quinta-feira, 11 de junho de 2015

Fim da censura a biografias não autorizadas. Casos de Roberto Carlos e Guimarães Rosa

Roberto Carlos e este jornalista, em 1976, em Manaus: o gênio e a celebridade do
compositor e cantor já haviam chegado ao topo, de onde Roberto nunca mais sairia

BRASÍLIA, 11 DE JUNHO DE 2015 – O Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou, ontem, por unanimidade, o fim da censura a biografias não autorizadas, apagando uma mancha que enodou a cultura brasileira desde sempre. Nenhum dos 9 ministros presentes concordou com o compositor e cantor Roberto Carlos, que queria a continuidade da mordaça. A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) foi impetrada pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) contra liminares de instâncias inferiores proibindo o lançamento de biografias não autorizadas. “Ah, então o biografado está desassistido? Não! O autor do livro pode ser processado, segundo o Código Penal, ora essa! O que se sente atingido também pode solicitar direito de resposta” – observa o jornalista Reinaldo Azevedo.

Em 2013, medalhões da MPB, como o ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque e Roberto Carlos, reunidos no grupo Procure Saber, defenderam que o direito à intimidade justificaria a necessidade de aval preliminar para a publicação de biografias. Roberto Carlos é um caso exemplar. Em 2006, o escritor Paulo Cesar de Araújo lançou Roberto Carlos em Detalhes; no ano seguinte, Roberto entrou na Justiça, que lhe deu ganho de causa e determinou que 11 mil exemplares fossem recolhidos das livrarias. Mas por que Roberto Carlos não quer sua biografia publicada? Roberto Carlos em Detalhes é um trabalho de fôlego sobre a história recente da música popular brasileira, tendo como eixo o genial cantor popular. Não há nenhum desabono ao artista. Ocorre que Roberto Carlos incorporou a lenda, e nesse aspecto o livro o desmitifica. Sua biografia mostra o ser humano, lutando como um peso pesado pela ribalta, o rapaz Roberto Carlos abrindo picada até a explosão do gênio e se tornar a celebridade que é hoje.

Em 1976, em Manaus, tive a oportunidade de passar cerca de meia hora na companhia de Roberto Carlos. Na época, assinava uma coluna semanal, No Mundo da Arte, no extinto jornal A Notícia, e a produção do jornal conseguiu entrevista exclusiva com Roberto, que fora apresentar-se na cidade e se hospedara no Hotel Amazonas. O chefe de reportagem instruiu-me a perguntar a Roberto se ele usava mesmo meia de mulher como touca, antes dos shows. Pergunta bizarra, mas que satisfaria o suposto perfil dos leitores do jornal, daquele tipo que espremido escorre sangue. Tudo bem! O problema era que o gravador estava falhando, e isso foi meu terror.

No hotel, nos conduziram, o fotógrafo e eu, ao corredor do apartamento onde Roberto estava hospedado, onde fomos recebidos por dois seguranças. Após alguns minutos de espera, Roberto saiu do apartamento e me deu a entrevista no corredor. Revendo o passado, com a lente do distanciamento e da experiência, percebo tudo com mais clareza. Roberto Carlos é carismático. Deixou-me à vontade e me senti como se fosse velho amigo dele. Perguntei-lhe sobre o negócio da meia, assunto que fora objeto de revista de fofoca. Ele me respondeu numa boa. Contudo não lembro mais do teor da entrevista, e depois, fiz tudo no automático, pois me sentia aterrorizado com o gravador, de olho nele, vigiando o rolo de fita girando. Era um velho gravador de tamanho médio. Assim, não prestei atenção à fala de Roberto. Mais tarde, na redação, degravando a entrevista, vi o quanto ela foi burocrática. Mas tudo bem! Restou-me uma fotografia com o Rei.

Naquela época, tive contato com muitas celebridades e pessoas que se tornaram, depois, celebridades, como, por exemplo, Jorge Amado, Grande Otelo, Nara Leão, Marika Gidali, Fafá de Belém antes da explosão, Márcio Souza antes de Galvez Imperador de Acre. Em Roberto Carlos senti, intensa, a genialidade se manifestando; é uma sensação de que tudo gira em torno do gênio, a orquestra girando em torno de Frank Sinatra, em torno de Roberto Carlos. Roberto já estava no auge, e se mantém até hoje no auge. Talvez, depois de tantas décadas na crista da onda, não consiga mais aceitar o que ele foi antes do sucesso: um rapaz, como tantos outros, que ralou, passou por humilhações, e que superou todas elas, mas era movido pela genialidade, e nada pode contra a genialidade.

Celebridades são públicas e, muitas vezes, peças importantes para os historiadores resgatarem certa época, daí porque censurar previamente uma biografia é tentar, inutilmente, lembremo-nos disso, amordaçar a história. Filosoficamente falando, biografias contêm tanta ficção e delírios quanto Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Assim, no caso de Roberto Carlos em Detalhes, o bom do livro são as histórias paralelas a de Roberto Carlos, esta, geralmente comum, de um rapaz lutando pelo sol, até chegar ao topo e, aí sim, surgirem alguns episódios interessantes. Não li o livro, mas li relatos de quem o leu.

De ordinário, poucas existências dão um romance movimentado. Ernest Hemingway foi um desses. Rubem Fonseca, nosso maior escritor vivo, por exemplo, o que teria de realmente interessante para se dizer dele? Paulo Coelho rendeu uma biografia movimentada, escrita por Fernando Morais. Márcio Souza renderá uma biografia interessante? Roberto Carlos rendeu, e ela será atualizada e irá para as livrarias. Se Roberto achar ruim, entrará na Justiça, mas dessa vez dificilmente conseguirá tirar os livros da prateleira.

CASO GUIMARÃES ROSA – Agora, temos um marco legal sobre o limite entre o direito à privacidade e o da informação sobre pessoas de notória projeção pública e celebridades. Até então, no Brasil, havia uma enxurrada de ações judiciais contra editoras e autores de biografias por parentes de biografados, pedindo dinheiro por dano moral e a retirada do livro de circulação. Em 2008, o jornalista Ruy Castro, ao lançar a biografia de Garrincha, foi processado duas vezes: pelas filhas e por uma ex-companheira do astro do futebol. Ruy ganhou um dos processos, mas foi condenado no outro pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estipulou indenização de 5% sobre o total de vendas do livro, com juros de 6% ao ano. Em 2009, depois que a imprensa divulgou que Ruy Castro estava escrevendo a biografia de Raul Seixas, o autor foi advertido por uma das cinco ex-mulheres do cantor baiano de que entraria na Justiça caso o livro fosse publicado.

Em 2007, uma pequena editora de Brasília, LGE, hoje Libri Editorial, publicou a biografia Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa, de 388 páginas, escrita pelo romancista e ensaísta goiano Alaor Barbosa. Vilma Guimarães, filha do gênio mineiro, e a Nova Fronteira, processaram a LGE, alegando que Sinfonia Minas Gerais é plágio de Relembramentos: João Guimarães, Meu Pai (Editora Nova Fronteira, 1983), de Vilma, que ela chama de biografia, mas que se trata de livro epistolar. Na ação, Vilma alegou que Sinfonia Minas Gerais “causa graves danos morais à imagem” de Guimarães Rosa (1908-1967) e “viola direitos autorais” dela e de “terceiros”, e acusa Alaor Barbosa de dizer que Guimarães Rosa era místico.

A ação era uma peça absurda e causou sérios danos à LGE. A Justiça mandou a editora retirar o livro das prateleiras em 24 horas. Recolher livros num país continental como o Brasil e nos tempos de hoje, com vendedores eletrônicos em cada esquina da internet, é outro absurdo. Além disso, o custo editorial é elevado e a retirada de um livro do mercado é brutal para uma editora pequena. Em agosto de 2013, a Justiça concluiu que não houve plágio e voltou atrás, mandando Vilma Guimarães e a Editora Nova Fronteira pagarem as custas da ação contra Alaor Barbosa e a LGE.

Diz o despacho da Justiça: “Não se verifica em Sinfonia Minas Gerais a utilização de mais de 10% da obra de Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos. O percentual não chega a 9,5%”; “A obra de Alaor Barbosa, Sinfonia Minas Gerais, se sustenta e é útil ao conhecimento da vida do biografado e também como obra literária, mesmo sem as referências à obra de Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos, ou seja, ainda que os trechos concernentes ao livro da autora do processo sejam suprimidos, o livro Sinfonia Minas Gerais tem função e interesse histórico e literário”. E afirma que ao citar Vilma e outros autores Alaor Barbosa os identifica com precisão, não omitindo, hora alguma, suas fontes.

Alaor Barbosa afirmou, na sua defesa, que as autoras da ação pretendiam garantir reserva de mercado para faturar em cima de Guimarães Rosa: "A Editora Nova Fronteira acaba de relançar obra de autoria de Vilma Guimarães Rosa, intitulada Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, livro publicado em 1983, com pouco sucesso comercial e que não se configura tecnicamente uma biografia, mas sim um livro que procura mostrar, em sua visão de filha de Guimarães Rosa, quem seria o seu pai, principalmente por meio da transcrição de cartas escritas e recebidas por Rosa ao longo de sua vida. Evidente que as autoras da ação se aproveitam do ano de centenário de morte de Guimarães Rosa para, absurdamente, tentarem obter vantagens econômicas; sendo certo que buscam o Poder Judiciário visando a uma espécie de exclusividade em relação à história de um dos maiores escritores brasileiros; história esta cuja importância em muito transcende os laços de parentesco. Trata-se, como restará demonstrado, de uma evidente pretensão de apropriação da figura, da vida e da obra de João Guimarães Rosa por parte de uma sociedade editorial de grande porte, que, repita-se, tenta se utilizar do Poder Judiciário para potencializar o seu já notável poderio econômico; buscando, absurdamente, vedar a concorrência”.

E quem é esse Guimarães Rosa que não pode ter sua vida revelada por uma biografia? “Sou um sertanejo” – disse, durante uma das raríssimas entrevistas que concedeu, a Günter W. Lorenz, em Gênova, em janeiro de 1965. Entre os monstros brasileiros da ficção, Guimarães Rosa, que se comunicava em mais de uma dezena de idiomas, foi um dos que mais fundo mergulhou na língua brasileira. “Nosso português-brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa. E, além de tudo, tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está saturada. Ainda é uma língua jenseits Von Gut und Bose (Além do Bem e do Mal, título de um livro de Nietzsche), e, apesar disso, já é incalculável o enriquecimento do português no Brasil, por razões etnológicas e antropológicas” – disse Rosa a Lorenz. “Pelo processo de mistura com elementos indígenas e negroides com os quais se fundiu no Brasil...” – disse Lorenz, a que Rosa replicou: “Exato, este foi um enriquecimento imenso e já pode ser notado no exterior pela quantidade de diferentes dicionários europeus e americanos do mesmo idioma. Naturalmente, tudo isso está à nossa disposição, mas não à disposição dos portugueses. Eu, como brasileiro, tenho uma escala de expressões mais vasta que os portugueses, obrigados a pensar utilizando uma língua já saturada”.

Guimarães Rosa, como todo grande artista, precisa ser biografado, analisado, esmiuçado, independentemente dos familiares dele, pois foi um artífice único na recriação do mundo singular do sertanejo mineiro, daí porque é um dos escritores brasileiros mais estudados e traduzidos na Europa, na tentativa, malograda, de os europeus compreenderem o trópico. Assim, compreender o mundo de Rosa é enxergar uma faceta da pedra angular da cultura brasileira. É isso que Alaor Barbosa faz, lança luzes sobre a vida e a obra do gênio mineiro. “Creio que minha biografia não é muito rica em acontecimentos. Uma vida complemente normal” – disse o monstro das Alterosas a Lorenz, em 1965, dois anos antes de morrer. É fato. Guimarães Rosa foi sertanejo e funcionário público, diplomata; um sujeito tão discreto que parecia se esconder, e isso Alaor Barbosa resgata.

A biografia escrita por Alaor Barbosa é adiposa. Vilma se queixou na Justiça de que o escritor goiano fez inúmeras citações do seu livro epistolar Relembramentos. Alaor pode extirpar todas essas citações que, ainda assim, a biografia do monstro sagrado continuará inchada como os pés de um pinguço. Alaor reconstruiu a geografia de Rosa, psicanalisou-o e resgatou o dia-a-dia do criador de Grande Sertão: Veredas.

Na época desse imbróglio, a filha de Alaor, Noemia Barbosa Boianovsky, bacharela em Relações Internacionais, jornalista, advogada, consultora da Câmara Legislativa do Distrito Federal, endereçou uma carta para Vilma Rosa:

“Vilma,

“Nasci filha de escritor. Doei para o meu pai, desde o meu nascimento, longas horas da minha infância e da minha adolescência. Meus irmãos doaram outras tantas horas. Minha mãe dividiu o marido, durante décadas, com sua amante, a literatura. Mas meu ciúme de criança foi se atenuando, ao longo dos anos, e mais ainda com o chegar da maturidade. Passei a admirá-lo, respeitá-lo, reverenciá-lo. Principalmente, passei a compreendê-lo. Literatura, para o meu pai, o escritor Alaor Barbosa, é e sempre foi devoção. Triste do filho ou da filha que não respeita e nem compreende as devoções paternas.

