quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

A idade da razão

Ray Cunha, em 2019, de panamá comprado em Pirenópolis/GO

BRASÍLIA, 5 DE FEVEREIRO DE 2020  Nasci em 7 de agosto de 1954, em Macapá, cidade encravada no cruzamento da Linha Imaginária do Equador e da margem esquerda do rio Amazonas, então um povoado ribeirinho afogado no meio do mundo, mas nunca me senti emparedado na solidão dos povoados amazônicos, porque, aos 5 anos, os gibis, e depois revistas de informação e livros, de todos os gêneros, me inocularam o vírus da aventura, de modo que aos 13 anos eu já tinha viajado meio mundo, e, aos 14, conversava sobre filosofia e arte, e comecei a escrever, e, aos 17, recebi meu batismo de fogo, segundo o poeta Isnard Brandão Lima Filho, lançando o livro de poemas Xarda Misturada, juntamente com Joy Edson e José Montoril. Verdade seja dita, meus poemas eram os mais fracos do livro, mas, naquele momento, tiveram poder propulsor, o poder de, mesmo sem nem carteira de identidade, me mandar de Macapá, que começava a me sufocar. Então parti de barco para Belém, de onde peguei carona para Brasília e para o Rio de Janeiro, e passei 10 anos na estrada.

Aos 27 anos, cansado de navegar e de rodar, e ainda tonto de um casamento frustrado por absoluto fracasso meu, comecei o curso de jornalismo na Universidade Federal do Pará (UFPa), em Belém, quando reencontrei um velho amigo, a quem chamarei de B. B media um metro e noventa, por aí, e pesava uns 100 quilos, tinha os olhos claros e exercia fascínio sobre as mulheres, inclusive casadas. Embora depressivo e dipsomaníaco, quando começava a falar, numa linguagem erudita e pessimista, assustava todo mundo. Nossa amizade se desenvolveu porque havia uma coisa que interessava a ambos: livros, e escritores. Li muitos livros recomendados por B, e gostei de todos, como O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, que comecei a ler em uma livraria de Niteroi, bebendo Bohemia. Além de um dos leitores mais argutos que conheci, B era também mais experiente do que eu, e, à sua maneira, sábio.

Certo dia, numa das pausas da bebida, B profetizou que nossa geração só se tornaria sábia após os 60 anos. Estive, muitas vezes, à beira do abismo; caí no poço dos prazeres mais carnais, e frequentei aquela zona cinzenta dos alcoólatras, dos desesperançados, dos desesperados, dos danados, dos mortos-vivos. Contudo, há sempre alguém, ou algo – uma lembrança, uma voz, o voo em um sonho, uma rosa, o azul, o mar, personagens de ficção –, me levantando.

Já faz tempo que comecei a descer a ladeira. Às vezes, enfrento trechos muito inclinados, outros, alagados, mas cada vez mais encontro bosques e manhãs ensolaradas. Se antes, aos 21 anos, sentia-me leão, hoje, sinto-me leão de asas, como se montasse a luz, e comecei a descobrir o segredo da velocidade quântica, alimentado pela visão de uma rosa que se desnuda, do azul que sangra, por jasmineiros que choram nas noites ardentes, pelo som da Terra no espaço.

Um comentário: