tomam banho?
Serviu duas doses generosas de
whisky e foi ver o frango que pusera no fogo. O cheiro da canja empestava o
ambiente, mas para os bêbedos nada importava. Sentaram-se, com o whisky ao
lado, e puseram-se a bater papo.
– Tenho roupas secas... –
interrompeu o escrivão, tentando atrair a atenção deles.
– Basta o teu whisky – disse
Moacir Canto.
– Isto aqui é um buraco – dizia
Alexandre, deixando o escrivão desconfiado. – Uma merda! Senão vejamos: que
escritor temos aqui? Nenhum! Há o R. Lima, mas o R. Lima não escreveu mais do
que um livro de poemas, que teve uma tiragem ridícula de quinhentos exemplares.
E por que? Porque não há editora, porque não há público, porque não há aplauso.
O escrivão ficou menos preocupado
ao perceber que não falavam do seu apartamento.
– É uma sepultura... – disse
Moacir Canto.
– Uma sepultura e uma fábrica de
poetastros – disse Alexandre. – Vês o caso do Galego Demônio, que lança um
livro mimeografado por semana...
– Não sei como aquele traficante
que banca as baboseiras dele ainda não percebeu que se trata de um psicopata
mitômano e megalomaníaco.
– No seu livro mais recente ele
relata os últimos estupros que cometeu – disse Alexandre.
– Nem a irmã dele escapou – disse
Moacir Canto. – E com aquela gonorreia crônica...
– Quis comer o diretor do Colégio
Amapaense, o professor Olhudo.
No dia em que isso aconteceu,
Alexandre estava estudando em casa para fazer quatro provas logo mais à noite
quando Galego Demônio chegou com seu livro “Eu Imortal” debaixo do braço.
– Vamos já para Serra do Navio –
disse a Alexandre.
– Tenho quatro provas hoje à
noite.
– O estudo formal embota os
neurônios. Já está tudo certo: vagão-leito especial no trem, suíte no hotel e
duas professoras mineiras para uma bacanal.
Alexandre ficou calado.
– Partamos já para a aventura! A
rotina é um veneno lento. O bar nos espera. Serra do Navio é um apelo
irresistível com suas fêmeas mineiras.
– Resolvi ir, mas não porque
Galego Demônio tivesse me convencido a ir, com aquele papo dele. Estava
entediado só de pensar nas quatro provas.
Moacir Canto serviu novas doses
de whisky e Alexandre pôs-se a contar o resto do caso. Já anoitecia quando ele
e Galego Demônio saíram da casa de Alexandre, entraram no bar da esquina e
pediram uma meiota. Não demoraram lá e foram a seguir para o Picolé Amigo, um
bar onde R. Lima bebia de vez em quando. Com efeito, encontraram-no lá.
– Lembro-me que no Picolé Amigo
houve uma discussão entre R. Lima e Galego Demônio. Galego Demônio estava
botando muita banca e R. Lima disse que seu livro deveria se chamar “Eu
Idiota”, porque ao ler os originais de “Eu Imortal” encontrara jacaré com g.
– Do ponto de vista da
linguística é possível – Galego Demônio se defendeu. – Sobretudo para um
niilista igual a mim.
– E foi com o niilismo dele que
eu tomei no rabo – disse Alexandre para Moacir Canto. Acabara resolvendo, no
Picolé Amigo, que deveria fazer as quatro provas, e não teve quem o dissuadisse
da idéia. Galego Demônio foi com Alexandre para matar algumas questões. Ao
chegarem ao Colégio Amapaense um inspetor disse-lhes que não podiam entrar
senão uniformizados. Alexandre pediu para falar com o diretor. Impressionado,
ou melhor, narcotizado com o bafo de bebida, o inspetor não opôs objeção em
anunciá-los ao diretor, que estava ali perto fiscalizando ele próprio se os
seus meninos encontravam-se devidamente uniformizados. Quando Alexandre e
Galego Demônio se aproximaram do diretor ele estava atendendo um recruta do
Exército que saíra do quartel diretamente para o Colégio Amapaense, de modo que
não pudera vestir o uniforme de estudante. Levado pelo hábito, o rapaz se
perfilou.
– Ô idiota! Esse gajo não passa
de um professor de História! – observou Alexandre para o recruta.
– O quê?! – gaguejou o diretor.
– Seu merda, foste tu que levaste
“A Galinha” para o governador, aquele ditador do caralho – disse Alexandre,
referindo-se ao jornalzinho que lhe rendera dez dias de suspensão.
– Vou chamar a polícia – disse o
diretor, com seus olhos que eram esbugalhados de nascença.
Galego Demônio tinha visto umas
fêmeas gostosas e tentou pegar no rabo de uma delas. A moça deu um grito que
chamou a atenção do diretor; ele passou uma reprimenda em Galego Demônio. A
reprimenda foi mesmo que nada. Galego Demônio já estava com o pau para fora e
tentou metê-lo no diretor.
– Foi uma cena muito engraçada
aquele veado de uma figa correndo com o Galego Demônio atrás, com aquele pau
mole dele, pingando gonorreia. Descemos correndo a escada, pois a polícia já
fora chamada, e voltamos ao bar onde deixáramos R. Lima. Pedimos mais uma
garrafa de Pitú. Iríamos cedo para Santana e de lá embarcaríamos para Serra do
Navio. Mais ou menos à meia-noite R. Lima foi embora e ficamos só nós dois no
bar. Tomamos mais duas e zarpamos. Daí não me lembro de mais nada.