“Assim como você, também sou herdeira de uma obra literária. Grande, extensa, profunda, séria. Fruto de muito trabalho, pesquisa e esforço, feita com paixão e talento. Obra reconhecida e tantas vezes premiada. Falo de quase meio século de produção literária, tempo bem maior do que eu mesma tenho de vida. Meu pai, Vilma, já era escritor antes de eu nascer.

“Tenho a sorte de ter meu pai comigo, avô carinhoso das minhas filhas, em almoços de domingo. Vivo, feliz e produtivo. Mas já estou de posse da herança que ele me legou. Foi uma partilha sem desavenças, entre a família e os amigos. Não a herança material, mensurável, quantitativa, que se deposita em conta bancária. Desta, basta-nos o óbolo de Caronte. O que recebi de meu pai foi um norte, um rumo, um equilíbrio, um eterno buscar da verdade. O amor e o respeito por tudo de bom que o ser humano já produziu.

“Você, Vilma, também recebeu uma herança. Magnífica herança, portentosa, imensurável. A herança de um gigante. A herança de um gênio, primus inter pares. Temos, portanto, responsabilidades. Eu e você. A minha, talvez mais leve, é a de impedir que a herança de meu pai seja aviltada, desqualificada, vilipendiada. Isso, tenha certeza, não acontecerá. As inverdades, calúnias e difamações são muito fugazes e, uma vez reveladas, deixam despida aquela que as inventou. Aliás, é assim que eu vejo você: despida, nua, pelada. Porque mais marcado será sempre o caluniador do que o caluniado. Já a sua responsabilidade, Vilma, é a de não abastardar, não apequenar, não diminuir a sua herança, o seu legado. A obra do seu pai é universal. Não a amesquinhe, não reduza a herança à estatura da herdeira.

“Num país como o nosso, Vilma, tão carente de cultura, tão necessitado de modelos, tão merecedor de exemplos, resta-me recordar as palavras de outro ídolo de meu pai, Monteiro Lobato, cuja biografia para crianças também saiu da máquina de escrever Olivetti que havia na biblioteca lá de casa. Lobato disse que um país se faz com homens e livros. Você, portanto, quando tenta impedir a existência de um livro, de uma obra literária, espanca a inteligência nacional, ofende a tantos que tombaram em nome da liberdade e do direito de expressão e do livre pensamento! Talvez, Vilma, seu tempo tenha passado. Imagino você mais feliz vivendo uma outra época – mais escura do que a de agora. Talvez sob o Estado Novo ou abrigada pelo AI-5. Imagino você, Vilma, com um carimbo de censura na mão — arma formidável! – detentora exclusiva da faculdade de permitir ou não que alguém leia, fale ou pense. Para nossa sorte e infelicidade sua, vivemos tempos mais claros. E você, faça o que fizer, diga o que disser, jamais impedirá meu pai de ler, escrever, falar ou pensar. Nem meu pai nem ninguém.

“Portanto, Vilma Rosa, não acenda fogueiras com livros. O fumo do livro incinerado escurece uma nação.

“Cada um de nós tem seus próprios ídolos. Sorte do meu pai, que fez boas escolhas. Os seus, parecem ser o Index Librorum Prohibitorum, o Santo Ofício, Savonarola e Torquemada. Talvez, até Herr Goebbels... Eu, que também tenho os meus, cito um deles: você vai amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença...

“Lembre-se, Vilma, você é apenas uma filha. Você é apenas uma herdeira que avilta a herança magnífica que recebeu, constatar que nem tudo que Guimarães Rosa nos deixou é tão bom quanto a sua obra literária”.

SERVIÇO

Antonio Carlos Navarro, editor da Libre Editorial, colocará em breve Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa nas livrarias. Este e outros títulos do catálogo da editora deverão ser pedidos pelo e-mail: atendimento@lereditora.com.br

Ou pelo telefone: (55-61) 3362-0008

Ou ainda na Libri Editorial: SIG (Setor de Indústrias Gráficas), Quadra 3, Lote 49, Bloco B, Loja 59 – Brasília/DF - CEP 70610-430

Os livros de contos O CASULO EXPOSTO e NA BOCA DO JACARÉ-AÇU – A AMAZÔNIA COMO ELA É (último volume da trilogia AMAZÔNIA), de Ray Cunha, também estão disponíveis no catálogo da Libri Editorial.


Com Agências

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