quinta-feira, 4 de março de 2021

Viver não é preciso, escrever é preciso. Ou a boa vida segundo o playboy Ernest Hemingway

Hemingway bebe um daiquiri no Floridita, em Havana, Cuba

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 4 DE MARÇO DE 2021 – Estamos o tempo todo fazendo novos amigos, mas algumas amizades são para sempre. Amigos são aqueles a quem amamos em qualquer circunstância, a quem não permitimos que mal algum os atinjam, a quem somos fiéis e a quem alertamos do perigo, mesmo que para isso tenhamos que fazê-los sofrer. Tenho grandes amigos, na companhia de quem me sinto dono da noite. 

Quando vivi em Belém do Pará, convivi, durante algum tempo, com o escritor Fernando Canto. Às vezes, a solidão me assaltava e não havia melhor cura do que beber gin fizz com o Fernando Canto, no bar do tio dele, onde não pagávamos, pois nessa época ele era estudante na Universidade Federal do Pará e eu era repórter de O Liberal. Noite, Belém, gin fizz, são algumas poucas palavras que evocam grandes amizades. 

Há também aquelas grandes e eternas amizades que jamais cultivaremos. Meu pai é uma delas. Nosso contato intenso, e que forjou para sempre nosso pacto, se deu na minha infância. Sinto ainda hoje, passados tantos anos, a presença vigorosa do meu pai. Ele era crestado pelo sol da Amazônia, tinha estatura média, era magro e rijo, os músculos saltando aos menores movimentos. Belo, mantinha o rosto raspado e bigodes aparados, cheirando a pinho, e seus cabelos, crespos, conservava-os curtos. 

À medida que avançava na idade, seu rosto, quadrado, ficava mais definido. Seus olhos eram grandes e negros, e doces, e irradiavam força descomunal, vontade inquebrantável, tempestades que ocorriam nas profundezas do seu espírito e que só poderiam ser controladas por algo livre, porque disciplinado. 

Lembro meu pai sinalizando na pista para os aviões Douglas DC-3 da empresa Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul. Meu pai era um faz-tudo no pequeno aeroporto de Macapá, minha cidade natal, situada no cruzamento do rio Amazonas com a Linha Imaginária do Equador. Foi ele quem primeiro mergulhou a mim no mundo da literatura. Depois dele, surgiu uma ninfeta dourada para quem dediquei um poema de amor, vermelho de rosas e rubis. 

Vieram bebedeiras e bate-papos memoráveis na casa do poeta Isnard Brandão Lima Filho e na noite de Macapá, e a estante do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, onde encontrava Ernest Hemingway, Franz Scott Fitzgerald e Norman Mailer, e longos papos com o crítico de cinema José Gaspar, em Manaus, sobre Hemingway, boxe e mulheres, uma das quais, galega, de olhos azuis de manhã e verdes à tarde. E houve intermináveis bebedeiras com Fernando Canto, em Belém do Pará, e noites e noites de bate-papo com Walmir Botelho. 

Foi meu pai quem primeiro mergulhou a mim no mundo da literatura ao narrar suas caçadas. Ele era caçador e possuía um arsenal, em casa. Lia O Coyote, de J. Mallorqui, Allan Kardec e livros de bolso ambientados no velho oeste americano, e gostava de contar histórias baseadas em Edgard Rice Burroughs, Hans Christian Andersen e Jacob e Wilhelm Grimm. 

Sua voz era grave e sonora, e tinha o poder de me fazer mergulhar na fronteira do mundo multidimensional, no qual só aos artistas é permitido entrar. Sua voz era como uma luz nas noites das nossas reuniões em família, na Casa Amarela, na Rua Iracema Carvão Nunes com a Eliezer Levy. 

Eu vivia em Manaus quando ele morreu, jovem, aos 62 anos, de ataque cardíaco fulminante; fumava muito. Somente muitos anos mais tarde é que me dei conta da sua ausência. Acho que ele seria como Pablo Picasso, e eu o levaria ao restaurante Raízes da Amazônia, no Setor Sudoeste, aqui em Brasília, para ele comer filhote e eu, caranguejo, e conversaríamos sobre caçadas e ele me contaria segredos da selva. Eu diria a ele que resolvi ser escritor, para sempre, e que meu lema é: viver não é preciso, escrever é preciso. 

