quinta-feira, 6 de abril de 2023

A Amazônia nunca mais será a mesma depois da CPI das Ongs. Nem o tráfico de escravas sexuais

Mendigo em Belém, óleo sobre tela, de Olivar Cunha 

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 6 DE ABRIL DE 2023 – A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das organizações não governamentais (Ongs) já pode ser instalada. Terça-feira 4, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, leu, em Plenário, o requerimento do senador Plínio Valério (PSDB/AM) para criar a CPI, que terá 130 dias para investigar a liberação de recursos públicos para ongs e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscips). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Amazônia Legal abriga 15.919 fundações privadas e associações sem fins lucrativos. Descobriu-se, porém, que muitas das ongs estão pouco se lixando com os amazônidas; não querem seu bem, mas seus bens. 

“O país passou, com frequência cada vez maior, a conviver com denúncias de existência de ongs de fachada, cujos reais propósitos seriam repassar recursos a partidos políticos ou mesmo a particulares. Também se avolumaram as suspeitas de que, mesmo sem receber verbas governamentais, ongs se envolvem em atividades irregulares, inclusive a serviços de empresas com sede no exterior e a interesses de potências estrangeiras” – registra Plínio, no requerimento. Ongs são usadas na Amazônia com duas finalidades: o desvio de dinheiro público; e crimes que vão da espionagem de Estado ao narcotráfico, passando pelo comércio de mulheres e crianças para escravidão sexual. 

A Amazônia é um paradoxo. A mais rica província mineral e biológica do planeta é também O Coração das Trevas, obra-prima de Joseph Conrad, uma zona imprecisa da alma. Esse pequeno romance de pouco mais de 150 páginas é um golpe de navalha seccionando tecido humano, obsceno como o ataque de hienas. É o mais intenso de todos os relatos que a imaginação humana jamais concebeu, disse o labiríntico Jorge Luís Borges. É a face obscura da Amazônia. O inferno verde não é a selva profunda, mas o latejar da escuridão, espasmos da alma amazônida, a loucura e o malogro da civilização colonialista. 

Subcontinente brasileiro, a Amazônia foi conquistada pelos nossos ancestrais portugueses sob o fio da espada, o trabalho insano dos jesuítas, a morte em forma de novos microrganismos e a cobiça internacional. É uma região cheia de inimigos, mas, além dos que ambicionam suas riquezas intermináveis, como as nações hegemônicas, o Trópico Úmido tem dois inimigos letais, baseados, confortavelmente, dentro de casa: um deles são os próprios amazônidas, que recebem lavagem cerebral do novo colonizador, os políticos; o outro é o establishment da região, especialmente os políticos, muitos dos quais procuram se eleger para melhor estuprar. 

Para Brasília, a Amazônia é uma reserva continental de commodities: minério, madeira, água para mover turbinas, pedras preciosas, animais, mulheres e crianças. O tráfico de mulheres e crianças se dá sob um clima de banalidade, como se índias, caboclas, ribeirinhas, negras e brancas analfabetas fosse gado da floresta e dos rios, a serem pegas em armadilhas e anzóis, e jogadas em puteiros imundos, onde não existe setor público, para serem usadas até a morte. 

Em 27 de junho de 2006, publiquei, na minha antiga coluna Enfoque Amazônico, no site brasiliense ABC Politiko, o mapa da escravidão sexual infantil na Amazônia. Relendo o texto, vejo que essa realidade continua como um nervo exposto. O tráfico de crianças para escravidão sexual é um dos crimes mais repudiados pela sociedade, por sua feição abjeta, mas é corriqueiro na Amazônia. Em 1979, fiz, para o antigo mensário Varadouro, em Rio Branco/AC, uma reportagem sobre o tráfico de meninas pela BR-364, espinha dorsal do Acre, que liga o estado ao resto do país. 

Frequentei boates e bares, pontos de encontro de caminhoneiros, entrevistei prostitutas e rodoviários, e bisbilhotei registros policiais, concluindo que parte dessas meninas que sumiam em Rio Branco era atirada em prostíbulos de Porto Velho, Manaus e Goiânia. Outras, simplesmente fugiam da miséria. Hoje, a situação piorou, e muito. O drama, que afeta toda a Amazônia, foi ampliado em escala assustadora. 

Já foram identificadas 76 rotas de tráfico de mulheres, crianças e adolescentes na Amazônia, segundo a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins Sexuais, coordenada pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria) e pela Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Exploração Sexual, do Congresso Nacional. A Interpol francesa calcula que a rede internacional de tráfico de pessoas movimenta cerca de US$ 9 bilhões por ano. 

Nesse comércio negro, assim como ocorre com políticos corruptos, a imunidade, digo, impunidade, é garantida. O holandês Kunathi, um dos maiores traficantes de pessoas em atividade na Amazônia, já foi preso em flagrante no Pará, mas a Justiça o soltou para responder ao processo em liberdade. Não deu outra, Kunathi fugiu para o Suriname, antiga Guiana Holandesa, onde é dono de boate na qual só trabalham brasileiras, muitas delas do Pará e do Amapá. 

No Vale do Jari, no Amapá, há prostituição infantil em larga escala. O rio Jari divide o Amapá do Pará desde a Serra do Tumucumaque, na fronteira com o Suriname, até desaguar no rio Amazonas, no sul do Amapá. O Beiradão, no município amapaense de Laranjal do Jari, é apenas uma das zonas de “fronteira” na Amazônia, nas quais a escravidão sexual infantil é crime banalizado e recorrente. 

O comércio de crianças amapaenses e paraenses é intenso na Guiana Francesa e no Suriname, ao norte do Amapá, principalmente em cidades como Kourou, onde fica a base francesa de lançamento de satélites; o balneário de Montjoly e Saint Laurent. Meninas e meninos amapaenses e paraenses são bastante apreciados para bacanais, corrompidos por promessas de casamento com franceses ou pela possibilidade de ir para a Europa, onde imaginam que possam ganhar até 100 euros, cerca de R$ 500, por programa, escapando, assim, da miséria. 

Dos 200 mil habitantes da Guiana Francesa, 50 mil são brasileiros ilegais, amapaenses em sua maioria, que fogem do Amapá, estado assolado pela miséria social, roubalheira de colarinho branco, nepotismo e corrupção endêmica. A capital, Macapá, é reflexo do desleixo administrativo. Cidade sem esgoto, cheia de ruas esburacadas, com fornecimento precário de energia elétrica e água encanada, apesar de se situar na margem do maior rio do mundo, o Amazonas, a cada dia fica mais inchada e violenta. 

Próximo de Caiena, a capital da França na Amazônia, localiza-se a cidade amapaense de Oiapoque, porta de entrada para a prostituição internacional na Amazônia Caribenha. Antes de as meninas seguirem para as três Guianas, passam, geralmente, por um estágio em Oiapoque. Boates locais são o internato que prepara meninas e meninos para o abate. 

Assim, guianenses que atravessam o rio Oiapoque atraídos por sexo são recebidos na cidade de braços abertos - inúmeros bares nos quais o lenocínio prospera, de manhã à noite, açougues onde se pode comprar crianças de, em média, 13 anos. No Amapá, cidades como Laranjal do Jari, Tartarugalzinho, Calçoene e Santana, esta, na Zona Metropolitana de Macapá, são, como Oiapoque, vitrines de carne infantil. O jornal O Liberal, de Belém, o mais influente da Amazônia, contém, no seu banco de dados, várias reportagens que confirmam o que eu estou dizendo, com nomes, lugares e datas. 

Em janeiro de 2005, o Jornal Nacional, da TV Globo, publicou uma série de reportagens intitulada Povos das Águas, na qual focalizou o trânsito de balsas em Breves, na ilha do Marajó. Nessas balsas, na cabine de carros, crianças marajoaras serviam de repasto sexual durante o cruzamento do rio. De um modo geral, os municípios marajoaras são miseráveis, apesar da natureza pujante da maior ilha marítimo-fluvial do planeta. 

