quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Belém é ingovernável ou o prefeito Zenaldo Coutinho não deu conta do recado em oito anos?

O atual prefeito de Belém do Pará, Zenaldo Coutinho, então deputado federal pelo PSDB e aspirante a prefeito da Cidade das Mangueiras, me recebeu no seu gabinete no Anexo IV da Câmara dos Deputados na manhã de 14 de fevereiro de 2012, uma terça-feira, para entrevista, publicada no meu site (raycunha.com.br), em 26 de fevereiro de 2012, sob o título: “Belém precisa voltar a ser a capital da Amazônia”.

Com base nas declarações e promessas de Zenaldo Coutinho, agora que ele conclui oito anos à frente da Prefeitura da Metrópole da Amazônia, é possível responder à pergunta: Belém é ingovernável ou Zenaldo Coutinho não deu conta do recado? Tirem as suas conclusões. Segue o texto da entrevista.

Fundada em 12 de janeiro de 1616, Belém, a capital do estado do Pará, é a mais importante cidade da Amazônia. Um mergulho na história e na cultura da Amazônia Clássica, a análise da geografia do Trópico Úmido e um estudo geopolítico do Mundo das Águas confirmará isso.

À noite, lembra um óvni pairando sobre a baía de Guajará. O município, com 1.064,918 quilômetros quadrados, é integrado ainda por 38 ilhas habitadas, tem cerca de 1,5 milhão de habitantes (IBGE/2010) e sua região metropolitana já conta em torno de 2,1 milhões de habitantes. Os dois últimos prefeitos dessa cidade ensolarada foram desastrosos. Edmilson Rodrigues  (então petista e hoje deputado federal pelo Psol), 55 anos, foi prefeito de 1997 a 2004 (disputa o segundo turno, agora em 2020, contra o delegado Eguchi, da Polícia Federal). Só não foi pior do que a ex-governadora do Pará, a petista Ana Júlia Carepa, porque isso é impossível, mas foi substituído por um quase Ana Júlia Carepa: Duciomar Costa, 57 anos, do PTB, que esquenta (ou esfria) a poltrona de prefeito desde 2005. Hoje, a Metrópole da Amazônia é uma sombra do que foi. Por isso, a Cidade Morena precisa de um prefeito, talentoso, que a entenda.

Entre os vários pré-candidatos, um se destaca pelo seu preparo, não só sobre Belém, mas também sobre a chamada questão amazônica. Zenaldo Rodrigues Coutinho Júnior, 51 anos, jovem advogado no quarto mandato de deputado federal pelo PSDB, foi quem liderou o não à divisão do estado do Pará em três, e agora coleta assinaturas para a formação da Frente Parlamentar em Defesa da Amazônia. A Amazônia, diga-se, continua sendo vista, criminosamente, como celeiro e pulmão do mundo, e a massa da sua população, de 25 milhões de habitantes, é cada vez mais espoliada por uma elite que passa por cima da própria mãe para morder dinheiro.

A questão é: a energia elétrica gerada na Hileia e a produção mineral no Trópico Úmido precisa enriquecer também o amazônida, proibido até de abater jacaré, que dá no meio da canela, e come também canela. A grande imprensa vê uma Amazônia mitológica, por jornalistas descredenciados, em nível mundial, mas principalmente no Brasil, e, especialmente, em Brasília, a Ilha da Fantasia; e, pasmem, por desinteligência na própria Amazônia. Por isso é que a Amazônia precisa ser divulgada tal qual ela é, para que os amazônidas se livrem do pensamento de colonizado, a síndrome do vira-lata.

O principal problema de Belém seria rede de esgoto e de galerias de águas pluviais defasadas?

O principal problema de Belém é ausência de autoridade. Nós temos um conjunto de problemas que decorrem da falta de ação; muitas vezes, da absoluta inoperância da administração municipal, o que resulta em situações dramáticas. Belém é uma das capitais com menor índice de esgotamento sanitário do país, temos trânsito caótico, serviço de saúde ineficaz, insignificante, sistema educacional irrisório. Precisamos modernizar, aparelhar, equipar e ampliar a rede municipal de ensino fundamental, da mesma forma que temos que ampliar os serviços de saúde. As pessoas estão padecendo muito em Belém. Além da ausência de autoridade, há ainda falta de carinho para com a população. Belém precisa ser vista como extensão das casas de todos. Belém já foi a metrópole da Amazônia, e tem que voltar a sê-lo.

O senhor pensa Belém como um arquipélago?

Belém é a única capital-arquipélago do país, mas, nela, o transporte público fluvial é subutilizado. Implementar o transporte público fluvial já foi tentado, mas não logrou êxito. Creio que por não ser um serviço de excelência, com garantia de segurança e rapidez, como, por exemplo, a Rio-Niterói, com barcaças, catamarãs etc. É necessário que tenhamos um olhar sobre Belém de modo a não vê-la apenas como continente, mas uma cidade que tem 38 ilhas povoadas e onde há pessoas, portanto, com necessidade de transporte. Obviamente esse não é o grande nó do trânsito belenense, mas, resolvido, ajudará a desafogar o trânsito. Icoaraci, por exemplo, pode abrigar um porto rodo-fluvial.

Belém é historicamente a cidade mais importante da Amazônia, mas seu patrimônio arquitetônico está se deteriorando.

Isso é gravíssimo, e se soma ao desleixo, falta de carinho, de atenção da autoridade para com tudo aquilo que é de todos. Repito: a cidade tem que ser vista como nossa casa. Jogamos lixo no chão da nossa casa? A cidade precisa do sentimento coletivo de respeito, de carinho.

Belém é a Cidade das Mangueiras; seu subúrbio o é também?

Antônio Lemos (prefeito de Belém, no fim do século XIV e início do século XX) foi o responsável pela plantação das mangueiras, que é uma árvore exótica na Amazônia, originária da Índia. Particularmente, defendo os corredores de mangueiras, mas também uma variação da nossa arborização, as essências amazônicas, estendidas também para os bairros periféricos de Belém, que precisa, como um todo, de mais arborização e jardinagem.

E as portas para o rio?

O turismo em Belém é incipiente. Precisamos de uma ação muito forte voltada para o turismo. Temos muito mais opções do que Manaus. Em Belém, além da floresta e da história, temos praias de rio e de mar, e Marajó, pertinho. Temos que estar antenados com a questão turística.

Que nota o senhor dá para os 7 anos da atual administração municipal?

Eu prefiro aguardar a nota que a população vai dar em outubro.

Caso o senhor seja efetivado como candidato e se eleja prefeito qual será sua linha de atuação?

Já estou trabalhando em um projeto, ousado, moderno, corajoso, por uma Belém que faça justiça à comemoração dos seus 400 anos, o que ocorrerá na próxima administração.

Falta financiamento para a reforma estrutural de Belém?

Financiamento se consegue; o que falta é estabelecer prioridades. Agora mesmo há um embate, desnecessário, da prefeitura com o governo do estado, que, há 20 anos, desenvolve um projeto, com os japoneses, com visão metropolitana, porque ele leva o ônibus expresso de Marituba até o centro de Belém, com investimento de US$ 320 milhões, já garantidos, assegurados, assinados, e a prefeitura tem um outro projeto, de Icoaraci até São Brás. Pretende-se que a prefeitura chegue até só o Entroncamento, para que não haja sobreposição de projetos, até porque os japoneses só financiam se houver apenas um executor da obra. Essas ações de integração são fundamentais, daí porque é importante a harmonia entre a prefeitura e o governo do estado, pois o administrador público não deve ficar isolado, o que inclui um diálogo eficiente com todos os mecanismos de financiamento.

O senhor liderou a campanha pela não divisão do Pará. Por quê?

Em defesa do nosso estado, da população. Durante muitos anos, aqui no Congresso, briguei para que houvesse estudos que antecedessem a consulta popular, sobre os impactos sociais, econômicos, tributários, ambientais, que analisassem as consequências na vida das pessoas em cada região a respeito de uma possível divisão. Infelizmente, foi um discurso para surdos. No caso de Belém, todos os estudos preliminares que havia, incluindo o da Universidade Federal do Pará, apontavam para o empobrecimento das três regiões. Teríamos implemento de despesas sem implemento de receitas. Teríamos que dividir o pouco que o estado do Pará já recebe, e teríamos o ônus de ter três assembleias legislativas, três palácios de governo, ou seja, teríamos uma elite usufruindo das estruturas de poder e uma população empobrecida e sem políticas públicas. Isso ensejou a nossa participação ativa, aqui no Congresso, e, posteriormente, na campanha pelo não no plebiscito. Graças a Deus, dois terços da população disseram não à divisão do Pará.

