TRÓPICO: o Brasil como ele é. Capa da edição do Clube de Autores |
RAY CUNHA
BRASÍLIA, 19 DE SETEMBRO DE 2024 – Chão em Chamas, de Juan Rulfo, é uma coletânea de 17 contos, publicada originalmente em 1953. Qualquer candidato a escritor deve ler esse livro, pois os contos atingem a perfeição. E qualquer pessoa que queira entender a fundo o México precisa o ler.
O Brasil também está em chamas. Estão tocando fogo no país. Destruindo-o. O agro aguentará quanto tempo? As grandes empresas irão embora? O que o governo pretende fazer com as terras? Entregará para os chineses?
Brasília está pegando fogo juntamente com o país. Há dias em que não dá nem para respirar direito, pois a fumaça se mistura ao calor e à secura. Há um livro de contos que retrata bem essa situação: TRÓPICO, deste jornalista; grita como uma profecia de muitas coisas que estão ocorrendo agora.
Em TRÓPICO também sente-se que o chão está em chamas, que o Planalto está em chamas. Mas o incêndio é muito mais profundo, pois já atingiu a liberdade. O ar sufoca, não só pela fumaça, mas ainda pela mordaça. Segue-se o conto PLANALTO EM CHAMAS.
ASSIM QUE FOI absolvido na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados abriu um grande sorriso e elevou a mão direita fechada, como fazia Pelé. A diferença é que Pelé é o maior atleta de todos os tempos. E não deverá ser ultrapassado. Ao passo que o braço peludo do deputado corpulento e branco, quase albino, remetia à pata de um porco Yorkshire. O gesto continha alguma coisa indecente. Os “trouxas”, como ele chamava a todos que não fossem da organização à qual pertencia, iludiram-se pensando que o pegariam com míseros 10 mil reais. Fora flagrado com um depósito de 10 mil reais na sua conta bancária, feito por um dos operadores da sangria na Petrobras. A oposição – aquilo era oposição, mesmo? – fez a maior grita e ele teve que enfrentar, enfrentar não, apenas teve que passar por aquele tédio, que era a encenação da Comissão de Ética. Não havia o que temer, o país estava todo aparelhado; os três poderes, inclusive as Forças Armadas, já estavam beijando as mãos do presidente da República e do ministro da Defesa. O Supremo, a Receita, o BNDES, tudo estava aparelhado. Temer o quê? O poder, especialmente o poder de esmagar quem atravessasse seu caminho, excitava-o. Lembrou-se da sua sobrinha, gostosa que só ela, 17 anos. Seu irmão caipira enviara-a para fazer o vestibular na UnB. Sua esposa teve que passar uma semana fora, ele dispensou a empregada e no primeiro dia sozinho com a sobrinha imobilizou-a e em meio a uma tonelada de “não, titio” estuprou-a durante aquela semana inteira, deixando bem claro que se desse com a língua nos dentes seria morta. Simples assim. Quando a esposa do Yorkshire chegou, a menina disse que precisava ir à sua casa, conseguiu dinheiro, foi-se embora, e, em casa, se matou. Ironia, havia furtado o revólver do bicho e se matou com ele. Ficou por isso mesmo, pois ela não deixou um bilhete sequer, mas somente o revólver. E depois ele era da cúpula da organização, pois o projeto para calar a imprensa não era dele, tanto o que tramitava na Câmara quanto o de calar a boca da mídia por meio de verba pública? “A esmagadora maioria dos jornalistas, especialmente donos de empresas jornalísticas, é de putas, daquelas que chupam durante três horas seguidas e ainda perguntam se estão chupando direito” – dizia. Chegava a Brasília terça-feira à tarde e retornava para São Paulo quinta-feira à noite. Às quintas-feiras à tarde já só ficavam ele e o chefe de gabinete. Estavam os dois, lá, e o Yorkshire começou a arrumar sua maleta. Era uma maleta especial. Embutidos no seu couro, o porco traficava, a cada saída de Brasília, 10 mil dólares, em cédulas de 1 mil dólares, lavados na agência de publicidade do seu cunhado, em São Paulo.
Os três estudantes chegaram por volta das 14 horas, pela entrada do Senado. A segurança, uma senhora de nariz empinado, olhou suas carteiras de identidade e perguntou a cada um deles aonde iam. À biblioteca, responderam. Passaram pelo detector de metais, sempre sob o olhar vigilante do magote de seguranças, que pareciam se esforçar para parecerem policiais de verdade, e foram diretamente para a Câmara, tomaram a esteira rolante para o Anexo IV e pouco depois entraram no corredor do pavimento onde ficava o gabinete do deputado Yorkshire. Quase não havia movimento naquela hora. Um deles se atrasou e ficou em um ponto de onde podia ver o hall e o corredor. Os outros dois foram entrando no gabinete. Enquanto um cumprimentava o chefe de gabinete e lhe desferia, com a mão esquerda, forte pancada na nuca, o outro estava prestes a fazer a mesma coisa com o deputado. Corpulento, com pescoço de touro, o Yorkshire ficou apenas tonto, mas quando ia reagir recebeu tremenda estocada de caneta Bic na glote e começou a estrebuchar. Lembrava porco morto na roça; depois de uma porretada na cabeça levou uma peixeirada no pescoço. Ele se levantou, guinchando pela glote, derrubou tudo ao seu redor, recebeu um telefone nas orelhas e desabou na sua grande mesa, sempre guinchando, até ficar quieto. O assassino tirou da sua mochila uma faixa e a abriu sobre a mesa, na frente do cadáver, que se tornara ainda mais monstruoso. A faixa dizia: “Comando de Caça aos Corruptos. Este canalha é o primeiro de muitos que irão tombar!” Quando o assassino saiu da sala do deputado o chefe de gabinete começava a recobrar os sentidos, então o atingiu no bulbo occipital, próximo ao nervo vago; quem conhece acupuntura sabe que se trata do ponto da viúva, o VG-15.
Ligaram para o que ficara no corredor. Tudo tranquilo.
Tomaram novamente as escadas e saíram pela portaria do Anexo IV, onde um
automóvel negro já os aguardava. Dentro do carro tiraram as perucas, barbichas
e óculos escuros. Estavam na faixa dos 30 anos. O do volante parecia ter o
dobro da idade deles. Entraram no túnel do Itamaraty e pegaram o Eixo
Monumental, ladearam a Praça dos Três Poderes até o Palácio do Planalto e
dobraram à esquerda, seguindo novamente pelo Eixo Monumental. Antes de chegarem
à Rodoviária do Plano Piloto, dobraram à esquerda, em direção ao Setor de
Autarquias Sul. A temperatura ficara insuportável e o chão de concreto do
Conjunto Cultural da República parecia em chamas.
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