O Marajó, uma das mais belas regiões do mundo, é do tamanho da Suíça. A ilha é banhada pelos rios Amazonas e Pará, e pelo Oceano Atlântico. No arquipélago, ratos d’água atacam as casas de ribeirinhos, roubam e estupram as mulheres, e crianças são estuprados dentro de carros enquanto balsas cruzam os rios e no interior de embarcações. Silenciadas por comida, são empurradas aos mais torpes atos, às vezes, a troco de querosene, para acender lamparinas. 

Quando as embarcações se aproximam, meninas partem em grupo em canoas e remam em direção a balsas, barcos e navios. É lançada uma corda para ajudar as “balseiras”, como são chamadas, a subir às embarcações, onde tentam vender produtos agrícolas. Mas os homens geralmente estão interessados em outra coisa, e as estupram a troco de pacotes de biscoito, leite em pó ou condensado, ou óleo diesel. 

Em declaração ao jornal Beira Rio, da Universidade Federal do Pará (UFPA), a pesquisadora Monique Loma explicou que as famílias não veem isso como exploração sexual, mas como “uma oportunidade para eles; além de gerar renda, os pais olham para a prática como uma chance de as meninas se casarem com algum marinheiro e terem uma chance melhor na cidade”. 

E revela: “Quando contamos à família o que está acontecendo, o que essa atitude gera, percebemos que eles não tinham noção sobre a legislação ou sobre os Direitos da Criança e do Adolescente. Jamais poderiam fazer uma ocorrência, pelo simples fato de aquilo ser o cotidiano deles, não um crime”. E o choque: “Foi uma surpresa ver que, para elas, aquilo era brincadeira. Algumas afirmaram estar procurando o príncipe encantado. A naturalidade com que elas falavam de tudo foi um choque. Como eu poderia falar de violência sexual, de exploração, se elas nunca tinham ouvido esses termos?” 

Um caso que aconteceu em novembro de 2007, em Abaetetuba, cidade no quintal de Belém, constitui-se uma metáfora da Amazônia. Delegados da Polícia Civil do Pará, com a conivência de gente do Judiciário, atiraram uma menina, uma criança, a dezenas de criminosos na cadeia da cidade. Essa criança foi currada dia após dia, durante um mês. Assassinos, estupradores, espancadores de mulheres e crianças, ladrões, arrombadores, batedores de bolsa de velhinhas, psicopatas, drogados, caíram em cima dessa menina, como hienas, e os policiais, ali perto, ouvindo e vendo tudo. Masturbavam-se? Os berros de terror eram ouvidos pelos delegados e pelos moradores da cidade, e ninguém moveu uma palha por ela. 

Quando esse caso estourou na mídia, uma delegada envolvida, em depoimento no Congresso Nacional, disse que a menina provocava os presos e se oferecia a eles. O então secretário de Segurança Pública do Pará afirmou que a menina se fez passar por maior de idade e achava que ela era retardada. A governadora, a petista Ana Júlia Carepa, que não conseguiu se reeleger, tratou o caso com a habitual alienação, e tudo mergulhou no esquecimento. Aliás, crianças são emblemáticas na tragédia da Amazônia.

Em 2006, adolescentes de Altamira, no Pará, que caíram nas garras de uma quadrilha de exploração sexual e a denunciaram, foram ameaçadas de morte se falassem na Justiça. A polícia paraense, despreparada, não pôde dar segurança às vítimas e só conseguiu provas contra 3 dos 15 acusados. A ação da quadrilha envolvia inclusive um político e empresários. “É uma rede complexa de exploração sexual, com várias vítimas e vários adultos envolvidos. É preciso que haja vontade política para que se chegue aos outros envolvidos” – disse, à época, Ana Lins, advogada da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDDH). 

Em março daquele ano, a polícia de Altamira localizou várias adolescentes, algumas dadas como desaparecidas por suas famílias, em uma chácara, onde eram embebedadas e servidas em banquetes sexuais fotografados. As fotos eram divulgadas na internet. As orgias ocorriam também em motéis da cidade e em imóveis de um dos acusados, além de chácaras e balneários no município, onde as bacanais duravam dias. 

Ameaçadas de morte, vítimas e suas famílias, e testemunhas, desdisseram nos depoimentos à Justiça as declarações prestadas no inquérito policial. Uma das vítimas contou que foi ameaçada na porta da escola onde estuda. Sua família recebeu até bilhetes com ameaças de morte. A jornalista Iolanda Lopes, que denunciou a quadrilha em várias reportagens, disse que recebeu três telefonemas ameaçadores. 

As adolescentes foram, ainda, humilhadas na Câmara de Altamira, onde tiveram seus nomes divulgados durante sessão plenária. “A vergonha, a humilhação, o sentimento de desesperança e a depressão são alguns sintomas encontrados em várias das vítimas desse tipo de crime” - comentou a advogada Ana Lins. “A revitimização é o calvário de ter que reviver os momentos do crime ao ter que relatá-los várias vezes. Esse calvário vai desde não ser atendida dignamente na delegacia, às vezes esperando horas e horas, até conseguir registrar a ocorrência policial, a realização de exames periciais sem a devida humanização do servidor responsável, até ver os algozes soltos livremente e voltando a delinquir em alguns casos.” 

Em Brasília, o plenário da Câmara Legislativa do Distrito Federal fechou os olhos e arquivou processo contra o deputado Benício Tavares (PMDB), que respondia na Justiça por turismo sexual no estado do Amazonas. Benício foi liberado por 14 votos favoráveis e 10 abstenções. Em 2007, o então governador de Brasília, José Roberto Arruda (ex-DEM), deu a Benício Tavares a Administração Regional de Ceilândia, o maior colégio eleitoral da cidade-estado. O povo se revoltou, pois, além da acusação de corruptor de menor, Benício Tavares é acusado de desvio de dinheiro. Arruda teve de tirá-lo do cargo. Este ano, o próprio Arruda foi preso, acusado de comandar um esquema de corrupção de dar inveja aos maiores ladrões do país. 

Madrugada de 16 de setembro de 2004, marina da Ponta Negra, Manaus, Amazonas. A bordo do iate Amazonian, de 25 metros de comprimento, 15 políticos e empresários de Brasília e de São Paulo aguardam um carregamento para zarpar rio Negro acima, aparentemente para uma pescaria em Barcelos, a 450 quilômetros da capital amazonense, em passeio organizado pelo dentista paulista Flávio Talmelli. Era o terceiro ano que o alegre grupo de políticos e empresários candangos-paulistas se reunia. 

Finalmente o carregamento chega. São peixes servidos antes mesmo da pescaria: 17 meninas, a maioria delas menor, aliciadas em casas noturnas de Manaus. O programa, de dois dias e duas noites renderia R$ 400 a cada uma, fora gorjetas. As garotas foram conduzidas ao iate pela cafetina Dilcilane de Albuquerque Amorim, conhecida como Dil, 33 anos, que ganharia R$ 100 por garota. 

Domingo 19. As meninas se dividiram em dois grupos para o retorno a Manaus. O Amazonian, com os políticos e empresários, seguiu rio Negro acima, com destino a um hotel na selva. Doze meninas retornaram a Manaus. No fim do dia, as cinco meninas restantes retornaram também, no barco Princesa Laura. O barco naufragou naquele mesmo domingo, entre Manaus e Barcelos, com 100 passageiros. Morreram 13 pessoas, entre as quais as cinco garotas que participaram da orgia: Amanda Ferreira Silva, 20 anos; Marlene Cristina dos Santos Reis, 19; Suzie Nogueira Araújo, 18; Taiane Barros, 17; Hingridy Florêncio Viana, 16. 

Dois dias antes do acidente, alguns pais queixaram-se à polícia sobre o desaparecimento de suas filhas. Agentes da Delegacia Especializada de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente de Manaus (Deapca) descobriram que as meninas mortas haviam participado de uma bacanal e eram as mesmas que estavam sendo procuradas pelos pais. Depois, localizaram algumas meninas que retornaram a Manaus, do Amazonian. Descobriu-se, então, que três homens que estavam no Amazonian deixaram a embarcação em Barcelos e, dia 23 de setembro, retornaram a Manaus, em avião da Apuí Táxi Aéreo. 