Que avaliação o senhor faz do governo Dilma Rousseff?

A presidente Dilma tem acertado em adotar uma série de modelos que nós, do PSDB, legamos, como a questão da privatização. Os petistas transformaram em demônio a questão das privatizações, mas agora o próprio governo federal, através da presidente Dilma, reconhece que se trata de um modelo que dá mais eficácia na gestão dos serviços públicos, se o modelo for aplicado de maneira adequada, como o foi na telefonia, quando nós o aplicamos. Eu me lembro que antes que o PSDB privatizasse a telefonia, telefone era tão caro que era declarado no Imposto de Renda. Hoje em dia, todos os brasileiros que quiserem têm acesso a telefone, graças à privatização. Também o Brasil se mantém equilibrado, mesmo com a crise internacional, graças aos fundamentos da macroeconomia brasileira deixados pelo governo do PSDB, como é o caso da Responsabilidade Fiscal, que foi um item extremamente criticado pelo PT, na época em que nós o adotamos, e hoje é modelo até na Europa, no combate à crise europeia. Ainda, o governo petista mantém o Plano Real, o maior instrumento de justiça social estabelecido no país. Mas, apesar de pouco mais de um ano de governo, sete ministros caíram flagrados em corrupção, o que é muito grave. E precisamos agilizar as obras nacionais, que estão muito vagarosas, especialmente as do chamado PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que estão empacadas. Temos que agilizar isso. Nós, da oposição, estamos fiscalizando para que as coisas efetivamente aconteçam.

Se o PT lê a cartilha do PSDB, por que os tucanos não conseguem voltar para ao Palácio do Planalto?

Porque existe transição democrática. Nós passamos oito anos no poder e o PT está caminhando para os doze anos, mas em muitos estados, de norte a sul, o PSDB está no poder. A democracia é, portanto, um processo natural, legítimo. Mas os partidos têm que viver, sempre, na busca da realização dos seus projetos, buscando eficiência, eficácia para melhorar a qualidade de vida da população, o que quer dizer que o projeto de poder não é um projeto de poder pelo poder, e também não quer dizer que se o partido não está naquele momento no poder ele está liquidado. Nós podemos exercer o poder no governo e na oposição. Aquele que está no governo exerce o poder do fazer e o que está na oposição exerce o poder político da pressão, do monitoramento, da fiscalização, da cobrança, para que os projetos públicos aconteçam. Nenhuma dessas duas posições é inadequada. A democracia só persiste porque existem essas posições diferentes. O importante é que o PSDB tem lutado a favor do Brasil, e continuaremos a nossa caminhada. Temos já o nosso pré-candidato a presidente da República, Aécio Neves, que foi grande governador de Minas Gerais e é senador respeitado. Estamos construindo um diálogo com a população para voltar à presidência da República.

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

O estado do Amapá ferve no ventre das trevas

Tromba dágua em Macapá (Foto de Caio Gato - 2014)

BRASÍLIA, 9 DE NOVEMBRO DE 2020 – Há 7 dias que os amapaenses sobrevivem no umbral, com apagão, falta de água, vírus chinês e protestando nas ruas ateando fogo em pneus. O sistema de geração e transmissão de energia elétrica do estado, de responsabilidade da Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), está um caco. Terça-feira 3, uma das três subestações que atendem o estado foi atingida por um raio e pegou fogo. Cerca de 90% da população, o equivalente a mais de 700 mil pessoas, ficaram sem energia elétrica, e, daí, foi um passo para a falta de água encanada. De lá para cá, muito alimento apodreceu e muito empresário, já baleado com o vírus chinês, perdeu o resto que ainda tinha. 

Mas sempre faltou energia elétrica e água encanada no Amapá; a diferença de agora é que a estrutura de geração e transmissão de eletricidade não suportou os remendos e estratégias para enfrentar acidentes não havia. 

A energia elétrica vem do Linhão de Tucuruí e da Usina Hidrelétrica de Coaracy Nunes, ou do Paredão, no município de Porto Grande, a 102 quilômetros de Macapá, a capital. O senador Randolfe Rodrigues (Rede/AP) está enfezado mas é com abstenções nas eleições municipais e seu partido já pediu no Ministério Público Eleitoral e no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) o adiamento do pleito. Mas sexta-feira 6, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) afirmou que as urnas eletrônicas têm autonomia para funcionarem até mesmo sem energia elétrica e já encaminhou mais 1,2 mil baterias novas para assegurar as eleições no estado, domingo 15. A votação ocorrerá das 7 às 17 horas. 

O Amapá fica no setentrião da Amazônia Azul, no rumo do Caribe. Com 142.828 quilômetros quadrados, é o décimo oitavo maior estado do Brasil. Foi desmembrado do Pará em 1943, com a criação do Território Federal do Amapá. Em 1988, a Constituinte o elevou a estado. Com mais de 800 mil habitantes, é potencialmente rico, mas com população pobre: é o décimo quinto PIB per capita do país. Em 2010, apresentou a terceira maior taxa de mortalidade infantil entre os estados brasileiros. 

Os governadores eleitos que se sucederam no Amapá fizeram apenas obras cosméticas e não deixaram nenhuma estrutura de desenvolvimento estratégico. Os prefeitos de Macapá também. 

Por exemplo: na capital do Amapá há edifício de 20 andares, mas não há esgotamento sanitário, muito menos estação de tratamento de esgoto; blecautes são comuns na capital tucuju e muitas das localidades do estado não conta com energia firme; o Amapá tem o maior potencial piscoso do planeta, mas sua universidade federal não oferece curso de oceanografia, muito menos de engenharia naval, ou de pesca; a BR-156, rodovia federal que corta longitudinalmente o estado e que liga Macapá à Caiena vem sendo construída há mais de 80 anos. Começou a ser pensada em 1932. Até 1945, somente nove quilômetros foram construídos. No inverno amazônico, a parte inacabada da rodovia se transforma em atoleiro; no verão, em um inferno de poeira. 

Em Santana, na Zona Metropolitana de Macapá, fica o mais estratégico porto brasileiro, construído inicialmente para embarcar manganês de Serra do Navio/AP para os Estados Unidos. Atualmente, pertence ao município de Santana. Sua profundidade é adequada a qualquer cargueiro transoceânico e é o porto brasileiro mais próximo, simultaneamente, dos mercados dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia via Canal do Panamá. Pode receber todas as commodities da Amazônia por hidrovias. Devia ser federalizado. Também as commodities destinadas à América Central podem ser armazenadas em Santana e de lá seguirem pela BR-156 até Caiena e de lá para toda a América Central. 

A BR-156 começa no município de Laranjal do Jari, vai até a capital do estado, Macapá, e termina no município de Oiapoque, no extremo norte. São 595 quilômetros entre Macapá e Oiapoque, e 369 quilômetros entre Macapá e Laranjal do Jari, totalizando 964 quilômetros. O município de Oiapoque, no norte do Amapá, é separado da Guiana Francesa pelo rio Oiapoque. Em 2008, começaram a construir uma ponte binacional, que ficou pronta em 2011, mas não foi inaugurada porque a BR-156 não estava pronta; tornou-se um enfeite até 20 de março de 2017, quando finalmente foi inaugurada, pois a BR-156, mesmo inacabada, constitui-se na única via de exportação utilizada por caminhoneiros. Também muitos turistas utilizam a rodovia, mesmo com os perigos que ela apresenta, pois, para muitos brasileiros, principalmente da Amazônia, Caiena é a porta da Europa. 

Quanto à França, concluiu desde 2011 toda a estrutura viária e aduaneira do lado de lá, incluindo a rodovia de 200 quilômetros entre Saint Georges de l’Oyapock a Caiene, capital da Guiana Francesa, e esta à América Central, com aquele asfalto caprichado visto nos Estados Unidos e Europa, e não o asfalto infame do Brasil. 

A outra rodovia federal no Amapá, a BR-210, ou Perimetral Norte, apesar de estratégica, porque ligará Macapá ao resto do país por estrada, é apenas um embrião, com pouco mais que 471 quilômetros. Começa em Macapá e empacou em Serra do Navio. 

O Amapá tem potencial econômico fabuloso, como todos os estados da Amazônia, mas a roubalheira desenfreada; o tráfico de drogas, mulheres e crianças; a mentalidade de colonizado do amazônida, tornam a região refém de mazelas crônicas. 

Quanto a Macapá, tem dois marcos de grandeza planetária: a Linha Imaginária do Equador, que secciona a cidade, e o Canal do Norte do rio Amazonas, que a banha na margem esquerda. Enquanto o Equador é só uma linha imaginária, o rio Amazonas é a substância da cidade. Com descarga hídrica tão gigantesca que reduz a salinidade superficial do mar, pois despeja, em média, 180 mil metros cúbicos de água por segundo no Atlântico, dos quais 65% via Canal do Norte – 16% da água doce vazada para os oceanos do mundo. Assim, o rio invade o mar com 8,6 baías de Guanabara e espantosos 3 milhões de toneladas de sedimento a cada 24 horas, ou 1,095 bilhão de toneladas por ano. O resultado disso é que a costa do Amapá continua crescendo e é a mais rica do mundo em vidas do mar, embora sejam a mais mal guardada pela Marinha de Guerra, menos estudada pela academia e a mais disputada pela pirataria global. 

A boca do Canal do Norte, escancarando-se do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede em torno de 240 quilômetros, e penetra cerca de 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias, e, juntamente com outros gigantes do Pará e Amapá, e extensos manguezais, contribui para que a Amazônia Azul setentrional seja a costa mais rica do planeta em todo tipo de criaturas marinhas. 

Mas Macapá, com mais de 500 mil habitantes, a terceira maior aglomeração urbana da Amazônia, com 60% da população do estado, não tem um metro de esgoto. Sua salvação é que dista 8 horas de navio, ou 16 horas de barco, ou 40 minutos de 447, de Belém, a cidade mais importante do Trópico Úmido. 

Para quem chega de Belém por barco, Macapá é uma miragem que vai se materializando na medida em que o sol, posicionado como gigantesca bola de ouro do outro lado do Canal do Norte, na cabeceira da Linha Imaginária do Equador, começa a se levantar, e, de repente, como mulher que emerge do mergulho, respingando água, mostra-se toda nua. À beira-rio, e no início da BR-156, sente-se o tumor latejando; a população avança natureza adentro. 

Macapá é uma cidade ribeirinha emblemática. Seu nome vem do tupi macapaba, lugar de muitas bacabeiras, palmeira nativa da região, de fruto, a bacaba, gerador de suco delicioso, quase tanto quanto açaí, este, de grande significado para os amapaenses, que já foram paraenses, já que o Amapá é um naco da antiga Província do Grão-Pará, e os parauaras são os mais ávidos tomadores de açaí da face da Terra. 

Assaltados pela sede mais desmedida de ambição, os espanhóis, que instalaram no continente ibero-americano uma aristocracia escravocrata e medieval, que os portugueses potencializaram até a loucura, sondaram o setentrião da Amazônia Azul antes de Pedro Álvares Cabral, de modo que em 1544, Carlos V de Espanha sentiu-se à vontade para chamar aquelas paragens de Adelantado de Nueva Andaluzia, ao conceder a província ao navegador espanhol Francisco de Orellana, que, cego pela ambição, vagou pela Amazônia em busca da cidade de ouro, El Dorado, mas, como seus colegas, foi vencido pelo Inferno Verde. 

Em 1738, colonos portugueses instalaram, ali, um destacamento militar, a Praça São Sebastião, atual Veiga Cabral, onde, em 4 de fevereiro de 1758, foi levantado o Pelourinho, um dos símbolos do implacável poder lusitano, na presença do capitão-general do Estado do Grão-Pará, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, fundando-se a Vila de São José de Macapá e selando-se o fim da nação que dominava aquela beirada de rio, o povo tucuju, do tupi tucumã, também palmeira natural da Amazônia, de frutos doces e oleosos, matéria-prima para vinho, licor e mingau. 

Enquanto os tucujus se tornaram símbolo de um tempo antigo, espanhóis e portugueses legaram os tempos heroicos, e persistentes, de colonos e colonizados, o drama que perpassa a Ibero-América, a tragédia da Amazônia. Em 1764, Portugal deu uma demonstração do seu poderio na Amazônia, iniciando a construção de projeto do engenheiro italiano Henrique Antônio Gallúcio, a Fortaleza de São José de Macapá, concluída 18 anos depois, no ano de 1782. 

A construção da Fortaleza de São José de Macapá por meio do trabalho escravo de negros e índios foi o cadinho em que se forjou a etnia macapaense. Os portugueses cruzaram com os africanos e geraram mulatos, e fornicaram com os índios, formando uma população de mamelucos; os africanos fundaram o bairro do Laguinho, misturaram-se com os índios e legaram cafuzos; e mulatos, cafuzos e mamelucos misturaram-se, fechando o círculo, numa diversidade étnica viva nas ruas de Macapá, nas nuanças de peles que vão do alabastro ao ébano, passando pelo bronze e jambo maduro, e todos unidos pelo sotaque caboco, a fusão do português falado em Lisboa, doces palavras tupis, línguas africanas, patoá das Guianas, tudo triturado em corruptela, isso e a seminudez dos habitantes do Trópico Úmido, que, antes de ser sensual é inocente, como o olhar da mulher amazônida, espilantol se espalhando nas papilas gustativas da alma, o embalar de rede no rio da tarde, o choro dos jasmineiros noturnos.

Ao olhar superficial do leigo, que acidentalmente caiu na Amazônia, a Hileia lhe parecerá o Inferno Verde, onde encurtará sua vida, devorado por microrganismos e insetos, ou torrado pelo sol equatorial, ou afogado pela água, não do Mar Doce, mas em estado gasoso, nos 100% da umidade relativa do ar. Assim, o incauto será corrido daquelas paragens, grávido da antiga ideia dos colonos, de que a Amazônia só serve para três fins: construção de hidrelétricas; extração de madeira e mineral; e reserva de caça, pesca e escravos, especialmente para o pugilato do sexo, além da crença de que os rios são esgotos naturais. Esse pensamento assenta-se na crença de que os colonos são deuses e os colonizados, seres inferiores, que existem para servir aos sangues-azuis, razão pela qual Macapá ferve nas trevas.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Foi criado o estupro culposo. E se começaram a pipocar estupros culposos contra a Constituição e a burra, como se comportará o Supremo?

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 4 DE NOVEMBRO DE 2020 – No dia 15 de dezembro de 2018, em Florianópolis/SC,  o empresário de marketing esportivo André de Camargo Aranha, 41 anos, estuprou a blogueira Mariana Ferrer, 21 anos, no luxuoso no Café de La Musique, onde ela trabalhava. Ela o denunciou. Foi coletado esperma dele, nela, e sangue dela, porque era virgem. Embora as imagens das 37 câmeras do estabelecimento tenham sumido, apareceram gravações na escadaria utilizada pelo acusado e pela vítima, dirigindo-se para um camarim privado, onde a estuprou. 

Terminado o serviço, o estuprador e as amigas da vítima, que a acompanhavam no local, abandonaram Mariana e foram jantar com o estuprador. 

O cartão de consumo de Mariana e filmagens feitas com seu telefone mostram que naquele dia ela tomou somente uma dose de gin com água. No entanto ela acha que foi drogada. Segundo ela, sentia-se entorpecida, totalmente vulnerável durante o estupro. Ao recobrar-se, Mariana enviou mensagens às amigas que a acompanhavam suplicando ajuda, mas ninguém a atendeu. 

Indiciado pela Polícia Civil por estupro de vulnerável, André foi absolvido por falta de provas, pelo juiz Rudson Marcos, da Terceira Vara Criminal de Florianópolis, depois de uma audiência na qual Mariana foi humilhada e agredida moralmente. 

O processo sofreu mudança de delegados, de promotores, atendimentos fora do protocolo e uma sentença que deixou até o diabo de queixo caído. O caso corria em segredo de Justiça. Mas acabou vindo à tona. O vídeo da audiência foirevelado pelo site The Intercept Brasil. Nele, o advogado de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, um dos mais caros de Florianópolis, humilha a vítima o tempo todo, mostrando fotos sensuais de quando Mariana era modelo profissional. O advogado definiu as fotos que exibia como “ginecológicas”, comentando, ao exibi-las, que “jamais teria uma filha” do “nível” de Mariana, que, em dado monto, começou a chorar, ao que Cláudio Gastão da Rosa Filho diz: 

– Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso, e essa lábia de crocodilo... Teu showzinho você vai no seu Instagram dar depois. É seu ganha pão a desgraça dos outros, fala a verdade! 

