domingo, 8 de maio de 2022

Gritos e sussurros

Ray Cunha e o thriller político O CLUBE DOS ONIPOTENTES

RAY CUNHA

A tarde desmaiava, assaltada por flocos negros, invisíveis, acamando-se na cidade, e logo os anúncios luminosos, as luzes dos postes e os faróis dos carros começaram a povoar as ruas. Dentro do bar, a vida recomeçava. Podia ver parte do Setor Hoteleiro Sul, o Pátio Brasil e alguns prédios do Setor Comercial Sul, fazendo fundo para o que o anoitecer me ofertava, o passa-passa de mulheres tão lindas que certamente eram miragens. Lá fora, o tempo estava seco e quente como um soco na boca do estômago, mas dentro do bar o ar refrigerado e o umidificador funcionavam ajustados como um foguete tripulado.

– Conseguirão assassinar Bolsonaro? – meu amigo, velho jornalista, que não conseguiu se adaptar aos novos tempos, perguntou. Também eu logrei resistir a treinamento motivacional, coaching, como se diz, uma técnica voltada para o que eu chamo de “escravidão mansa”. Lembrei-me de William Faulkner: “É uma vergonha que haja tanto trabalho no mundo. Uma das coisas mais tristes é que a única coisa que um homem pode fazer durante oito horas diárias, dia após dia, é trabalhar. A gente não pode comer, beber ou fazer amor durante oito horas diárias: só o que se pode fazer, durante oito horas, é trabalhar. Eis aí a razão por que o homem torna a si próprio e a todos os demais tão miseráveis e infelizes”. Não sei se Faulkner disse exatamente “fazer amor”. Acho que ele deve ter dito “fornicar” e o tradutor achou que seria mais palatável “fazer amor”. Sempre achei que a expressão “fazer amor” não traduz exatamente “fornicar”. Talvez fique melhor “transar”. Cheira mais a suor.

– Ele joga tão bem xadrez e é tão aclamado pelo povo e admirado pelos militares que nem Klark Kent conseguiria se aproximar dele sem ser notado – disse-lhe.

Uma jovem entrou no bar do hotel. Remetia imediatamente a jambo maduro, com sua alva pele cafuza e longos cabelos de índia descendo-lhe como ervas daninhas até a garupa de DNA africano. Trajava vestido de seda branco, estampado de amarelo e vermelho. Foi direto ao balcão e se aboletou em um tamborete, os quadris maravilhosos enchendo meus olhos, e os do meu velho amigo jornalista, que perdeu, de repente, o interesse por Bolsonaro. Duas jovens europeias, com suas peles brancas, rosadas, quase vermelhas, inflamadas pelo sol tropical, também olharam para a cafuza, que deixou um rastro de jasmineiros chorando em noites tórridas em Macapá, cidade que flutua na boca do maior rio do mundo, o Amazonas. A cafuza pediu água tônica. Inadvertidamente, levei minha água tônica à boca. Gelada, refrescante, a bebida assumiu sabor de Caribe, ao som da voz da mulher improvável, que tinha sotaque francês. “Será da Guiana Francesa?” – pensei, referindo-me à colônia que os franceses mantêm vizinha ao estado do Amapá, que o senador vitalício Zé Sarney, o dos Atos Secretos, anexou ao Maranhão. 

Meu velho amigo jornalista suspirou. Parecia o último suspiro de décadas de álcool, cigarro, noites indormidas, desregramento.

– Produto genuíno do trópico – cochichou-me, quase babando.

Fiz sinal ao garçom para que levasse mais uma garrafa de água tônica para mim e uma Cerpinha para meu amigo. Cerpinha é a melhor cerveja do mundo. Quando eu ainda bebia e ia a Belém, começava a degustar Cerpinha enquanto tomava banho e depois observando a cidade pela janela do quarto de hotel, de modo que ao mergulhar nas veias da Cidade Morena já estava pronto.

– É da Guiana Francesa – disse-lhe. – Ou de Macapá; há muito tempo morando em Caiena.

– Conheci uma assim no Acre – confidenciou-me.

De repente, lembrei-me de Gabriela, Cravo e Canela. A mulata, a mulher cor de canela, a negra, a índia, mulheres produzidas para a libidinagem dos europeus e brasileiros de sangue azul. Um paradoxo. Mesmo com 10 mil anos de polimento, levado ao paroxismo em países como a Grã-Bretanha, a natureza masculina conserva o animal irracional que a habita. Se queres conhecer a verdadeira personalidade de um homem lança-o à guerra, ou enche-o de cachaça, ou observa seu comportamento ao assalto de uma mulher fatal. Na guerra, é pior. Neste momento mesmo, na Ucrânia, pode ter soldados russos estuprando crianças.

– Temos mulheres assim em toda a Amazônia – comentei, pois sabia que meu amigo conhece a Hileia tanto quanto eu, o que quer dizer que ambos já mergulhamos na alma da mulher amazônida, e sentimos o mundo girar, a mesma experiência de tomar tacacá às 6 horas da tarde na banca do Colégio Nazaré. Jambu! Jasmineiros chorando! Cerpinha! O céu tão azul que sangra! Maresia! O balanço de uma rede! Leite da mulher amada! Jambo, doce como seios! Jambu!

A cafuza fazia, agora, anotações em um caderno tipo Moleskine, e vi que era da Tilibra. Seria jornalista também? Ou secretária executiva de algum bilionário do ramo dos hotéis? Seja lá o que for, era tão linda que causava dor. Eu estava tão concentrado nela que a mulher improvável se voltou para mim. Só então vi seus olhos, de clorofila, duas pedras preciosas a me engolirem, e percebi que o olhar da cafuza fora ocasional, que ela sequer me viu. Ao sair, deixou um banzeiro de romance e aventura no bar. Meu amigo e eu ficamos calados. Eu sabia o que estava pensando e ele também sabia perfeitamente o que eu sentia. Logo depois saímos. A noite era um relicário de joias. Mais tarde, em outro bar, ouvi, quase inaudível, vindo de algum lugar, Zorba, o Grego, de Mikis Theodorakis.

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