Foi aí que identificaram o então presidente da Câmara Legislativa do Distrito Federal, deputado distrital Benício Tavares da Cunha Melo, do PMDB, que adotou o nome Benício Mello (prenome e último sobrenome); Randal Mendes (Sérgio Randal), cunhado de Benício Tavares e, então, chefe de gabinete da presidência da Câmara Legislativa do DF; e o advogado brasiliense Marco Antônio Attié. 

Uma das menores ouvidas pela polícia disse que Benício Tavares manteve relações sexuais com pelo menos duas menores, uma das quais Taiane Barros, 17 anos, mãe de um bebê de sete meses, e que morreu afogada no Princesa Laura. Outra garota afirmou, em depoimento à polícia, que manteve relações sexuais com Benício, que teria pago R$ 500 a ela. Uma menor disse que Benício lhe ofereceu R$ 500 para manterem relações sexuais, mas ela recusou. Seis das moças que estiveram a bordo do Amazonian garantem que Benício chegou a pagar valores entre R$ 200 e R$ 1 mil para manterem relações sexuais com ele, inclusive com as menores de idade. 

Das 17 meninas contratadas para a bacanal, seis afirmaram, em depoimento à delegada Maria das Graças Silva, titular da Delegacia Especializada de Assistência e Proteção à Criança e ao Adolescente, que Benício Tavares esteve no iate nos dias 17, 18 e 19 de setembro, e que manteve relações sexuais com várias garotas, entre as quais pelo menos duas menores. A delegada garante que coletou elementos suficientes para provar a participação de Benício Tavares em turismo sexual. Maria das Graças Silva mostrou, dia 27 de setembro, fotografias de Benício Tavares a três meninas que participaram da orgia. Elas identificaram imediatamente o parlamentar, que é paraplégico. 

Três meninas ouvidas pela polícia garantem que no iate Amazonian havia bebida alcoólica e drogas, e que foram realizados desfiles de garotas nuas e sorteio de brindes aos participantes. Em depoimento à polícia, a cafetina Dil declarou que a bacanal foi contratada pelo dentista paulista Flávio Talmelli. “Ele disse que o passeio seria muito divertido e que todas as despesas, desde hospedagem a alimentação, seriam pagas por seus amigos. Somente convidei algumas amigas” - defendeu-se Dil. As garotas disseram à polícia que foram enganadas por Dil. O combinado é que receberiam R$ 400, mais gorjetas, mas, a bordo, receberam somente R$ 200. 

Em nota oficial, divulgada no dia 27 de setembro de 2004, Benício Tavares confirmou a viagem a Manaus, de 16 a 22 de setembro, para pescar no rio Negro, hobby até então insuspeito. Confirmou também o vôo Barcelos-Manaus. Negou relacionamentos sexuais com garotas menores de idade. Para fazer a viagem turística, Benício se licenciou da Câmara, da qual era presidente, por 10 dias, embora a casa estivesse votando uma pilha de matérias e sua presença fosse importante. Foi confirmada também a presença, no iate, do chefe de gabinete da presidência da Câmara, Randal Mendes, cunhado de Benício Tavares, e do advogado brasiliense Marco Antônio Attié. 

O Conselho Especial do TJDF instaurou processo penal contra Benício, em ação movida pelo Ministério Público. Deu em nada, e Benício foi reeleito deputado distrital.

Se a CPI das Ongs for fundo, revelará muita carniça, porque com a sacudidela que será dada inevitavelmente casos virão à tona. E os casos escabrosos na Amazônia são muitos, cometidos, muitas vezes, por políticos, empresários, funcionários públicos, que acham que não serão pegos e podem continuar devorando crianças.

domingo, 2 de abril de 2023

Metrô poderá ligar o Rio de Janeiro a Niterói por debaixo de uma Baía de Guanabara despoluída

Tuiuiú Crucificado, de Olivar Cunha: a Baía de Guanabara pede socorro

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 2 DE ABRIL DE 2023 – O jornalista carioca Rafael Freitas da Silva escreveu dois livros que resgatam nada menos do que a origem do povo brasileiro e da mais bela região metropolitana de todo o planeta, tendo como centro as cidades do Rio de Janeiro e Niterói: O Rio Antes do Rio (Relicário Edições, Belo Horizonte/MG, 2015, 472 páginas, quinta edição) e ArariboiaO indígena que mudou a História do Brasil – Uma biografia (Bazar do Tempo, Rio de Janeiro/RJ, 2022, 445 páginas). 

Em O Rio Antes do Rio, Rafael fez uma pesquisa de tirar o chapéu e resgatou o Brasil no seu nascedouro, o início do século XVI, confirmando o que somos, uma nação primeiramente tupi e depois portuguesa e africana, e tudo começou no Rio. Quando os europeus começaram a visitar o litoral, havia, na Guanabara, cerca centenas de aldeias tupinambás, entre as quais a Carioca, a mais importante delas, situada à margem do Rio Carioca, que deságua na orla do Flamengo. As mulheres tupinambás eram bonitas e quando os europeus as viram andando nuas pelas praias ficaram doidos. Não demorou a surgir uma geração de mamelucos. Aí Estácio de Sá fundou o Rio. Mais mamelucos.

No século XVI, a Baía de Guanabara já era estratégica para os portugueses, daí porque Portugal tratou de exterminar os franceses da França Antárctica e fundar uma cidade. O Rio Antes do Rio vai até aí. Então entra Arariboia, que fundou Niterói. Só que Arariboia, que era também tupi, mas da etnia temiminó, aliada dos portugueses, lutou lado a lado de Estácio de Sá contra os franceses e os tupinambás, também tupis, mas inimigos dos lusitanos. Assim, Arariboia ajudou a fundar também o Rio de Janeiro. 

Arariboia foi tão importante na construção do Brasil que recebeu do rei dom Sebastião o título de Cavaleiro da Ordem de Cristo, o nome de Martim Afonso de Sousa e terras que iam da praia do Gragoatá ao Rio Maruí, divisa de Niterói com São Gonçalo. Era um lambe-botas dos portugueses? Não! Foi o primeiro índio brasileiro a conversar com os colonos portugueses, que eram destemidos e perigosíssimos, olhando nos olhos, de igual para igual. E tinha visão. Sabia que os portugueses vieram para ficar, que viriam novos tempos. 

No século XVIII, os portugueses encontram o que mais eles procuravam: ouro e diamante, em Minas Gerais, e o Rio de Janeiro passou a ser o local de embarque da produção para Portugal, e, naturalmente, a capital da colônia. 

No século XIX, o então príncipe dom João fez o imperador da França, Napoleão Bonaparte, de otário. Quando o general Junot entrou em Lisboa para saquear Portugal, ainda viu os navios que levavam dom João e sua corte para o Rio de Janeiro. Foi uma jogada de mestre. Do Rio, dom João pôde organizar, juntamente com a Inglaterra, a resposta a Napoleão. Assim, o Rio passava a ser a capital do Império do Brasil, Portugal e Algarves. 

É a cidade mais bonita do mundo, e, a cada ano, fica mais bonita ainda. Suas praias, montanhas e avenidas são de tirar o fôlego. E fica na região mais aprazível do globo, a zona tropical. É a cidade-luz do Trópico. Tanto que é a cidade que mais recebe turistas no Hemisfério Sul. Nela, só as pessoas muito estúpidas ficam olhando a cor dos outros. O Rio é moderníssimo e ninguém, que tenha mais de um neurônio, perde tempo com arrogância étnica. Lá, também, cada qual tem sua religião. 

Em termos de Brasil, foi a partir de lá que o país começou a se tornar uma nação. De modo que o Rio de Janeiro é, para a civilização brasileira, o equivalente à Grécia para o Ocidente. Assim, o Rio é o maior difusor da cultura brasileira. Estácio de Sá, ao fundar o Rio, com ajuda de Arariboia, lançava a pedra fundamental do Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. 

Mas quando o presidente da República, o ministro da Infraestrutura, o governador do Rio e os prefeitos dos municípios banhados pela Baía de Guanabara resolverem realizar duas obras, então teremos uma cidade mais do que maravilhosa. 