O advogado afirmou ainda que Mariana arquitetou o estupro para ganhar seguidores nas redes sociais. 

Quanto a Aranha, mentiu durante o processo. Em maio de 2019, afirmou que não teve contato com Mariana Ferrer, mas em 2020 disse que fez sexo oral na vítima. Disse ainda que a promotora de eventos pediu para ir ao banheiro (na companhia dele?), seguindo com ela para o local onde ele teria feito sexo oral nela, e, por decisão dele, teriam deixado o local juntos. Finalmente acusou a vítima de incriminá-lo por motivações financeiras. Já seu advogado sustentou simplesmente que ele não estuprou Mariana, embora o inquérito policial conclua que Aranha cometeu estupro de vulnerável, que é quando a vítima não tem condições de oferecer resistência. 

O primeiro promotor do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC), responsável pelo caso, foi Alexandre Piazza, que, em julho de 2019, denunciou André de Camargo Aranha por estupro de vulnerável e pediu sua prisão preventiva, aceito pela Justiça, mas a defesa derrubou a medida com uma liminar. Piazza foi afastado do caso e quem assumiu foi Thiago Carriço de Oliveira, que trouxe a tese de “estupro sem intenção”, baseado nos exames toxicológicos, que não mostram álcool ou drogas no sangue de Mariana Ferrer. 

Em nota, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho disse o seguinte: 

“Não podemos falar muito em respeito ao sigilo do processo, mas gostaria de esclarecer alguns pontos importantes sobre a matéria publicada pelo The Intercept, que gerou uma onda massiva de comentários equivocados sobre o caso. 

“O magistrado considerou André de Camargo Aranha inocente da acusação de estupro, acatando a alegação final do Ministério Público e a tese da defesa para que fosse julgada improcedente a denúncia contra André Aranha. Ou seja, os fatos foram completamente esclarecidos após investigação policial e nos autos processuais, os quais constataram que houve uma relação consensual entre duas pessoas e foi atestado que ambos estavam com a sua capacidade cognitiva em perfeito estado, conforme atestam os laudos e confirmam os peritos. É importante ressaltar que o termo utilizado na matéria “estupro culposo” não é uma terminologia jurídica existente, e em nenhum momento foi utilizado pelo magistrado. 

“O caso foi tratado com a devida legitimidade pelo Ministério Público e prestamos esse esclarecimento visando o combate à desinformação que informações mal interpretadas, descontextualizadas e equivocadas, podem gerar”. 

Íntegra da nota divulgada pelo Ministério Público de Santa Catarina: 

“MPSC reafirma que réu foi absolvido por falta de provas por estupro de vulnerável 

“Não é verdadeira a informação de que o promotor de Justiça manifestou-se pela absolvição de réu por ter cometido estupro culposo, tipo penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Salienta-se, ainda, que o promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo. 

“A 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado. 

“Cabe ao Ministério Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais, requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso, a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime. 

“Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de estupro culposo, até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável. 

“O Ministério Público também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes. 

“Salienta-se, ainda, que o promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo. 

“O MPSC lamenta a difusão de informações equivocadas, com erros jurídicos graves, que induzem a sociedade a acreditar que em algum momento fosse possível defender a inocência de um réu com base num tipo penal inexistente”. 

Em suas alegações finais, a acusação se manifestou pela absolvição do acusado, “por falta de provas”. Quanto ao juiz: “Portanto, como as provas acerca da autoria delitiva são conflitantes em si, não há como impor ao acusado a responsabilidade penal, pois, repetindo um antigo dito liberal, “melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente”. A absolvição, portanto, é a decisão mais acertada no caso em análise, em respeito ao princípio na dúvida, em favor do réu (in dubio pro reo), com base no art. 386, VII, do Código de Processo Penal”. 

Vamos supor que Mariana tenha planejado tudo. Mas será que uma jovem entregaria seu hímen, símbolo talvez mais profundo do romantismo de uma mulher, a um homem? E por que para Aranha? Será ele tão charmoso para atrair uma jovem a um plano tão maquiavélico, que, no mínimo, exigiria experiência e sangue frio? 

Quanto a Aranha, não pesou as consequências? Ou a certeza de impunidade não entrou nesse jogo diabólico? 

Qual dos dois tem razão? 

Aranha foi absolvido e está batendo perna por aí. Isso estimulará a crimes culposos, inconscientes, contra a Constituição e a burra? O Supremo absolverá estupradores culposos da Constituição, ladrões da burra, barões do tráfico, traidores da pátria?

Tenho a impressão de que esse caso não termina aqui.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Coluna Medicina Vibracional é publicada semanalmente em um dos mais importantes portais de Belém do Pará: Ver-O-Fato

Ray Cunha

Luzes do Medo, de Carlos Mendes
BRASÍLIA, 22 DE OUTUBRO DE 2020 – Fundado em julho de 2015, o portal jornalístico Ver-O-Fato, sediado em Belém do Pará, já é a quinta revista eletrônica mais visitada no estado, acumulando 4,9 milhões de visualizações desde seu início. Seu criador e diretor geral, jornalista e escritor Carlos Mendes, é um dos mais agudos, destemidos e influentes repórteres da Amazônia. Com mais de 40 anos de jornalismo, Mendes trabalhou nos maiores veículos de comunicação paraenses: jornais Folha do Norte, O Liberal, Diário do Pará e O Estado do Pará, TV RBA e Rádio Clube do Pará, e é, há mais de 20 anos, correspondente do O Estado de São Paulo e também do Correio de Carajás. É autor do livro Luzes do Medo, sobre a Operação Prato.

Hoje, o Ver-O-Fato é leitura diária, obrigatória, de todas as esferas de poder no estado, e de variado público, que encontra no portal matérias, artigos e colunas abordando os mais diversos temas, que vão desde a cobertura de acontecimentos do dia a dia da região metropolitana de Belém até análises, denúncias e fatos importantes do cenário político paraense. 

Como ferramenta para fiscalização da atividade política e aplicação dos recursos públicos e de mobilização social, o Ver-O-Fato é visto, lido e ouvido por pessoas das mais diversas opiniões e pensamentos políticos, seja de esquerda ou de direita, mas com todos reconhecendo no Ver-O-Fato credibilidade nas suas publicações. 

Toda quinta-feira, de 20 às 21 horas, acontece uma live no portal, retransmitida nas suas redes sociais: o programa Linha de Tiro, no qual é entrevistada uma personalidade do mundo político, empresarial ou acadêmico, sobre os mais variados temas e situações em destaque na semana.

Os anunciantes, de produtos ou serviços, sabem que são vistos, lidos e ouvidos por um publico crítico, formador de opinião, isso, juntamente com a credibilidade do jornalismo de primeira categoria realizado pelo Ver-O-Fato.

Estreei no portal em 16 de outubro, com a crônica Belém precisa de um prefeito, seguindo-se os artigos Amazônia: ocoração das trevas e Os homens quenão amam as mulheres, além da coluna semanal Medicina Vibracional, até agora com os seguintes artigos: Acupuntura, fitoterapia e massoterapia, o que é isso? e O caso do paciente sem o intestino grosso curado com apenas uma sessãode acupuntura.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Amazônia: o coração das trevas

RAY CUNHA

O coração das trevas, obra-prima de Joseph Conrad, é um pequeno romance, de pouco mais de 150 páginas, “o mais intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu”, disse o labiríntico Jorge Luís Borges. A ação se passa no Congo, África, no século 19. Francis Ford Coppola o transpôs para os revolucionários meados do século 20, para a guerra do Vietnã, no clássico dos clássicos dos filmes de guerra, Apocaypse Now. O Coração das Trevas cai, como luva, à Amazônia. Como golpe de navalha seccionando tecido humano, obsceno como ataque de hienas, a face obscura da Amazônia, o Inferno Verde, o latejar da escuridão, espasmos da alma amazônida, a loucura e o malogro da civilização colonialista. 

De repente, o mundo se volta, raivoso, para a Amazônia, como lobo em pele de cordeiro, pele surrada, a lã bastante suja, repetindo que quer o bem da Amazônia, mas, que, na verdade, quer seus bens. A Amazônia, o mais belo realismo fantástico da Terra, a mais rica província mineral do mundo, a maior diversidade biológica do planeta, é saqueada desde o século XVI. Potências europeias, americanos, o Foro de São Paulo, todos têm repasto garantido na Amazônia. É assim que o subcontinente vem sendo assaltado, estuprado, currado, desde sempre. 

Mas, verdade seja dita, o incêndio mais infame que ocorre na floresta dissemina-se na mente dos próprios amazônidas: a mentalidade de colonizado, o curvar-se a políticos e empresários corruptos. Essa é a corrupção mais crônica na colônia, causa e perpetuação de uma das nódoas mais negras da humanidade: a escravidão sexual de crianças. Nos dias de hoje, leva-se, de lá, a floresta, energia hidrelétrica, minérios, pedras preciosas, animais, mulheres e crianças. A Amazônia é um dos locais onde mais se escraviza hoje no mundo. A Interpol francesa calcula que a rede internacional de tráfico de pessoas movimenta cerca de US$ 9 bilhões por ano. 

Um caso que aconteceu em novembro de 2007, em Abaetetuba, cidade no quintal de Belém, constitui-se uma metáfora da Amazônia. Delegados da Polícia Civil do Pará, com a conivência de gente do Judiciário, atiraram uma menina a dezenas de criminosos na cadeia da cidade. Essa criança foi currada, dia após dia, durante um mês. Assassinos, estupradores, espancadores de mulheres e crianças, ladrões, arrombadores, batedores de bolsa de velhinhas, psicopatas, drogados, caíram em cima da garotinha como hienas, e os policiais, ali perto, ouvindo e vendo tudo. 

Os berros de terror eram ouvidos pelos delegados e pelos moradores da cidade, já que a delegacia era um prédio velho praticamente aberto para a rua, e ninguém moveu uma palha pela menina. “Minha filha tinha cabelos lindos e encaracolados que iam até o meio das costas” – disse a mãe da jovem. “Cortaram o cabelo dela com um terçado (facão) para disfarçar que se tratava de uma menina. Cortaram é modo de dizer, escalpelaram a minha filha.” O tempo todo, L ficou com as roupas que usava ao ser presa, uma saia curta e blusinha, cobrindo seios adolescentes. Ela media 1,40 metro. “Aqui, no Pará, colocar homem e mulher na mesma cela é mais comum do que se imagina” – disse, na época, frei Flávio Giovenale, bispo de Abaetetuba. Há caso de atirarem uma mulher a 70 presos. 

“Era um show isso daqui. Todo mundo sabia que a menina estava lá no meio daqueles homens todos, mas ninguém falava nada” – disse uma mulher na delegacia a jornalistas. “Antes de comer, os presos se serviam dela” – afirmou outra mulher, explicando que a menina só comia se não dificultasse a curra. “Ela gritava e pedia comida para quem passava, chamava a atenção para si, e, como ela era conhecida por aqui, não dava para ignorar” – afirmou outra mulher, explicando que era possível ver e ouvir da rua muito do que se passava na delegacia. 

Seis delegados estiveram na delegacia durante o suplício da jovem. A delegada plantonista responsável pelo flagrante foi Flávia Verônica Monteiro e o delegado titular de Polícia de Abaetetuba, Celso Viana. “Embora ela estivesse misturada com os homens, o setor onde ela estava é aberto e permite uma ampla visão de qualquer policial” – declarou o delegado Celso Viana. Flávia Verônica Pereira e três policiais tinham conhecimento dos estupros. Nada fizeram. E policiais ameaçaram a menina de morte se não participasse de fraude em cartório para lhe alterar a idade na certidão de nascimento. 

O delegado Celso Viana alegou em depoimento que a adolescente disse ser maior de idade e afirmou que a responsabilidade da prisão da menor seria do sistema penal, e a delegada Flávia Verônica Monteiro afirmou que foi enganada ao ver o documento falso da jovem, indicando que ela tinha 20 anos. Flávia disse ainda que não transferiu a adolescente da delegacia para outra instituição porque esse procedimento só poderia ser feito com ordem judicial. 

Em 27 de novembro de 2007, durante audiência pública na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, o então delegado-geral do estado do Pará, Raimundo Benassuly Maués Júnior, insinuou que a jovem é que foi responsável pelo episódio e que devia ter “alguma debilidade mental” por não ter dito que era menor de idade. “Não sou médico legista nem tenho formação na área, mas essa moça tem certamente algum problema, alguma debilidade mental. Ela, em nenhum momento, declarou sua menoridade penal” – afirmou o gênio. 

No dia 3 de outubro de 2013, leio na mídia que a juíza Clarice Maria de Andrade Rocha, que atuava em Abaetetuba quando a adolescente esteve presa, fora promovida, um dia antes, pelo Tribunal de Justiça do Pará, a titular da Vara de Crimes contra Crianças e Adolescentes de Belém. Segundo portaria da desembargadora Luzia Nadja Guimarães Nascimento, o critério para a promoção de Clarice foi por merecimento. 

Clarice Maria de Andrade foi considerada omissa pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) durante o período em que a jovem paraense foi supliciada, e recebeu a punição de aposentadoria compulsória, em 2010. Mas a Associação dos Magistrados do Pará (Amepa) recorreu da decisão e a aposentadoria foi anulada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que entendeu que a punição foi exagerada, já que a magistrada não teria como saber da situação da carceragem da delegacia de Abaetetuba. 

O fato é que quando o caso estourou na mídia, em novembro de 2007, a então governadora do Pará, a petista Ana Júlia Carepa, tratou-o com habitual alienação, e tudo mergulhou no esquecimento. Aliás, crianças são emblemáticas na tragédia da Amazônia. 

Em 1979, fiz, para o antigo mensário Varadouro, em Rio Branco, extremo oeste da Hileia, reportagem sobre o tráfico de meninas pela BR-364, espinha dorsal do Acre, ligando o estado ao resto do país. Frequentei boates e bares, pontos de encontro de caminhoneiros, entrevistei prostitutas e rodoviários, e pesquisei em registros policiais, concluindo que parte dessas meninas que sumiam em Rio Branco era atirada em prostíbulos de Porto Velho, Manaus e Goiânia. Outras, simplesmente fugiam da miséria. Quarenta anos depois a situação piorou, e muito. A tragédia, que afeta toda a Amazônia, foi ampliado em escala assustadora.

Foram identificadas 76 rotas de tráfico de mulheres, crianças e adolescentes na Amazônia, segundo a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins Sexuais, coordenada pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Exploração Sexual, do Congresso Nacional. 

Nesse comércio negro, assim como ocorre com políticos corruptos, a imunidade, digo, impunidade, é garantida. O holandês Kunathi, um dos maiores traficantes de pessoas, em atividade na Amazônia, já foi preso em flagrante no Pará, mas a Justiça o soltou para responder ao processo em liberdade. Não deu outra, Kunathi fugiu para o Suriname, antiga Guiana Holandesa, onde é dono de boate na qual só trabalham brasileiras, muitas delas do Pará e do Amapá. 

Em 2006, adolescentes de Altamira, no Pará, que caíram nas garras de uma quadrilha de exploração sexual e a denunciaram, foram ameaçadas de morte se falassem na Justiça. A polícia paraense, despreparada, não pôde dar segurança às vítimas e só conseguiu provas contra três dos 15 acusados. A ação da quadrilha envolvia inclusive um político e empresários. “É uma rede complexa de exploração sexual, com várias vítimas e vários adultos envolvidos; é preciso que haja vontade política para que se chegue aos outros envolvidos” – disse, à época, Ana Lins, advogada da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH).

Em março daquele ano, a polícia de Altamira localizou várias adolescentes, algumas dadas como desaparecidas por suas famílias, em uma chácara, onde eram embebedadas e servidas em banquetes sexuais fotografados. As fotos eram divulgadas na internet. As orgias ocorriam também em motéis da cidade e em imóveis de um dos acusados, além de chácaras e balneários no município, onde as bacanais duravam dias. 

Ameaçadas de morte, vítimas, suas famílias e testemunhas, desdisseram nos depoimentos à Justiça as declarações prestadas no inquérito policial. Uma das vítimas contou que foi ameaçada na porta da escola onde estuda, e sua família recebeu bilhetes com ameaças de morte. A jornalista Iolanda Lopes, que denunciou a quadrilha em várias reportagens, disse que recebeu três telefonemas ameaçadores. 

As adolescentes foram, ainda, humilhadas na Câmara de Altamira, onde tiveram seus nomes divulgados durante sessão plenária. “A vergonha, a humilhação, o sentimento de desesperança e a depressão são alguns sintomas encontrados em várias das vítimas desse tipo de crime” – comentou a advogada Ana Lins. “A revitimização é o calvário de ter que reviver os momentos do crime ao ter que relatá-los várias vezes. Esse calvário vai desde não ser atendida dignamente na delegacia, às vezes esperando horas e horas, até conseguir registrar a ocorrência policial, a realização de exames periciais sem a devida humanização do servidor responsável, até ver os algozes soltos livremente e voltando a delinquir em alguns casos.” 