Outro de quem eu seria grande amigo seria Ernest Hemingway. Durante 14 anos, o jornalista americano Aaron Edward Hotchener foi amigo de Hemingway. Durante a fecunda convivência, Hotchener anotou, inclusive em guardanapos de papel, tiradas do grande escritor, no convívio com outras pessoas do seu tempo, muitas delas celebridades também, em vários lugares do mundo, além de fotografar Papa na sua casa – a Finca Vigia –, no seu iate Pilar, caçando e escrevendo. O resultado disso é um livro delicioso. 

Aaron Edward Hotchener acabara de receber polpuda indenização da Força Aérea americana, em Paris, durante a Segunda Guerra Mundial, e preferiu permanecer em solo parisiense, pois vivia com uma soprano do teatro Ópera de Paris, no apartamento dela, e assim passaram-se dois anos paradisíacos, findos os quais retornou sem tostão para os Estados Unidos, onde seu amigo, Arthur Gordon, conseguiu-lhe trabalho freelance na revista Cosmopolitan. 

Na verdade, Arthur Gordon teve que inventar um trabalho para Hotchener. Entregou-lhe uma lista de escritores ilustres, para os procurar e convencê-los a escrever algo para o grupo Hearst. A lista intimidaria qualquer um. Nela, entre outros, constavam os pesos pesados: Dorothy Parkes, Sinclair Lewis, John Steinbeck, William Faulkner e Ernest Hemingway. Hotchener seria reembolsado das despesas e embolsaria 300 dólares por escritor caçado. 

Hotchener não queria voltar a trabalhar no escritório de advocacia Taylor, Mayer, Shifrin e Willer, em St. Louis, e assim aceitou o desafio, e obteve algum sucesso, pois alguns escritores estavam esquecidos ou encontravam-se carentes financeiramente, de modo que ficaram até lisonjeados com a oferta. Dos autores da lista, apenas John O’Hara e William Faulkner não quiserem conversa com Hotchener. 

Um deles, Hotchener sequer tentou contatar: Ernest Hemingway. Papa, como era chamado, o intimidava. Seria, hoje, como um repórter brasileiro desconhecido tentar um contato com Vargas Llosa. E depois Hotchener sentia por Hemingway “espanto e admiração”, o que não é bom para o repórter que vai entrevistar uma celebridade, pois lhe tolda a visão. Mas Hotchener foi instado a procurar Hemingway, pois aquela lista não seria legítima sem o Velhão (como o chamo). 

– Mas, Arthur, você quer que eu lhe peça para escrever um artigo sobre o futuro da literatura; não posso pedir ao grande Hemingway que escreva uma coisa tão estúpida quanto essa. Ele vai me arrasar – argumentou Hotchener. Mas não houve jeito. 

– Não seja covarde. Mexa seu traseiro sardento e vá a Cuba, ou então terá de voltar a St. Louis e enterrar o nariz em um Corpus Júris Secundum – Arthur Gordon replicou, entre outros argumentos. 

De modo que em 1948, Hotchener foi a Havana e mandou um bilhete para Hemingway, que morava num vilarejo da periferia da cidade, San Francisco de Paula, onde é hoje o Museu Hemingway, dizendo-lhe que “estava ali em uma missão constrangedora, para pedir que escrevesse um artigo sobre o futuro da literatura”, que ele, “por gentileza, respondesse rejeitando o pedido, de modo que eu pudesse manter meu emprego miserável na Cosmopolitan”. 

Naquela tarde, o telefone tocou no quarto do Hotel Nacional onde Hotchener estava hospedado. “É Hotchner quem fala? Dr. Hemingway, aqui. Recebi seu recado. Não posso deixar que você aborte sua missão, senão irá comprometer sua imagem na organização Hearst, o que significa algo parecido com ser mandado embora de um leprosário. Que tal tomarmos um drinque por volta de 5 horas? Há um bar chamado La Florida. Diga isso ao motorista do táxi” – ouviu. 