A Baía de Guanabara (seio do mar) tem 380 quilômetros quadrados, sua barra  mede um quilômetro e 600 metros, e sua profundidade vai de 3, próximo às margens, a 8,3 metros, na altura da Ponte Rio-Niterói, e de 17 metros na entrada da barra. Desaguam nela dezenas de rios, que formam uma bacia de 4 mil quilômetros quadrados, banhando 17 municípios, com 10 milhões de habitantes. Dados do início da década de 1980 indicavam 5 mil indústrias jogando 460 toneladas de esgoto por dia na baía. Em vez de resolverem o problema, deixaram-no ampliar-se. 

A baía agoniza, vítima dos esgotos domiciliares e industriais, além de derrame de óleo. Hoje, são mais de 14 mil indústrias, 14 terminais marítimos de carga e descarga de produtos oleosos, dois portos comerciais, estaleiros, duas refinarias de petróleo, mais de mil postos de combustíveis e uma rede de transporte de combustíveis, produtos industrializados e matérias-primas jogando lixo diariamente na baía. Dos 260 quilômetros quadrados originalmente cobertos por manguezais no entorno da baía sobram 82 quilômetros quadrados, hoje. 

Durante os Jogos Olímpicos de Verão de 2016, no Rio, constatou-se que as praias dentro da baía contêm adenovírus, rotavírus, enterovírus e coliformes fecais. A Lagoa Rodrigo de Freitas é um esgoto. Em janeiro de 2000, vazaram para a baía 1,3 milhão de litros de óleo. Foi uma mortandade só de peixe. Antes, em março de 1975, foram 6 milhões de litros de óleo. Além de esgoto, a Baía de Guanabara é também um cemitério de embarcações abandonadas: 78, atualmente. 

O prejuízo para o Estado, na saúde, no turismo e no transporte, é de pelo menos 50 bilhões de reais ao ano. Com 15 bilhões de reais se despolui da baía. Sabe-se que é no Rio que o poder público mais rouba no Brasil. É fácil confirmar isso. Até a mídia adestrada é obrigada a publicar isso de vez em quando. De modo que há dinheiro na burra. 

Outra obra que tornaria o Rio ainda mais maravilhoso é o metrô ligando-o a Niterói por debaixo da Baía de Guanabara, como Paris é ligada a Londres por trem, com um trecho submerso de 37,9 quilômetros de extensão por debaixo do Canal da Mancha, a até 75 metros de profundidade, de Folkestone, no Reino Unido, a Coquelles, na França. A construção do Eurotúnel começou em 1988 e foi inaugurado em 6 de maio de 1994. Custou 4,650 bilhões de libras esterlinas. 

O túnel por baixo da Baía de Guanabara, da Praça XV, no Rio, à Praça Arariboia, em Niterói, beneficiaria em torno de 750 mil passageiros, diariamente. Sua construção não teria que desapropriar terrenos. De modo que se houver vontade política para estancar a roubalheira e melhorar o transporte viário do Rio-Niterói haverá dinheiro de sobra. Com a despoluição da Baía de Guanabara e metrô por debaixo dela o Rio-Niterói, que já é a cidade do Hemisfério Sul que mais cintila, ficará ainda mais maravilhosa.

quarta-feira, 29 de março de 2023

John Wick 4 – Baba Yaga: três horas de tirar o fôlego, com Keanu Reeves no balé da morte

Keanu Reeves: estrela mítica no céu de Hollywood

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 29 DE MARÇO DE 2023 – Acho O Poderoso Chefão a mais perfeita sequência cinematográfica já produzida. Dirigida pelo gênio Francis Ford Coppola, com base no romance homônimo, de Mario Puzo, a trilogia teve a participação de três dos maiores atores de todos os tempos: Marlon Brando, Al Pacino e Robert De Niro. Também sou fã de outra sequência: Kill Bill, de 2003 e 2004, do roteirista e diretor Quentin Tarantino, com Uma Thurman. Tarantino fará Kill Bill 3? Ninguém sabe. 

Há alguns diretores, atores e sequências que aguardo com expectativa. Lembrei-me agora de Federico Fellini, de quem fui ver alguns filmes na estreia. Não perco nenhum Tarantino e procuro não perder nenhum Ridley Scott e Steven Spielberg, por exemplo, e vejo tudo o que posso de Al Pacino e Robert De Niro. E não perco, de jeito algum, 007. 

Mas se há algo que para mim seria um pecado perder é John Wick, encarnado por uma estrela mítica: Keanu Reeves. Fui assistir, hoje, em sessão das 13h30, em um dos cinemas Itaú, no shopping Casa Park, John Wick 4: Baba Yaga, com roteiro, redondinho, de Michael Finch e Shay Hatten. Além da minha esposa e eu, só havia mais um casal no cinema, e os cinemas Itaú são bons, exceto pela altura do som, de bate-estaca. 

Toda a sequência de John Wick é cinema americano de ponta. A morte dançando balé. Começou, em 2014, com John Wick – De Volta ao Jogo, dirigido por Chad Stahelski e David Leitch, com roteiro de Derek Kolstad. John Wick é um assassino aposentado que volta ao jogo porque mataram seu cachorro, presente de sua esposa, recentemente falecida, e roubaram seu carro. 

Em 2017, estreou John Wick 2: Um Novo Dia Para Matar, com direção de Chad Stahelski e roteiro de Derek Kolstad. John Wick volta novamente ao jogo, agora por causa de uma dívida antiga: tem de derrubar uma organização secreta de assassinos. 

Em 2019, estreou John Wick 3: Parabellum, com direção de Chad Stahelski e roteiro de Derek Kolstad, Shay Hatten, Chris Collins e Marc Abrams. Nesta sequência, John Wick tem de fugir de Nova York, pois a Alta Cúpula do crime, uma poderosíssima organização, oferece 14 milhões de dólares pela sua cabeça, porque John Wick quebrou algumas regras. 

Os quatro filmes, principalmente este último, levam o gênero ação à estratosfera. As sequências de lutas, mortes e em automóveis são como um longo balé mortal, de tirar o fôlego durante tempo interminável. Além de roteiros redondos e direção competente, o assassino John Wick é encarnado por um dos atores mais carismáticos de Hollywood: Reeves. Preparem-se para John Wick 5.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Olivar Cunha: um dos maiores expressionistas brasileiros restaura imagens sacras no ES

Olivar Cunha e Santa Rita de Cássia, em Cachoeiro de Itapemirim/ES

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 22 DE MARÇO DE 2023 – Era 31 de março de 1952 quando João Raimundo Cunha comemorou o nascimento do seu filho, Olivar Cunha, naquele dia, plantando uma seringueira no quintal de sua casa, na Rua Iracema Carvão Nunes, esquina com a Rua Eliezer Levy, uma casa amarela, remanescente do antigo aeroporto, ao lado do Colégio Amapaense, em Macapá/AP. 

Em 1983, a casa amarela já não existia mais e João Raimundo Cunha falecera. Das árvores do quintal, só sobreviveu a seringueira, que agora interceptava o muro oeste do Colégio Amapaense, na Rua Eliezer Levy, e apresentava uma grande lesão no tronco. Debilitada, foi atacada por fungos e insetos. Estudantes pressionaram então a Prefeitura de Macapá e o Governo do Estado para que autorizassem abater a árvore, alegando risco de vida para quem por ali transitava. 

Após minuciosa inspeção, o engenheiro florestal Luiz Guilherme Dias Façanha, nascido em 18 de julho de 1952 e amigo de infância de Olivar Cunha, especialista em seringueira (Hevea brasiliensis) na extinta Superintendência da Borracha (Sudhevea), um dos órgãos federais absorvidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), verificou que a árvore estava se recuperando do ferimento, embora muito lentamente, e em razão disso posicionou-se contrário ao abate. 

Então, solicitou ao repórter Antônio de Pádua, da Rede Globo, que gravasse com ele uma matéria junto à seringueira para dar sua opinião sobre o caso. “É claro que pesou na minha decisão todo o histórico da nossa infância brincando em volta daquela árvore: Olivar, João, Chico e eu” – disse, referindo-se a Olivar Cunha e dois de seus irmãos, os gêmeos Francisco e João. Conclusão: a Rede Globo e Luiz Façanha salvaram a seringueira. 