Em janeiro de 2005, o Jornal Nacional, da TV Globo, publicou uma série de reportagens intitulada Povos das Águas, na qual focalizou o trânsito de balsas em Breves, na ilha do Marajó, Pará. Nessas balsas, na cabine de carros, crianças marajoaras serviam de repasto sexual durante o cruzamento do rio. De um modo geral, os municípios marajoaras são miseráveis, apesar da natureza pujante da maior ilha flúvio-marítima do mundo. O Marajó, uma das mais belas regiões do planeta, é do tamanho da Suíça. A ilha é banhada pelos rios Amazonas e Pará e pelo Oceano Atlântico. 

O comércio de crianças amapaenses e paraenses é intenso na Guiana Francesa e no Suriname, ao norte do Amapá, principalmente em cidades como Kourou, onde fica a base francesa de lançamento de satélites; o balneário de Montjoly e Saint Laurent. Meninas e meninos amapaenses e paraenses são bastante apreciados para bacanais, corrompidos por promessas de casamento com franceses ou pela possibilidade de ir para a Europa, onde imaginam que possam ganhar até 100 euros, cerca de R$ 500, por programa, escapando, assim, da miséria. 

Dos 200 mil habitantes da Guiana Francesa, 50 mil são brasileiros ilegais, amapaenses em sua maioria, que fogem do Amapá, estado assolado pela miséria social, roubalheira de colarinho branco, nepotismo, corrupção endêmica e imigração insuportável. A capital, Macapá, é reflexo do desleixo administrativo. Cidade sem esgoto, cheia de ruas esburacadas, com fornecimento precário de energia elétrica e água encanada, apesar de se situar na margem do maior rio do mundo, o Amazonas, a cada dia fica mais inchada e violenta. 

Próximo de Caiena, a capital da colônia francesa na Amazônia, localiza-se a cidade amapaense de Oiapoque. Antes de as meninas seguirem para as três Guianas, passam, geralmente, por um estágio em Oiapoque. Boates locais são internatos de meninas e meninos para o abate. 

Assim, guianenses que atravessam o rio Oiapoque atraídos por sexo são recebidos na cidade de braços abertos – inúmeros bares nos quais o lenocínio prospera, de manhã à noite, açougues onde é possível comprar crianças de, em média, 13 anos. No Amapá, cidades como Laranjal do Jari, Tartarugalzinho, Calçoene e Santana, esta, na zona metropolitana de Macapá, são, como Oiapoque, vitrines de carne infantil. O jornal O Liberal, de Belém, o mais influente da Amazônia, contém, no seu banco de dados, várias reportagens que confirmam o que eu estou dizendo, com nomes, lugares e datas. 

SEREIAS – Madrugada de 16 de setembro de 2004, marina da Ponta Negra, Manaus, Amazonas. A bordo do iate Amazonian, de 25 metros de comprimento, 15 políticos e empresários de Brasília e de São Paulo aguardam um carregamento para zarpar rio Negro acima, aparentemente para uma pescaria em Barcelos, a 450 quilômetros da capital amazonense, em passeio organizado pelo dentista paulista Flávio Talmelli. Era o terceiro ano que o alegre grupo de políticos e empresários candango-paulistas se reunia. 

Finalmente o carregamento chega. São sereias servidas antes mesmo da pescaria: 17 meninas, a maioria delas menor, aliciadas em casas noturnas de Manaus. O programa de dois dias e duas noites renderia R$ 400 a cada uma, fora gorjetas. As garotas foram conduzidas ao iate pela cafetina Dilcilane de Albuquerque Amorim, conhecida como Dil, então com 33 anos, e que ganharia R$ 100 por garota. 

Domingo 19. As meninas se dividiram em dois grupos para o retorno a Manaus. O Amazonian, com os políticos e empresários, seguiu rio Negro acima, com destino a um hotel na selva. Doze meninas retornaram a Manaus. No fim do dia, as cinco meninas restantes retornaram também, no barco Princesa Laura. O barco naufragou naquele mesmo domingo, entre Manaus e Barcelos, com 100 passageiros. Morreram 13 pessoas, entre as quais as cinco garotas que participaram da orgia: Amanda Ferreira Silva, 20 anos; Marlene Cristina dos Santos Reis, 19; Suzie Nogueira Araújo, 18; Taiane Barros, 17; Hingridy Florêncio Viana, 16. 

Dois dias antes do acidente, alguns pais queixaram-se à polícia sobre o desaparecimento de suas filhas. Agentes da Delegacia Especializada de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente de Manaus (Deapca) descobriram que as meninas mortas haviam participado de uma bacanal e eram as mesmas que estavam sendo procuradas pelos pais. Depois, localizaram algumas meninas que retornaram a Manaus, do Amazonian. Descobriu-se, então, que três homens que estavam no Amazonian deixaram a embarcação em Barcelos e, dia 23 de setembro, retornaram a Manaus, em avião da Apuí Táxi Aéreo. 

Foi aí que identificaram o então presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal, deputado distrital Benício Tavares da Cunha Melo, do PMDB, que adotou o nome Benício Mello (prenome e último sobrenome); Randal Mendes (Sérgio Randal), cunhado de Benício Tavares e então chefe de gabinete da presidência da Câmara Legislativa do DF; e o advogado brasiliense Marco Antônio Attié. 

Uma das menores ouvidas pela polícia disse que Benício Tavares manteve relações sexuais com pelo menos duas menores, uma das quais Taiane Barros, 17 anos, mãe de um bebê de sete meses, e que morreu afogada no Princesa Laura. Outra garota afirmou, em depoimento à polícia, que manteve relações sexuais com Benício, que teria pago R$ 500 a ela. Uma menor disse que Benício lhe ofereceu R$ 500 para manterem relações sexuais, mas ela recusou. Seis das moças que estiveram a bordo do Amazonian garantem que Benício chegou a pagar valores entre R$ 200 e R$ 1 mil para manterem relações sexuais com ele, inclusive com as menores de idade. 

Das 17 meninas contratadas para a bacanal seis afirmaram, em depoimento à delegada Maria das Graças Silva, titular da Delegacia Especializada de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente, que Benício Tavares esteve no iate nos dias 17, 18 e 19 de setembro, e que manteve relações sexuais com várias garotas, entre as quais pelo menos duas menores. A delegada garante que coletou elementos suficientes para provar a participação de Benício Tavares em turismo sexual. Maria das Graças Silva mostrou, dia 27 de setembro, fotografias de Benício Tavares a três meninas que participaram da orgia. Elas identificaram imediatamente o parlamentar, paraplégico. 

Três meninas ouvidas pela polícia garantem que no iate Amazonian havia bebida alcoólica e drogas, e que foram realizados desfiles de garotas nuas e sorteio de brindes aos participantes. Em depoimento à polícia, a cafetina Dil declarou que a bacanal foi contratada pelo dentista paulista Flávio Talmelli. “Ele disse que o passeio seria muito divertido e que todas as despesas, desde hospedagem a alimentação, seriam pagas por seus amigos. Somente convidei algumas amigas” – defendeu-se Dil. As garotas disseram à polícia que foram enganadas por Dil. O combinado é que receberiam R$ 400, mais gorjetas, mas, a bordo, receberam somente R$ 200.

Em nota oficial, divulgada no dia 27 de setembro de 2004, Benício Tavares confirmou a viagem a Manaus, de 16 a 22 de setembro, para pescar no rio Negro, hobby até então insuspeito. Confirmou também o voo Barcelos-Manaus. Negou relacionamentos sexuais com garotas menores de idade. Para fazer a viagem turística, Benício se licenciou da presidência da Câmara por 10 dias, embora a casa estivesse votando uma pilha de matérias e sua presença fosse importante. Foi confirmada também a presença, no iate, do chefe de gabinete da presidência da Câmara, Randal Mendes, cunhado de Benício Tavares, e do advogado brasiliense Marco Antônio Attié. 

