sexta-feira, 1 de julho de 2022

Aprendi a ser feliz dando uma volta em meu quarto. Meu quarto é um desejo sem conter-se...

Ray Cunha no seu quarto, no Sudoeste, Brasília/DF

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 1 DE JULHO DE 2022 – Meu primeiro livro-solo, SOB O CÉU NAS NUVENS, foi publicado em 1980, em Belém/PA, com prefácio do poeta amazonense Jorge Tufic, quarta capa do ficcionista também amazonense Antísthenes Pinto e orelhas assinadas pelo contista amapaense Fernando Canto. 

Jorge Tufic: “Ray Cunha é o poeta da informalidade. Seu verso é livre como o ar da cidade em que todos sofremos. Um ar saturado de palavras antigas e gemidos novos, onde os significados inerentes à existência dos homens travam batalha de morte com suas próprias raízes semânticas. 

“A interferência descontraída do poeta nos acontecimentos de rotina, nos círculos concêntricos da urbe, dá-se aqui de maneira frontal, de dentro para fora, à maneira extraordinária de um soco que se recebe da imagem nossa, refletida no espelho. O poeta se desnuda, participa, esculhamba e, continuando insatisfeito, remove os escombros da luta e volta a ocupar o mesmo espaço físico para novos confrontos com o Dinossauro. 

“Assim é a poesia deste jovem que se oferta aos leitores dispensando a clássica maturidade da rima e da métrica. Ele prefere antes o atrito gostoso das palavras espontâneas, que a perversão da matéria-vida converte numa sequência de catarses prometidas ao esgoto metafíssil dos outros. Atrevendo-se a velejar sob ventos contrários ao bonitinho das frases bem arranjadas, o vate deixa escorrer seu líquido de fogo modelando estrofes necessárias ao seu grito de libertação. “Se não te importas eu escrever verdades/Então pronto, serei esplêndido!” 

“A juventude poética deste livro jamais acarretará futuros arrependimentos para seu autor. Isto porque eu nunca soube de alguém que fosse autêntico e se arrependesse por isso. Em recente papo com meu amigo Guimarães de Paula, hoje a braços com as artes visuais no seu ateliê do Jardim Haidéya, segredou-me ele, um tanto quanto frustrado, que gostaria de pintar suas telas exatamente como se expressa na roda de seus companheiros do Clube da Madrugada. Pois bem: este nível de igualdade entre o coloquial e o artístico já fora atingido por Ray Cunha. Senão vejamos: 

“Ah se tu fosses minha!

Partiríamos para o sistema das fadas

Sentados no colo das flores

Tomaríamos néctares divinos.

Depois, cavalgando besouros furta-cores

Navegaríamos num mar transparente

Beijando-nos sem fim. 

“Por estes caprichos do mundo, por estas coisas inefáveis que se lançam ao papel, isentas do bolor cancerígeno dos gabinetes fechados, é que antevejo para Ray Cunha o sucesso cabível pela sua recolha de poemas. Eles estarão muito bem melhor quando forem lidos e admirados por quantos, jovens como o autor, sobrestam ainda a respiração para gritar ou cantar, como gritam e cantam as estrofes de Whitman, os poemas de Neruda e O Guardador de Rebanhos, de Fernando Pessoa. 

Antísthenes Pinto: “Os poemas de Ray cunha me maltrataram profundamente. Decorridos vários dias retornei à leitura adredemente preparado para que eles, os poemas, não mais me entortassem com sua força de maldição... 

“O poeta é um dos mais espantosamente loucos que tenho conhecido. O livro SOB O CÉU NAS NUVENS há de ferir muitas suscetibilidades, mas além da temática e da linguagem audaciosas, há aquela preocupação rigorosamente estética”. 

E Fernando Canto: “Nascido na Amazônia em 7 de agosto de 1954, Ray Cunha, estudante que foi rebelde e inquieto, sobrepujou-se  lutando e vencendo seu leão interior. Prosador dos melhores e poeta desmascarador, consegue mostrar-nos a necessidade angustiante do homem de pensar no cosmos e pisar no chão. 

“Sempre buscou nas mulheres uma forma de opção real, detendo-se no belo que dá forma à sua criatividade. Começou a amar as madrugadas ainda adolescente e aos 17 anos publicou Xarda Misturada, uma coletânea de poemas com mais dois jovens do Amapá. Já se manifestava aí o cheiro das palavras bem cozidas que hoje transcende teluricamente no seu SOB O CÉU NAS NUVENS”. 

Escolhi um dos poemas do livro para publicar aqui, NOITE HORRÍVEL, que escrevi em Buenos Aires, em 4 de outubro de 1974, em plena fase on the road:

Noite que não mais termina

Nesta estação aeroviária

Noite que apenas começou

E que não mais termina

Para um aventureiro enveredado na solidão

Inconfortado e sozinho

Revelando sua gana de escrever suas amarguras

Noite miserável rastejando devagar como lesma

Esta noite que não mais termina

Assustará nas noites de recordação

Fazendo estremecer com seu mais leve cheiro

Noite cheirando a prisão desconhecida

Que paralisa os nervos dos forasteiros ao desabrigo

Ar que fulmina

Com seu bafo gelado

Na solidão de uma chegada

Frio que não deixa sossegar.

Eis porque estou cansado e quero o aconchego de um lar

O amor de uma mulher

Ou uma poesia qualquer

Não mais essas noites.

Acho que a incerteza achei numa noite estranha

Agora sou cético

Acredito num prato de sopa

Feito por minha mãe

Não nessas sopas regadas de favores

Aprendi a ser feliz onde moram os que me dizem respeito

Aprendi, mas aprendi por aí

Onde o mar é salgado

O frio gelado

E a solidão mais forte

Quando se é fraco

Aprendi a ser feliz dando uma volta em meu quarto

Meu quarto é minha casa

Meu quarto é um desejo sem conter-se...

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