Tombei-a a meu modo, no romance A CASA AMARELA, no qual ela se torna personagem e assume sentimentos humanos. Quando o protagonista do romance, Alexandre Picanço Cardoso, é assassinado nos porões da Fortaleza de São José de Macapá, a seringueira verte látex e suas folhas se agitam, mesmo sem vento. 

Mas a seringueira está à espera de um vereador que apresente um projeto de seu tombamento, pois está ligada à história de um dos maiores artistas do Amapá e vem sendo agredida, servindo, seu tronco, com o ferimento já sarado, de lixeira. Quanto a Olivar Cunha, tornou-se um dos maiores expressionistas do país. 

Capa da edição de A CASA AMARELA na amazon.com.br

Aluno do pintor Raimundo Peixe na Escola de Artes Cândido Portinari, de Macapá, em 1968, aos 16 anos de idade, Olivar Cunha expôs sua primeira individual, na sede da Associação Comercial do Amapá, então na Rua General Rondon com a Avenida FAB. Durante o tempo em que a exposição ficou aberta, o salão da Associação Comercial se transformou no ponto de encontro de artistas e intelectuais de Macapá, entre os quais Raimundo Peixe, o jornalista e cronista Alcy Araújo e o poeta e cronista Isnard Brandão Lima Filho. 

Eu não perdia uma noite e participava como ouvinte atento dos papos entre esses pesos-pesados da história artística de Macapá, pois tinha 14 anos, mas já me movimentava nos meios literários locais, dando os primeiros passos, ao lado de Fernando Canto, Alcinéa Maria Cavalcante, José Edson dos Santos, Binga, Rodrigues de Souza (Galego), e por aí vai. No meu romance JAMBU faço uma homenagem a estes dois gigantes: Olivar Cunha e Isnard Brandão Lima Filho. 

Fernando Canto é o maior colecionador de trabalhos de Olivar Cunha e já chegou inclusive a abrir sua casa para uma mostra do pintor. Poeta, contista, ensaísta, presidente da Academia Amapaense de Letras, é também o mais capacitado a escrever sobre a obra do gênio amapaense.

"Os 71 anos do pintor O. Cunha é um acontecimento que jamais deveria passar em branco, pelo menos em sua própria terra, pois ele representa a ponta criativa de uma geração de artistas dos quais poucos sobreviveram, ainda que deixassem um espólio significativo para as artes locais" – diz Fernando Canto.

"Olivar Cunha, como é conhecido pelos amigos, pinta a resistência de um povo e incorpora os problemas sócio-ambientais, transportando para a tela o inenarrável dilema das grandes metrópoles, ao lado da miséria das periferias das cidades amazônicas, de que foi testemunha ocular nas suas andanças observacionais.

"E com esse olhar aguçado retrata o mundo desconhecido da nossa região ao lidar com seus pincéis e tinta acrílica com animais em extinção e sentimentos impiedosos, denunciando, assim, o caos da destruição criado pelo não-sentimento e pela ganância do capital.

"O artista passou por diversas fases na sua trajetória vitoriosa. Escolheu (ou foi escolhido por Atena, a deusa grega das Artes) para representar com veemência, e por meio da escola expressionista, um universo temático tão perto de todos, mas perceptível apenas pelos artistas. Então sua vida é um mosaico de brilho intenso que envolve mistérios e enlua os apreciadores de sua arte. Por isso eu brindo com vinho do Porto à saúde do meu amigo Olivar Cunha. Feliz aniversário!" – brinda Fernando Canto.

Depois de Macapá, Olivar Cunha estudou no Rio de Janeiro, no Parque Lage, onde foi aluno de Charles Watson, e na Museu Nacional de Belas Artes, onde fez um curso de restauração. Mora, atualmente, em Conduru, distrito de Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, onde vem restaurando pinturas e esculturas sacras em vários municípios do estado.

Tuiuiú Crucificado, de 1992: a Baía de Guanabara sob os miasmas do Rio de Janeiro antes dos aterros com o entulho do Morro do Castelo e sob descargas de dejetos. Ao fundo, os arcos da Lapa e o Pão de Açúcar


domingo, 19 de março de 2023

Uma amostra do que estão escrevendo na chamada Guiana brasileira, o Amapá

Dezessete escritores amapaenses reunidos em 67 contos

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 19 DE JULHO DE 2023 – Dezessete contistas do estado do Amapá, a chamada Guiana brasileira, na Amazônia Azul, mostram, na antologia LITERATURA AMAPAENSE – CONTOS ESCOLHIDOS, com 67 contos em 273 páginas, o que se escreve no extremo norte do litoral brasileiro, revelando cheiros e rumores de um outro Brasil, aquele voltado para o Caribe. A antologia pode ser adquirida, tanto impressa como em e-boock, na amazon.com.br e na amazon. 

Organizada por Mauro Guilherme, os contistas são: Rui Guilherme, Wilson Carvalho, Paulo Tarso Barros, Fernando Canto, João Barbosa, Paulo Rebelo, Lulih Rojanski, Luiz Jorge, José Edson dos Santos, Ricardo Pontes, César Bernardo, Edgar Rodrigues, Angela Nunes, Joseli Dias e Janete Santos, além de mim. 

“Decidi reunir nesta antologia os contistas do estado do Amapá, seja os que ainda moram aqui, seja os que começaram as suas publicações no Amapá, mas depois seguiram a sua vida literária em outros estados” – escreve Mauro Guilherme, no prefácio, referindo-se a casos como o meu, que vivo em Brasília/DF. 

“Além de dar visibilidade à literatura amapaense, meu intuito é oferecer um norte ao leitor, aos estudantes e aos professores do estado. É que os vejo tateando no vazio em busca de informações sobre os escritores amapaenses e os livros publicados por eles” – diz Guilherme. 

Com efeito, Macapá, a capital do Amapá, tem universidade federal e faculdades de literatura, mas jamais criaram cadeiras de literatura da Amazônia, muito menos de literatura amapaense. Também jamais houve a iniciativa de uma feira literária em Macapá. 

Arremata Guilherme: “Pedi especialmente aos escritores desta antologia que citassem em sua biografia os livros que já publicaram e as antologias de que participaram, porque quero que os leitores e os professores saibam quais as obras e quais autores fazem a história do conto no Amapá”. 

Quanto a mim, sou autor de dois romances que considero um raio X do Amapá e da Amazônia: JAMBU (há um exemplar na Biblioteca da Universidade Federal do Amapá – Unifap) e A CASA AMARELA (salvo engano, há exemplares na Biblioteca Professora Elcy Lacerda, em Macapá). 

Segue o conto LATITUDE ZERO, que já publiquei nos livros TRÓPICO ÚMIDO e TODAS AS GERAÇÕES.

 

O DEPÓSITO de madeira estava adormecido como tudo o mais na madrugada, exceto a luz do poste debatendo-se para escapar da névoa. A claridade lutava para libertar-se da neblina pegajosa, e como carnicão rompendo a película do tumor, vazava, arrastando-se até o depósito de madeira, infiltrava-se por uma fresta e incidia sobre o cenho franzido de um rapaz. Ele parecia morto, pois respirava imperceptivelmente. 

A luz do poste, agora, agonizava na claridade dúbia do amanhecer. Uma chuva pôs-se a cair, adensando o ar saturado de umidade. O rapaz mexeu-se, num gesto instintivo de quem tem frio. Encolheu-se mais, agasalhando as mãos entre as coxas. As tábuas sobre as quais deitara machucavam-no. Isto o despertou. Abriu os olhos como uma boneca: só as pestanas mexeram-se. O resto todo ficou imóvel. Depois procurou alguém com o olhar. Viu-o um pouco abaixo. Moacir Canto dormia ainda. O rapaz levantou-se, estremunhado, e ficou olhando para Moacir Canto. Apalpou o bolso traseiro à procura da carteira porta-cédula e não a encontrou. Meteu o polegar e o indicador no bolsinho da calça e puxou uma nota de cinquenta cruzeiros. Neste momento Moacir Canto despertou. 

– Perdi a bolsa – disse o rapaz, que se chamava Alexandre. – Mas tinha guardado cinquenta cruzeiros no bolsinho da calça. 