Em 2004, em Brasília, o plenário da Câmara Legislativa do Distrito Federal fechou os olhos e arquivou processo contra o então deputado Benício Tavares (PMDB), que respondia na Justiça por turismo sexual no estado do Amazonas. Benício foi liberado por 14 votos favoráveis e 10 abstenções. Em 2007, o então governador de Brasília, José Roberto Arruda, deu a Benício Tavares a Administração Regional de Ceilândia, o maior colégio eleitoral da cidade-estado. O povo se revoltou, pois, além da acusação de corruptor de menor, Benício Tavares era acusado de desvio de dinheiro. Arruda teve de tirá-lo do cargo. Em 2009, o Conselho Especial do Tribunal de Justiça do DF (TJDF) instaurou processo penal contra Benício, em ação movida pelo Ministério Público, e o absolveu. Benício Tavares foi reeleito deputado distrital. 

Em 2010, o governador José Roberto Arruda foi preso, acusado de comandar um esquema de corrupção. Em novembro de 2011, Benício Tavares perdeu o mandato de distrital no exercício da sexta legislatura, por decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que considerou, por unanimidade, que o deputado coagiu eleitores e praticou abuso de poder econômico.

Como se vê, não se vai à Amazônia apenas por energia hidrelétrica, minerais e madeira.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Trecho do romance JAMBU, thriller de arrepiar os cabelos, com ação na cidade mais emblemática da Amazônia: Macapá!


Era o último dia do Festival de Gastronomia do Pará e Amapá, 31 de julho. Danielle acordara, como sempre, às 5 horas, fizera suas orações, e, intuitivamente, descera e saíra do prédio pela Catedral. Viu o homem de panamá e Patrícia caminhando, apressados. Já haviam passado pela guarita de acesso à marina e seguiam para a lancha Jesus de Nazaré, de 5 metros de comprimento, ancorada no trapiche. Eram 7h05 e a manhã já estava bastante quente. Danielle porejava na testa. Apressou o passo, mas a lancha começou a se mover. Danielle correu para onde a lancha da segurança estava ancorada e zarpou atrás do iate.

A Jesus de Nazaré tomou o rumo sul do rio Amazonas. Pouco depois Patrícia avistou a Fortaleza de São José de Macapá. Parecia pequena, ao longe, e fugaz. Sumiu. Um arrepio perpassou o corpo da deusa grávida. O iate fundeou na ilha de Santana, defronte a uma casa de alvenaria, bastante grande, incrustada entre árvores, arbustos, trepadeiras e cipós. Saboia e Patrícia desembarcaram no trapiche e desapareceram entre as árvores. Atravessaram um salão ricamente adornado por tapetes persas e depois um corredor, até desembocarem em um pátio, onde um homem os esperava junto ao que parecia uma piscina.

– Chegou a gatinha – Saboia anunciou.

Jules Adolphe Lunier mirou a bela moça.

No momento seguinte, Danielle surgiu, segurando com as duas mãos uma pistola de 18 tiros, capaz de matar búfalo.

– Parados! Se alguém se mexer mando bala!

Saboia tentou sacar uma pistola que estava no cós traseiro da sua calça e levou um balaço que fez um buraco no seu pescoço. Simultaneamente, o francês sacara um revólver e atirou em Danielle, mas o chumbo atingiu Patrícia na cabeça. Danielle atirou em Jules Adolphe Lunier e o atingiu no ombro, o homem andou para trás e caiu na piscina, que ficou agitada como o inferno; estava cheia de jacaré-açu. Ouviram-se gritos lancinantes, saídos de dentro do grande silêncio da Amazônia, silêncio emanado pelas brenhas das trevas, pesado, negro e medonho. O berro arrepiou os cabelos de Danielle; era uma mistura de terror de porco arrastado para o abate e o gemido, pegajoso, da casa, como se estivesse pagando pelos horrores que se passavam ali, horrores antigos, desde que os ibéricos desembarcaram nas entranhas do coração das trevas, se instalaram e se perpetuaram, agora como vampiros travestidos de políticos, funcionários públicos graduados e megaempresários, em posição privilegiada para melhor sugar a alma de crianças, mulheres, homens, animais e árvores, como carapanãs que atacam bebês miseráveis, que não contam com mosquiteiro, na calada da noite. Aquilo durou uma eternidade, embora essas sensações tenham se manifestado em menos de um segundo, enquanto Danielle socorria Patrícia. A bala se alojara na cabeça da parturiente, mas não a matou de imediato. Ela estava consciente quando começou a dar sinais de parto. Danielle preparou-a como pode, ali, no chão, enquanto os jacarés comiam o pai da criança ao lado. O bebê nasceu. Pegou-o e pôs o menino, ensanguentado, no colo de Patrícia.

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sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Bolsonaro e Mourão precisam ir logo ao Amapá para visitarem o Porto de Santana e a BR-156


RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 28 DE AGOSTO DE 2020 – Em um ano e meio o Brasil já é outro. O presidente Bolsonaro pegou o país descarrilado em uma ladeira íngreme rumo a um mar de chorume e em 20 meses já reativou o parque industrial do Sudeste, levou água para o Nordeste, botou para correr as quadrilhas que vinham pilhando a Amazônia, está recuperando as rodovias brasileiras e logo começará dois megaprojetos: um ferroviário e outro portuário. É nesse contexto que tanto Bolsonaro quanto o vice-presidente, general Mourão, devem se obrigar a ler não somente este artigo, como meu romance ensaístico JAMBU, e, por consequência, visitarem o Porto de Santana e a BR-156. Eis por que. 

O mais estratégico porto brasileiro fica na Zona Metropolitana de Macapá/AP: o Porto de Santana/AP. Ele foi construído para embarcar o melhor manganês do mundo, o de Serra do Navio/AP, que foi estocado nos Estados Unidos como reserva estratégica, até exaurir a mina no Amapá. Depois, porto foi municipalizado. Sua profundidade é adequada a qualquer cargueiro transoceânico e é o porto brasileiro mais próximo, simultaneamente, dos mercados dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia via Canal do Panamá. Pode receber todas as commodities da Amazônia por hidrovias; do Centro-Oeste, por estradas e hidrovias; e do Sudeste e do Sul, por rodovias. Enquanto o PT preferiu construir um porto em Havana, Cuba, com dinheiro pilhado do Bando Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), atualmente o Porto de Santana é subutilizado. 

Mais: as commodities destinadas à América Central podem ser armazenadas em Santana/AP e de lá seguirem pela BR-156, que liga o porto à Caiena, a capital da colônia que os franceses chamam de departamento ultramarino, e de lá para toda a América Central. Mas o governo federal vem enviando dinheiro para a construção da BR-156 há 80 anos, e ela nunca foi concluída, o que se configura como espantoso recorde mundial dos governadores locais, de irresponsabilidade, preguiça e desprezo para com os amapaenses. No inverno amazônico, a parte inacabada da rodovia se transforma em um atoleiro; no verão, em um inferno de poeira. 

Mais: a rodovia termina na cidade de Oiapoque, no norte do Amapá, separado da Guiana Francesa pelo rio Oiapoque. Em 2008, começaram a construir uma ponte binacional, que ficou pronta em 2011, mas não foi inaugurada porque a BR-156 não estava pronta; tornou-se um enfeite até 20 de março de 2017, quando finalmente foi inaugurada, pois a BR-156, mesmo inacabada, constitui-se na única via de exportação utilizada por caminhoneiros. Também muitos turistas de automóvel utilizam a rodovia, mesmo com os perigos que ela apresenta, pois, para muitos brasileiros, principalmente da Amazônia, Caiena é a porta da Europa.

Também a costa do Amapá é a mais rica em todo tipo de criaturas do mar, a mais invadida por piratas internacionais e a mais mal guardada pela Marinha de Guerra. Mas isso é outro artigo.

No romance ensaístico JAMBU a Questão Amazônica é esmiuçada, e o Amapá, que é onde se passa a trama do livro, é examinado com microscópio. Leia dois trechos de JAMBU:

“Mas a Amazônia já está ocupada. Por exemplo: o Japão não importa mais apenas bauxita, mas alumina, produzida graças à energia de Tucuruí agregada ao produto. Uma das matérias da Trópico Úmido era sobre a New Steel, mineradora americana que levou de Serra do Navio, no Amapá, 40 milhões de toneladas do manganês mais puro do mundo, deixando um buraco gigantesco.

