Congresso Nacional (Marcos Oliveira/Agência Senado) |
BRASÍLIA, 12 DE JUNHO DE 2024 – Reuni em TRÓPICO contos que representam o "paraíso tropical", o Brasil, especialmente Brasília, onde as demais 26 unidades federativas se encontram, enviando para o Congresso Nacional os homens ou as ratazanas que definem o futuro do país. O conto que segue é uma recriação da criação do Congresso Nacional.
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O CANTO das cigarras lembrava uma grande orquestra de jazz, em longo solo de metal. A algazarra era tremenda sob o sol que crestava a relva do cerrado na imobilidade da tarde, que ia ao meio. Ouvia-se barulho de trator à distância. Os dois homens arriaram os bornais com o lanche e se sentaram sobre o tronco de uma árvore tombada, à sombra de outras árvores. O guia, Toninho das Veredas, abriu seu alforje e tirou dele uma lata com tutu, um pedaço de queijo, doce de leite e uma garrafa de água. O outro homem tirou do seu bornal um sanduíche de salame e três laranjas já descascadas.
– É verdade que Brasília vai ter o formato de uma cruz, doutor? – o guia perguntou.
– É verdade – o outro respondeu. “Está mais para curvas sinuosas, femininas” – imaginou. “Simples apenas no cruzamento de duas avenidas, dois caminhos pontilhados de luzes cortando o breu noturno do cerrado. O coração do Brasil pulsando no Planalto Central; uma cidade fraterna.” – Aqui, onde estamos, será construída uma esplanada – disse, e antes que o guia lhe perguntasse o que é uma esplanada, explicou: – Uma esplanada é um terreno plano, um enorme terreno plano, gramado, a perder-se de vista. – Fez uma pausa. – Tenho algumas ideias, já fiz alguns esboços, mas as coisas estão ainda se definindo.
– O senhor vai mandar tirar toda esta mata, doutor? – Toninho perguntou, entre uma e outra mastigada.
O outro olhou para as árvores tortas que se enfileiravam na imensidão da savana.
– O presidente da república despachará de dentro de uma obra de arte, assim como os políticos e os ministros da corte suprema, e o povo morará em edifícios coletivos sobre pilotis – disse, em um tom quase brincalhão. – O que sei é que Brasília será mais do que uma cidade; será o símbolo da união – disse ao guia.
Um tatu entrou no campo de visão dos dois homens, estacou e arrancou. O guia se levantou depressa, pegou a espingarda, mas o tatu entrara em um buraco adiante.
– Sente-se, homem, deixe o tatu em paz no seu buraco. A propósito, meu trabalho será construído em três níveis – prosseguiu o outro. – No horizonte, debaixo do solo e no ar. No horizonte, haverá gramados, concreto, muito concreto, e asfalto; haverá uma cidade subterrânea; e, no ar, torres – disse, quase de si para si.
Os dois homens se encontravam onde hoje se ergue o Congresso Nacional, um labirinto sinistro, subterrâneo, sob duas bacias – uma de boca para cima e outra emborcada – e as torres gêmeas.
– O senhor não quer um pedaço de “quejim”? – o guia perguntou. O outro fez que não. O guia comia, com gosto, queijo e doce de leite. Lambeu um dedo e perguntou: – Mas se o senhor vai colocar, aqui, concreto e asfalto, como é que os bichos vão viver, doutor?
– Bom, eles deverão ter o seu lugar, quem sabe um zoológico, ou mesmo uma reserva só para eles? – disse o outro. – Todos terão o seu canto. Seremos um país realmente socialista. O presidente da república terá o palácio mais bonito – e pensou na Grécia Clássica. – Os congressistas, como são muitos, preciso projetar para eles um labirinto de gabinetes, auditórios, salas, salões, clínicas, restaurantes, corredores, passagens subterrâneas, para que eles possam se locomover à vontade no labirinto, se reunir, se sentir à vontade, como em casa, e permanecer no Congresso o maior tempo possível – disse.
– Mas esse negócio de buraco é bom pra tatu e pra bandoleiro se esconder, doutor! – disse o guia.
O outro riu.
– Isso pode ser resolvido com
muita vidraça. Os subterrâneos serão para as pessoas caminharem. Arquitetura
não constitui uma simples questão de engenharia, mas uma manifestação do
espírito, da imaginação e da poesia. O Palácio do Congresso, por exemplo, posso
formular sua composição em função das conveniências da arquitetura e do
urbanismo, dos volumes, dos espaços livres, da oportunidade visual e das
perspectivas, e, especialmente, da intenção de lhe dar o caráter de
monumentalidade, com a simplificação de seus elementos e a adoção de formas puras
e geométricas. Estou pensando... as avenidas que o ladearão deverão formar uma
monumental esplanada, sobre a qual poderei fixar as cúpulas que o
caracterizarão. E também posso projetá-lo
– O senhor acha que vai dar
certo, gente de toda parte se mudar pra cá? Vai caber todo mundo? – disse o
guia.
– Sim. Aqui, todos serão iguais –
o outro respondeu. – Todos serão tratados com igualdade – disse ainda, como a
confirmar seu próprio pensamento.
O sol despejava labaredas na mancha imóvel do cerrado. Os dois homens caminhavam devagar entre as árvores, até o jipe, estacionado no fim da picada. O arquiteto se sentou no banco do carona, ajeitou sua prancheta e se pôs a traçar esboços, enquanto o jipe sacolejava entre as árvores tortas.
Parabéns Ray Cunha! Seus registros acerca da história de nossa Brasília são documentos culturais com informações de alta relevância para todos, principalmente crianças e jovens que infelizmente, não conhecem importantes fatos daquela época. Aneris Alves
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