– Porra... – disse o outro. 

Olharam-se e depois cada qual olhou para si próprio. Haviam começado a farra no GEN, o bar do ex-policial, que ficava na Rua Tiradentes. Alexandre havia ganhado as obras completas dos irmãos Grimm em um concurso de contos e vendeu-as para a tia de Moacir Canto por duzentos cruzeiros. Separou uma nota de cinquenta, pô-la no bolsinho da calça e foram para o GEN. Tavares, o ex-tira, estava lá no lugar de sempre, diligente, servindo bebida a dois caras. Alexandre pediu meiota de Pitú. Tavares serviu-os com tira-gosto de jenipapo. 

Limitavam-se a beber. Moacir Canto incrustara-se no silêncio. Livrava-se do rancor que levava consigo cagando em cima dos outros. Certa vez, trepado numa árvore da Praça Veiga Cabral, deu uma cagada tão surpreendente na cabeça de um homem que o derrubou no chão. Quando o tipo recobrou-se, Moacir Canto já tinha se limpado, levantado as calças e se jogado de um galho mais baixo. Pôs-se ao fresco quase caindo de tanto rir. Certa noite, pediu a Alexandre para segui-lo de bicicleta. Moacir Canto ia na garupa de outra bicicleta, pilotada por Grosseiro. Ficaram andando um pouco pela Praça Nossa Senhora da Conceição, até que passaram por uma moça e uma menina. Grosseiro fez a volta, pedalando sem pressa, e tirou o fino da menina. Moacir Canto se ajeitou e deu tal soco nas costas dela que o barulho ecoou na praça inteira. Mas engraçado foi quando uma noite Moacir Canto achou uma folha de coqueiro e saiu à procura de vítimas com Grosseiro. Alexandre foi atrás para ver. Iam a certa altura da Rua Leopoldo Machado quando viram seis estudantes, uma ao lado da outra, ocupando a largura do passeio público e parte da pista. O tronco da folha de coqueiro ia pegar no pescoço dela. Era a mais alta; uma moça rosada e vigorosa. Ela se abaixou na hora e a folha de coqueiro passou voando por cima da sua cabeça. Moacir canto perdeu o equilíbrio e caiu. A moça pegou a folha de coqueiro e desferiu um golpe no queixo de Moacir Canto, que ia se levantando do asfalto. Grosseiro havia estacionado adiante e morria de rir. Alexandre passou por perto de Moacir Canto e salvou-o de seis mulheres furiosas. Para se vingar, Moacir Canto foi à sua casa, pegou um fio elétrico e saiu atrás das moças. Como não as encontrou, atacou uma velha, dando-lhe tal lambada no pescoço que a velha caiu com um grito horripilante. 

Ele era um cara assim mesmo. Seu ódio provinha da condição em que o pai deixara a família, na miséria, para enrabichar-se por uma menina de quinze anos, mas que o manobrava como uma puta experiente. No Dia dos Pais, Moacir Canto entrou lá e deu uma paulada na venta do velho, arrancando-lhe pelo menos um dente. O pai de Moacir Canto era policial. Telefonou para a polícia a fim de que pegassem o rapazinho, que devia estar drogado para fazer um negócio daqueles. Ficou por isso mesmo. A sorte de Moacir Canto era sua beleza. Tinha um belo queixo quadrado, o rosto oval, sobrancelhas bem feitas e cabeleira leonina. Seus olhos, entretanto, despertavam medo, sobretudo quando estava estupidificado de maconha. Certa vez, Alexandre, Moacir Canto, Grosseiro e Galego Demônio amanheceram na Praia do Barbosa. Alexandre e Grosseiro dormiam ainda. Moacir Canto e Galego Demônio já haviam acordado há algum tempo quando avistaram a menina. Correram em cima dela, agarraram-na e arrastaram-na para detrás de um aturiá. Alexandre e Grosseiro acordaram com os gritos, correram para lá e viram Moacir Canto tentando penetrar a menina por trás, enquanto Galego Demônio segurava-a pelos cabelos, pelejando para a menina chupar o pênis grande, mole e purulento que lhe empurrava no rosto. De todos eles, Alexandre era o único que tinha um pouco de sensatez, e Grosseiro o atendia como a um cão. E assim livraram dos répteis a menina. 

– Está na hora da gente se escafeder – disse Moacir Canto, no GEN. 

Pegaram a Rua Cândido Mendes e seguiram em direção ao Igarapé das Mulheres. Todas as noites Alexandre ia à casa de Angélica, Sílvia e Graciette. Angélica estava no portão da varanda. Era pequena e fofa. Usava os cabelos, de cor indefinido, bem curtos. Tinha os olhos da cor dos cabelos e era estrábica, e tudo chamava a atenção no seu rosto: o nariz arrebitado e os lábios vermelhos e entreabertos, como rosa despedaçada e sumarenta. Isto, e os olhos, davam-lhe um ar de avidez ninfomaníaca. Sílvia parecia uma fada morena. Tinha a pele cor de leite, os cabelos negríssimos e longos, e os olhos azuis, da cor dos olhos do pai. Vivia sorrindo, com seus lábios rosados. Tinha os dedos longos, ágeis ao piano. Era bem mais alta do que Graciette. Os olhos de Graciette ficavam entre castanho e verde. Usava unhas longas, que pintava de vermelho, e punha uma língua tão comprida na boca dos rapazes que os sufocava. Era ruiva. Puxava a mãe, uma potra ainda jovem que tinha o mesmo olhar canibalesco de Angélica. 

As duas outras garotas estavam na sala ouvindo os Beatles. Nem bem os dois chegaram, Sílvia foi logo convidando Alexandre para dançar. Ele ficou excitado. Sabia o jogo. Ela se encostava nele, os longos cabelos negros caindo pelo rosto e pelos ombros de Alexandre. Ela não usava soutien; os seios duros espetavam-no, e ele, de vez em quando, via os bicos rosados dos peitos através da blusa meio desabotoada. Alexandre ia ficando cada vez mais descontrolado. Ela batia com o púbis sobre o pênis de Alexandre, rijo como um osso, e ele aparava as batidas prestes a gozar. 

– Vamos para o quarto? – disse Alexandre. 

Ela não falou nada. Puxou-o pela mão em direção ao quarto amplo e bem arrumado. Sílvia era tão delicada! Desafivelou o cinto, abaixou o fecho éclair - ele não usava cueca –, pôs o pênis duro para fora. Ela, com seus olhos azuis, olhava maravilhada para o pênis. 

– Caralhinho lindo! – disse, e desceu, suavemente, seus lábios rosados sobre a glande vermelho-escura, que estava para estourar. Ele não aguentou muito tempo. Logo se desintegrou em um gozo suculento, inundando aquela boca de fada, respingando de esperma os lábios sedentos. 

Três pares de olhos acompanhavam tudo, sem perder nada. Ao ver o suco espermático escorrendo da boca da irmã, Angélica se despiu num piscar de olhos. Tinha a bundinha mais linda do mundo. Estava gozando só de ver. Possuía o dom dos gozos múltiplos. Pegou os cabelos de Alexandre e puxou-o para seu púbis. Cheirava a Mateus Rosé, e o líquido que escorria pela sua coxa tinha sabor de acme. Ao ver o traseiro de Angélica, Moacir Canto enfiou-se ali. Graciette masturbava-se com seus dedos de garras e chorava. 

Era meia-noite. Os cinco estavam banhados, na sala, bebendo vodka e ouvindo os Beatles, quando a mãe das meninas chegou. O pai delas, como sempre, fora a Belém. Dona Frênia deu um alô para os garotos, a caminho do seu quarto. 

– A velha está bêbeda – Moacir Canto cochichou para Alexandre. 

Foi neste momento que a garrafa de Wyborowa do pai das meninas, que Alexandre bebeu, subiu de uma vez para a cabeça dele. 

– Vou fodê-la – disse, ensaiando ir para o quarto da dona Frênia. 

Moacir Canto estava em melhor estado. Atirou-se de cabeça nele. As meninas jogaram-se também em cima dele. Acabou tudo numa risada geral. 

Quando Alexandre voltou a si estava deitado no meio da Rua Cândido Mendes, de braços estendidos como Jesus Cristo na cruz, gritando: fodam-se seus filhos da puta. Então começou a chover. O chofer do táxi não estava vendo as coisas muito bem e pegou um susto ao vislumbrar aquele vulto erguer-se do asfalto quase em cima do carro. Parou para averiguar do que se tratava. Alexandre entrou no táxi. Moacir Canto veio correndo da calçada, onde estivera vomitando, e entrou no carro. 

– Bar Caboclo – Alexandre disse ao motorista. 

A chuva engrossara. Da mesa onde estavam podiam ver a chuva estalar na calçada. Bebiam em silêncio a meiota, em pequenos goles de apreciadores de bebida. 

– Vamos voltar à casa das meninas? – Alexandre sugeriu. Moacir Canto levantou-se incontinenti. 

– Desta vez quem vai comer a velha sou eu – disse. 

– Está bem – Alexandre concordou, chamando o garçom e pagando a meiota. 

Saíram do bar na chuva, que estava mais fina agora. Atravessaram a Rua Cândido Mendes na altura do antigo Igarapé da Fortaleza. Escorregaram numa poça d’água no outro lado da rua. Chapinharam lá dentro, até que Moacir Canto conseguiu levantar-se e arrastar Alexandre para fora da poça. Andaram em direção ao rio Amazonas, mas pararam logo adiante, ao verem que alguém passava a chuva debaixo de uma marquise. Aproximaram-se. Era uma moça. Moacir Canto disse alguma coisa para a moça. Ela tentou falar, mas era muda. Moacir Canto pegou-a e começou a se esfregar nela. A moça tentava afastá-lo. Moacir Canto subiu a saia dela e depois desceu a calcinha. A muda começou a rir e depois procurou beijar Moacir Canto. Ele se desviava dos seus beijos e aquilo fazia Alexandre se torcer de rir. Quando parou de rir não viu mais a muda. Moacir Canto estava com uma calcinha na mão. De quem diabo era aquilo? Subiram por uma escada lá mesmo naquele prédio. 

– Conheço um cara que mora em um apartamento lá em cima – disse Moacir Canto. – É da polícia e é veado. 

Bateram lá e logo um sujeito branquela meteu a cara na porta entreaberta. 

– Oh! você! – disse para Moacir Canto, olhando também para Alexandre. – Entrem! Entrem! Vou preparar um drink para vocês. Por que vocês não tomam banho? 

Serviu duas doses generosas de whisky e foi ver o frango que pusera no fogo. O cheiro da canja empestava o ambiente, mas para os bêbedos nada importava. Sentaram-se, com o whisky ao lado, e puseram-se a bater papo. 

– Tenho roupas secas... – interrompeu o escrivão, tentando atrair a atenção deles. 

– Basta o teu whisky – disse Moacir Canto. 

– Isto aqui é um buraco – dizia Alexandre, deixando o escrivão desconfiado. – Uma merda! Senão vejamos: que escritor temos aqui? Nenhum! Há o R. Lima, mas o R. Lima não escreveu mais do que um livro de poemas, que teve uma tiragem ridícula de quinhentos exemplares. E por quê? Porque não temos editora, porque não temos público, porque não temos aplauso. 

O escrivão ficou menos preocupado ao perceber que não falavam do seu apartamento. 

– É uma sepultura... – disse Moacir Canto. 

– Uma sepultura e uma fábrica de poetastros – disse Alexandre. – Vês o caso do Galego Demônio, que lança um livro mimeografado por semana... 

– Não sei como aquele traficante que banca as baboseiras dele ainda não percebeu que se trata de um psicopata mitomaníaco e megalomaníaco. 

– No seu livro mais recente ele resgata os últimos estupros que cometeu – disse Alexandre. 

– Nem a irmã dele escapou – disse Moacir Canto. – E com aquela gonorreia crônica... 

– Quis comer o diretor do Colégio Amapaense, o professor Olhudo. 

No dia em que isso aconteceu, Alexandre estava estudando em casa para fazer quatro provas logo mais à noite quando Galego Demônio chegou com seu livro Eu Imortal debaixo do braço. 

– Vamos já para Serra do Navio – disse a Alexandre. 

– Tenho quatro provas hoje à noite. 

– O estudo formal embota os neurônios. Já está tudo certo: vagão-leito especial no trem, suíte no hotel e duas professoras mineiras para uma bacanal. 

Alexandre ficou calado. 

– Partamos já para a aventura! A rotina é um veneno lento. O bar nos espera. Serra do Navio é um apelo irresistível com suas fêmeas mineiras. 

– Resolvi ir, mas não porque Galego Demônio tivesse me convencido a ir, com aquele papo dele. Estava entediado só de pensar nas quatro provas. 

Moacir Canto serviu novas doses de whisky e Alexandre pôs-se a contar o resto do caso. Já anoitecia quando ele e Galego Demônio saíram da casa de Alexandre, entraram no bar da esquina e pediram uma meiota. Não demoraram lá e foram a seguir para o Picolé Amigo, um bar onde R. Lima bebia de vez em quando. Com efeito, encontraram-no lá. 

– Lembro-me que no Picolé Amigo houve uma discussão entre R. Lima e Galego Demônio. Galego Demônio estava botando muita banca e R. Lima disse que seu livro deveria se chamar Eu Idiota, porque ao ler os originais de Eu Imortal encontrara jacaré com g. 

– Do ponto de vista da linguística é possível - Galego Demônio se defendeu. - Sobretudo para um niilista igual a mim. 

– E foi com o niilismo dele que eu tomei no rabo - disse Alexandre para Moacir Canto. Acabara resolvendo, no Picolé Amigo, que deveria fazer as quatro provas, e não teve quem o dissuadisse da ideia. Galego Demônio foi com Alexandre para matar algumas questões. Ao chegarem ao Colégio Amapaense um inspetor disse-lhes que não podiam entrar senão uniformizados. Alexandre pediu para falar com o diretor. Impressionado, ou melhor, narcotizado com o bafo de bebida, o inspetor não opôs objeção em anunciá-los ao diretor, que estava ali perto fiscalizando ele próprio se os seus meninos encontravam-se devidamente uniformizados. Quando Alexandre e Galego Demônio se aproximaram do diretor ele estava atendendo um recruta do Exército que saíra do quartel diretamente para o Colégio Amapaense, de modo que não pudera vestir o uniforme de estudante. Levado pelo hábito, o rapaz se perfilou. 

– Ô idiota! Esse gajo não passa de um professor de História! - observou Alexandre para o recruta. 

– O quê?! – gaguejou o diretor. 

– Seu merda, foste tu que levaste A Galinha para o governador, aquele ditador do caralho – disse Alexandre, referindo-se ao jornalzinho que lhe rendera dez dias de suspensão. 

– Vou chamar a polícia – disse o diretor, com seus olhos que eram esbugalhados de nascença. 

Galego Demônio tinha visto umas fêmeas gostosas e tentou pegar no rabo de uma delas. A moça deu um grito que chamou a atenção do diretor; ele passou uma reprimenda em Galego Demônio. A reprimenda foi mesmo que nada. Galego Demônio já estava com o pau para fora e tentou metê-lo no diretor. 

– Foi uma cena muito engraçada aquele veado de uma figa correndo com o Galego Demônio atrás, com aquele pau mole dele, pingando gonorreia. Descemos correndo a escada, pois a polícia já fora chamada, e voltamos ao bar onde deixáramos R. Lima. Pedimos mais uma garrafa de Pitú. Iríamos cedo para Santana e de lá embarcaríamos para Serra do Navio. Mais ou menos à meia-noite R. Lima foi embora e ficamos só nós dois no bar. Tomamos mais duas e zarpamos. Daí não me lembro mais de quase nada. 

Alexandre cochilou. Acordou com uns respingos quentes no braço. Moacir Canto tinha se levantado, aberto a panela de canja e levou-a para a sala, quando a panela virou, espalhando canja pelo chão. O escrivão cantava alegremente no banheiro. Moacir Canto pegou o que ainda restava da canja na panela, foi até a porta do banheiro e jogou a canja lá para dentro. O escrivão deu um berro. Ao ouvir o grito, Alexandre levantou-se rapidamente pronto para correr. Antes de ir embora Moacir Canto olhou em volta e depois, como se lembrasse de algo, pegou a chave da porta. Nestas alturas o escrivão saiu do banheiro chorando e todo melado de canja. Moacir Canto saiu e fechou a porta por fora. Lá embaixo, jogou a chave no esgoto que cortava a rua longitudinalmente. 