“Em 1943, o interventor do Território Federal do Amapá, capitão Janary Gentil Nunes, já sabia que na região dos rios Amapari e Araguari havia manganês, que entra na composição de várias ligas de aço, na fabricação de fertilizantes, no clareamento de vidros, no fabrico de pilhas secas e na produção de tintas e vernizes. Janary fora avisado pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Em 1945, ofereceu um prêmio em dinheiro para quem identificasse exatamente onde o minério estava. Um comerciante ribeirinho, chamado Mário Cruz, levou pessoalmente ao interventor algumas pedras que usara como lastro para seu barco, escuras e pesadas. O material foi analisado no DNPM, no Rio de Janeiro, pelo engenheiro Glycon de Paiva, que bateu o martelo: tratava-se de manganês de alto teor. Glycon foi então à região analisar os depósitos. Ele viu uma profusão de morros cobertos de floresta; um deles era um gigantesco bloco de manganês que lembrava a proa de uma embarcação. Então Janary convenceu o presidente Gaspar Dutra a criar uma reserva nacional englobando a mina de manganês e conferindo ao Território Federal do Amapá a competência para prospectá-la e explorá-la por meio de concessão. Três empresas responderam ao convite para explorar a mina: a subsidiária brasileira da United States Steel, Companhia Meridional de Mineração; a Hanna Coal & Ore Corporation; e a Sociedade Brasileira de Indústria e Comércio de Minérios de Ferro e Manganês (Icomi), fundada em 1942, com sede em Belo Horizonte e atuação em Minas Gerais, que venceu a concorrência. Só que depois de ganhar a concorrência, a Icomi se associou à americana Bethlehem Steel, maior consumidora mundial de manganês, formando a holding Caemi Mineração, criada por Augusto Trajano de Azevedo Antunes, paulistano nascido em 1906 e falecido na Cidade Maravilhosa, em 1996, formado em Engenharia Civil pela Escola Politécnica de São Paulo, em 1930. Com a guerra fria, a União Soviética deixou de suprir de manganês o mercado norte-americano, aumentando, assim, a cotação internacional do produto. Augusto Nunes, que já explorava o minério de ferro no pico do Itabirito, em Minas Gerais, criou então a Icomi, em 1947, e, em 1948, começou as atividades de mineração no Amapá. O contrato de exploração, assinado em 1947, previa que a Icomi teria de investir no Amapá pelo menos 20% de seu lucro líquido; a exploração de um perímetro máximo de 2.500 hectares, o equivalente a 0,17% do território amapaense, e o pagamento de 4% a 5% da receita totais em royalties ao governo do Amapá. Previa, ainda, uma área adicional de 2.300 hectares para a construção de instalações industriais, complexo ferroviário, e duas vilas, que dariam origem às cidades de Santana e Serra do Navio, as quais começaram a ser construídas em janeiro de 1957 e ficaram prontas em 1959. A Estrada de Ferro Amapá, inaugurada em 1957, tem 194 quilômetros, ligando Serra do Navio ao Porto de Santana. Em 1980, com o manganês de Serra do Navio, comprado a preço de banana, estocado nos Estados Unidos, a Bethlehem vendeu sua participação para a Caemi, que encerrou a exploração de manganês em 1997, embora, em 1953, no governo de Getúlio Vargas, a concessão para explorar o minério previa o prazo de 50 anos. Desde 2003, a Caemi  pertence à Companhia Vale do Rio Doce. Em março de 2006, a MMX Mineração e Metálicos, do empresário Eike Batista, assumiu o controle da Estrada de Ferro Amapá, por vinte anos. Em 2008, a MMX foi vendida para a Anglo American. Em 2013, o controle foi repassado para a mineradora inglesa Zamin, e, em 2015, para a Secretaria de Estado de Transportes, quando a linha ferroviária foi também paralisada. Hoje, o governo do Amapá acusa a Icomi de contaminar com arsênio o Porto de Santana e a Vila Elesbão. O morro que lembrava a proa de um navio desapareceu e se transformou numa cratera, até acabar o manganês de boa qualidade. “Não se previa que a exploração seria tão intensiva a ponto de esgotar totalmente a reserva” – comentou Aziz Ab’Sáber, titular do Departamento de Geografia e professor emérito do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP). As escavações eram feitas 24 horas por dia. Algumas crateras formaram lagos, alimentados pelo lençol freático. O Morro do Navio foi transformado no Lago Azul. O fato é que a Icomi cumpriu o contrato, mas o poder público deixou que Santana e Serra do Navio sucumbissem. Os governos que passaram pelo Amapá, durante o reinado da Icomi, nunca aplicaram os royalties com sustentabilidade. Restou também o porto mais estratégico da Amazônia, Santana, de onde se pode exportar matéria-prima e produtos manufaturados e industrializados para todo o planeta. A rodovia Perimetral Norte, que deveria ligar Macapá a São Gabriel da Cachoeira, é hoje a única alternativa de transporte para Serra do Navio. A Anglo American comprou uma área da Icomi para a pesquisa de ouro no município vizinho de Serra do Navio, Pedra Branca do Mapari, e descobriu uma mina gigantesca”.

E: “Há duas rodovias federais no Amapá: a BR-210 e a BR-156. A BR-210 é, na verdade, um embrião; conhecida como Perimetral Norte, tem pouco mais que 471 quilômetros. Começa em Macapá e vai até Serra do Navio, terminando na divisa com o Pará. Mas a rodovia que realmente tem importância para o estado é a BR-156, que começou a ser pensada em 1932. Até 1945, somente nove quilômetros foram construídos. Ela começa no município de Laranjal do Jari, vai até a capital do estado, Macapá, e termina no município de Oiapoque, no extremo norte. São 595 quilômetros entre Macapá e Oiapoque, e 369 quilômetros entre Macapá e Laranjal do Jari, totalizando 964 quilômetros. Jamais foi concluída, mas é trafegada, desde sempre. Nos tempos heroicos, durante os seis meses de estiagem, transformava-se em um poeiral sufocante, e nos seis meses de chuva, em um inferno de lama. Em 2011, foi construída uma ponte binacional sobre o rio Oiapoque, ligando Macapá a Caiena, a capital da Guiana Francesa.

“Com 84 mil quilômetros quadrados, a Guiana Francesa é limitada ao norte pelo oceano Atlântico, a leste e a sul pelo Amapá e a oeste pelo Suriname. Foi colônia francesa até 1947, quando passou a departamento ultramarino francês, com representação no Senado e na Assembleia Nacional da França, e seus cidadãos participam das eleições para presidente da França. Como integrante da União Europeia, a moeda local é o euro. O Centro Espacial de Kourou serve à Agência Espacial Europeia desde 1968. Ou seja, a Guiana Francesa é o principal território da União Europeia na América do Sul. Vizinho da Guiana Francesa e fazendo fronteira com um pedacinho do Amapá, fica o Suriname, antiga Guiana Holandesa, e que tem como capital Paramaribo. Com pouco menos de 165 mil quilômetros quadrados, é o menor país da América do Sul. Em 25 de novembro de 1975, deixou o Reino dos Países Baixos para se tornar um estado independente. Limitado a norte pelo oceano Atlântico, a leste pela Guiana Francesa, ao sul pelo Brasil, é vizinha da Guiana, antiga Guiana Inglesa, a oeste, que, por sua vez, se limita com o Brasil ao sul e sudoeste, com a Venezuela a oeste, e com o oceano Atlântico ao norte. A Guiana, capital Georgetown, conquistou sua independência do Reino Unido em 26 de maio de 1966, constituindo-se o único estado-membro da Commonwealth na América do Sul.

“É neste cenário que a Fortaleza de São José de Macapá estava fadada a se tornar o mais emblemático cartão postal dos macapaenses, juntamente com dois marcos de grandeza planetária: a Linha Imaginária do Equador, que secciona a cidade, e o Canal do Norte do rio Amazonas, que a banha na margem esquerda. Enquanto o Equador é só uma linha imaginária, o rio Amazonas é a substância da cidade. Com descarga hídrica tão gigantesca que reduz a salinidade superficial do mar, pois despeja em média 180 mil metros cúbicos de água por segundo no Atlântico, dos quais 65% via Canal do Norte – 16% da água doce vazada para os oceanos do mundo. Assim, o rio invade o mar com 8,6 baías de Guanabara e espantosos 3 milhões de toneladas de sedimento a cada 24 horas, ou 1,095 bilhão de toneladas por ano. O resultado disso é que a costa do Amapá continua crescendo. A boca do Canal do Norte, escancarando-se do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede em torno de 240 quilômetros, onde o Amazonas penetra cerca de 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias, e, juntamente com outros gigantes do Pará e Amapá, e extensos manguezais, contribui para que a Amazônia Azul setentrional seja a costa mais rica do planeta em todo tipo de criaturas marinhas”.