Era o início de uma amizade de 14 anos, até a morte de Hemingway, numa manhã de domingo, 2 de julho de 1961. Hotchener registrou esses 14 anos intensos que conviveu com um dos maiores escritores de todos os tempos no livro Papa Hemingway e em Dear Papa, Dear Hotch. 

O fato é que Hemingway escreveu algo para a revista Cosmo, do grupo Hearst. Não foi, claro, um artigo sobre o futuro da literatura, mas um romance: Do outro lado do rio, entre as árvores. Esse trabalho, considerado pelos críticos um dos mais fracos de Hemingway, conta a história de um velho militar americano que se apaixona por uma jovem italiana, em Veneza. É, como todas as histórias de Hemingway, repleta de romance. Se não contribui para com a literatura como O sol também se levanta, são páginas emocionantes de amor de um velho por uma mulher bastante jovem. 

A condição de jornalista freelancer de Hotchener lhe permitiu acompanhar Hemingway nas suas andanças pelos mais diversos lugares do planeta. “Por onde quer que fôssemos, as conversas que Ernest tinha comigo e com seus amigos e desconhecidos ao longo do caminho, suas observações a respeito de si mesmo, sobre o comportamento dos outros, incluindo aqui os animais, os peixes e pássaros, e sobre o mundo a seu redor, tudo era tão extraordinário que me senti compelido a fazer anotações, frequentemente em inúmeros pedaços de papel – papéis na recepção do hotel, guardanapos, cardápios, blocos de anotações, no verso de listas com itens de lavanderia. 

“Ernest era um conversador entusiasmado, divertido, sagaz, controverso e obstinadamente apegado a suas opiniões, um contador de histórias extraordinário, com uma memória vívida de pessoas e de fatos que datavam de sua tenra infância” – escreveu Hotchener, na introdução do seu último livro, A boa vida segundo Hemingway (Larousse, São Paulo, 2008, 257 páginas, R$ 29,90). 

A boa vida segundo Hemingway é um desses livros que compramos e, ao chegar em casa, procuramos imediatamente o melhor lugar para o ler, pois se constitui na porta para um mundo fascinante e real, e também revelador, pois que reúne as melhores tiradas de Hemingway, e fotos coletadas por Hotchener durante o convívio fecundo com um escritor classe A. 

Não convivi com Hemingway, mas houve um caso que nos uniu para sempre. Hemingway se suicidou. Um dia, comecei a enviar seu nome, todos os anos, para a Academia Espiritual da Seicho-No-Ie, em Ibiúna, São Paulo, a fim de que ele receba orações todos os dias. 

Logo depois da primeira vez que fiz isso sonhei com Hemingway, um desses sonhos palpáveis, que entram no nosso dia-a-dia e passam a fazer parte da nossa vida. Primeiramente o vi já velho, de cabelos e barba brancos, conversando com dois sujeitos na platéia superior de um teatro, em Belém do Pará. Depois o vi no palco, jovem, do jeito que ele era quando morou em Paris. Havia outras pessoas no palco. Não sei o que faziam ali. Então Hemingway passou por mim e me olhou, e me agradeceu com o olhar. Durante aquele dia, e sempre, a sensação que tenho é a de que estive com Hemingway.

Li quase todos os livros dele e muitos sobre ele. Guardo alguns livros do Velhão para os ler quando achar conveniente, como alguém que aguarda uma viagem há muito esperada e que será a porta para um mundo azul. A cada livro do Velhão ou sobre Papa, que leio, faço uma dessas viagens. Acordo com leões esturrando em praias africanas, capturo grandes peixes, sinto os cheiros das cidades que Hemingway amou e me transporto para Belém, Rio de Janeiro, Manaus e Macapá, e amo todas as mulheres que me fascinaram em cada estação da minha vida.

2 comentários:

  1. Como canta a torcida do Flamengo "ôôô...o escritor voltou". Feliz retorno ao que você sabe fazer melhor. Você, o Rubem Braga e outros 'velhacos' das redações e mesas de bar. Esse negócio de política não é para nós. Estou há 44 anos assessorando políticos, porém, jamais me arrisquei a perder minh'alma. Ótimo artigo. Que a Paz siga sempre contigo.

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    1. Tens razão, querido! O bar, mesmo que bebamos Coca-Cola, é nossa catedral!

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