– Vamos pegar um ar lá na amurada? – disse Alexandre. 

– Vamos pegar um rato podre no pescoço? – disse Moacir Canto, atirando nas costas de Alexandre uma ratazana morta, que encontrara na calçada, correndo depois para a amurada que dava para o rio, ao lado da Fortaleza São José de Macapá. 

Alexandre abaixou-se numa poça de água e lavou o pescoço. Depois andou em direção a um depósito de madeira. Moacir Canto veio também e entrou no depósito. Alexandre adormeceu recordando de A Galinha, o jornalzinho que não passou do primeiro número. Havia, em sala de aula, um ricaço. O pai era dono de boa parte da cidade. Ele se ofereceu para financiar o jornal. Foram, então, uma noite, para a casa do ricaço. O filho dele os levou para o gabinete de trabalho do velho. Lá pelas tantas Alexandre tirou o telefone do gancho e discou um número qualquer. Nestas alturas, o velho estava tomando soro no quarto dele e apanhou a extensão para saber do que se tratava àquela hora da noite, quase onze horas. 

– Alô! – disse uma voz de mulher, sonolenta. 

– Quem é? 

– Solange – disse a voz. 

– Oh! Solange! Minha doce cadelinha, vaquinha linda, minha bocetinha fedendo a merda, vou já aí para empurrar meu caralho na doçura do teu jardim de trás... 

O ricaço arrancou a agulha da veia, pegou um cinto e irrompeu no escritório. O velho entrou dando lambada no filho dele. Havia, além de Alexandre, outro redator, um garotão de cabeça raspada, que montou na sua bicicleta e se evaporou. 

O primeiro número do jornal, e único, saiu com uma matéria sobre o governador, o general ditador do Amapá. Dizia que ele passava o dia de binóculos por trás das persianas da sua sala, no Palácio do Setentrião, tentando ver, do outro lado da Praça da Bandeira, as calcinhas das estudantes que se sentavam sobre o muro do Colégio Amapaense. Sobre o diretor do educandário dizia que tinha um acordo tácito com algumas de suas alunas, de modo que lhes dava nota dez se elas se arreganhassem e o deixassem ver suas calcinhas nas aulas de História. Na mesma edição foram escolhidos os dez mais punheteiros. O diretor enviou um exemplar do jornal ao secretário de Educação, que o enviou ao governador. Mas nesse trâmite o exemplar desapareceu. Houve um inquérito e os responsáveis por A Galinha, que na expectativa dos rapazes deveria pôr ovos de ouro, acabou rendendo-lhes dez dias de suspensão.

Quanto a Galego Demônio, naquele mesmo dia tropical úmido em que Alexandre ganhou as obras completas dos irmãos Grimm, o poeta entrou no Gato Azul e pediu uma dose de rum Montilla. Fazia aquilo ordinariamente e bebia até o anoitecer. Então voltava para casa, jantava e saía. Naquele dia bebera além do normal. Ao retornar a casa não encontrou ninguém. Estava sozinho. O pai fora comprar açaí no arquipélago do Marajó; a mãe estava em Belém; a irmã, sabe Deus. Foi ao fogão. Comeu nas próprias panelas. Sentia-se pesado. Foi ao quarto. Deitou-se. Dormiu. Canguru Sem Freio, a irmã, estivera escondida, espreitando-o. A claridade da luminária do poste vencia o piche da noite sem estrelas e entrava no quarto, banhando os móveis com um manto irreal. Galego Demônio dormia de peito para cima. Assim, dormindo, era belo como qualquer jovem da sua idade. A primeira machadada pegou no lado do pescoço. Galego Demônio acordou como se estivesse impulsionado por molas. Tentou agarrar-se em alguma coisa e começou a gorgolejar como porco sangrando. Canguru Sem Freio ligou a lâmpada e olhou para Galego Demônio. Ergueu de novo o machado. Galego Demônio fitou-o aterrado e começou a arrastar-se para um dos lados da cama, já empapada de sangue. Canguru Sem Freio depôs o machado no chão, com o cabo encostado na cama, desafivelou o cinto de Galego Demônio e arriou sua calça, juntamente com a cueca. O pênis de Galego Demônio estava com os curativos purulentos como sempre. A machadada deixou-o apenas pendurado pela pele do escroto. A próxima machadada seccionou-o. Depois, Canguru Sem Freio aprumou bem o machado, como se fosse dar o golpe final em um tronco que estivera tentando partir ao meio, e desceu-o. A cabeça de Galego Demônio pulou e foi bater na parede. Canguru Sem Freio arrastou o corpo mutilado, desceu as escadas, caminhou até o monturo e atirou-o sobre o monte de caroços de açaí. Chovia como o diabo. Canguru Sem Freio voltou ao quarto de Galego Demônio, levando seu pistom, e pôs-se a tocar O Silêncio.

sábado, 11 de março de 2023

Adquira livros de RAY CUNHA no Clube de Autores, amazon.com.br e amazon.com

NASCIDO em Macapá/AP, o romancista, contista e poeta Ray Cunha trabalhou como repórter, redator e editor nos principais jornais impressos da Amazônia e de Brasília/DF, onde mora. Trabalha também como terapeuta em Medicina Tradicional Chinesa, formado pela Escola Nacional de Acupuntura (ENAC).

Seus livros podem ser adquiridos no Clube de Autores, amazon.com.br e amazon.com

Thriller policial recria o dia a dia de acupunturistas em Brasília/DF

O romance FOGO NO CORAÇÃO pode ser adquirido no
Clube de Autores, na amazom.com.br e na amazom.com

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 11 DE MARÇO DE 2023 – A estonteante modelo de moda brasiliense Rosa Nolasco, às voltas com uma colônia da miomas, procura o terapeuta em Medicina Tradicional Chinesa (MTC), mestre em artes marciais e poeta Emanoel Vorcaro, professor no Instituto Holístico, na esperança de solucionar o problema sem se submeter à uma cirurgia. Mas, assim como três modelos que também foram atendidas em acupuntura, é assassinada. Emanoel Vorcaro se torna o principal suspeito e é investigado pelo seu sócio na Clínica de Terapias Holísticas, o delegado de Repressão a Homicídios, Ricardo Larroyed, também acupunturista e professor no Instituto Holístico. 

Essa é a trama do romance de Ray cunha, FOGO NO CORAÇÃO, ambientado no dia a dia do mundo da MTC em Brasília. “Todas as personagens de FOGO NO CORAÇÃO são fictícias, assim como a ambientação do romance foi inventada, com exceção do escritor, pesquisador, psicanalista e acupunturista Jorge da Silva Bessa, que também trabalhou na área de inteligência e serviu ao Brasil em Moscou. Bessa aparece no romance com um perfil biográfico ligeiramente modificado; trata-se de uma homenagem a um amigo que tem minha admiração, especialmente pelo seu trabalho de pesquisa no campo espiritualista – diz Ray Cunha. 

Por trás da trama, movem-se, em FOGO NO CORAÇÃO, várias questões do dia a dia de quem estuda, leciona ou trabalha no âmbito da MTC, que tem na acupuntura seu pilar mais conhecido no Brasil, ou no Ocidente. 

Jornalista e romancista, formado em MTC pela Escola Nacionalde Acupuntura (ENAC), o romance FOGO NO CORAÇÃO foi apresentado e aprovado como trabalho de conclusão do curso técnico de Medicina Tradicional Chinesa na ENAC.

Ray Cunha presta serviço voluntário pelo Ambulatório Fernando Hessen, sob a coordenação do professor Ricardo André, todos os sábados, das 9 às 13 horas, no Salão Comunitário da Candangolândia, e das 9 às 12 horas, no Centro Espírita André Luiz (CEAL), no Guará I, sob a coordenação do professor e jornalista José Marcelo.