Alexandre cochilou. Acordou com
uns respingos quentes no braço. Moacir Canto tinha ido à cozinha, aberto a
panela de canja e levou-a para a sala, quando a panela virou, espalhando canja
pelo chão. O escrivão cantava alegremente no banheiro. Moacir Canto pegou o que
ainda restava da canja na panela, foi até a porta do banheiro e jogou a canja
lá para dentro. O escrivão deu um berro. Ao ouvir o grito, Alexandre
levantou-se rapidamente pronto para correr. Antes de ir embora Moacir Canto
olhou em volta e depois, como se lembrasse de algo, pegou a chave da porta.
Nestas alturas o escrivão saiu do banheiro chorando e todo melado de canja.
Moacir Canto saiu e fechou a porta por fora. Lá embaixo, jogou a chave na vala
do esgoto que cortava a rua longitudinalmente.
– Vamos pegar um ar lá na
amurada? – disse Alexandre.
– Vamos pegar um rato podre no
pescoço? – disse Moacir Canto, atirando nas costas de Alexandre uma ratazana
morta, que encontrara na calçada, correndo depois para a amurada que dava para o rio Amazonas, ao lado da Fortaleza de
São José de Macapá.
Alexandre se abaixou numa poça de
água e lavou o pescoço. Depois andou em direção a um depósito de madeira.
Moacir Canto veio também e entrou no depósito. Alexandre adormeceu recordando
“A Galinha”, o jornalzinho que não passou do primeiro número. Havia, em sala de
aula, um ricaço. O pai era dono de boa parte da cidade. Ele se ofereceu para
financiar o jornal. Foram, então, uma noite, para a casa do ricaço. O filho
dele os levou para o gabinete de trabalho do velho. Lá pelas tantas Alexandre
tirou o telefone do gancho e discou um número qualquer. Nessas alturas, o velho
estava tomando soro no quarto dele e apanhou a extensão para saber do que se
tratava àquela hora da noite, quase onze horas.
– Alô! – disse uma voz de mulher,
sonolenta.
– Quem é?
– Solange – disse a voz.
– Oh! Solange! Minha doce
cadelinha, vaquinha linda, minha bocetinha fedendo a merda, vou já aí para
empurrar meu caralho na doçura do teu jardim de trás...
O ricaço arrancou a agulha da
veia, pegou um cinto e irrompeu no escritório. O velho entrou dando lambada no
filho dele. Havia, além de Alexandre, outro redator, um garotão de cabeça
raspada, que montou na sua bicicleta e se evaporou.
O primeiro número do jornal, e
único, saiu com uma matéria sobre o governador, o general ditador do Amapá.
Dizia que ele passava o dia de binóculos por trás das persianas da sua sala, no
Palácio do Setentrião, tentando ver, do outro lado da Praça da Bandeira, as
calcinhas das estudantes que se sentavam sobre o muro do Colégio Amapaense.
Sobre o diretor do educandário dizia que tinha um acordo tácito com algumas de
suas alunas, de modo que lhes dava nota dez se elas se arreganhassem e o
deixassem ver suas calcinhas nas aulas de História. Na mesma edição foram
escolhidos os dez mais punheteiros. O diretor enviou um exemplar do jornal ao
secretário de Educação, que o despachou para o governador. Mas nesse trâmite o
exemplar desapareceu. Houve um inquérito e os responsáveis por “A Galinha”, que
na expectativa dos rapazes deveria pôr ovos de ouro, acabou rendendo-lhes dez
dias de suspensão.
Naquele mesmo dia tropical úmido Galego Demônio entrou no Gato Azul e pediu uma dose de rum Montilla. Fazia aquilo ordinariamente e bebia até o anoitecer. Então voltava para casa, jantava e saía de novo. Naquele dia bebera além do normal. Ao retornar a casa não encontrou ninguém. Estava sozinho. O pai fora comprar açaí no arquipélago do Marajó; a mãe estava em Belém; a irmã, sabe Deus. Foi ao fogão. Comeu nas próprias panelas. Sentia-se pesado. Foi ao quarto. Deitou-se. Dormiu. Bunda de Breque, a irmã, estivera escondida, espreitando-o. A claridade da luminária do poste vencia o piche da noite sem estrelas e entrava no quarto, banhando os móveis com um manto irreal. Galego Demônio dormia de peito para cima. Assim, dormindo, era belo como qualquer jovem da sua idade. A primeira machadada pegou no lado do pescoço. Galego Demônio acordou como se estivesse impulsionado por molas. Tentou agarrar-se em alguma coisa e começou a gorgolejar como porco sangrando. Bunda de Breque ligou a lâmpada e olhou para Galego Demônio. Ergueu de novo o machado. Galego Demônio fitou-o aterrado e começou a arrastar-se para um dos lados da cama, já empapada de sangue. Bunda de Breque depôs o machado no chão, com o cabo encostado na cama, desafivelou o cinto de Galego Demônio e arriou sua calça, juntamente com a cueca. O pênis de Galego Demônio estava com os curativos purulentos como sempre. A machadada deixou-o apenas pendurado pela pele do escroto. A próxima machadada seccionou-o. Depois, Bunda de Breque aprumou bem o machado, como se fosse dar o golpe final em um tronco que estivera tentando partir ao meio, e desceu-o. A cabeça de Galego Demônio pulou e foi bater na parede. Bunda de Breque arrastou o corpo mutilado, desceu as escadas, caminhou até o monturo e atirou-o sobre o monte de caroços de açaí. Foi buscar a cabeça e jogou-a também no monte de caroços. Chovia como o diabo. Bunda de Breque voltou ao quarto de Galego Demônio, levando seu trompete, e pôs-se a tocar “O Silêncio”.
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