quarta-feira, 4 de maio de 2011

Almoço de trabalho no Porcão

Vista noturna do shopping Conjunto Nacional,
em Brasília, onde se passa a trama do conto
Almoço de trabalho no Porcão


Do balcão do Café Doce Café, defronte à Livraria Sodiler, no átrio central do shopping, Galicíssimo abarcava todo o largo hall do Conjunto Nacional, selecionando e acompanhando com o olhar as mulheres sensuais até perdê-las de vista no labirinto de corredores. O passa-passa era intenso. Divisou a jornalista ainda no passeio público. Tratava-se de uma mulher surpreendente: uma mulata ruiva.

- Estou ansiosa para ver o livro – Yanna foi logo dizendo.

Galicíssimo apanhou o envelope que depusera no balcão e tirou dele um livro. A capa era um óleo de André Cerino - uma boca, uma rosa vermelha, colombiana. O livro intitulava-se: “O perfume das virgens ruivas”. Yanna pegou-o, sôfrega, e o abriu na folha de rosto. Estava lá: “Para Yanna Silva Bergman, jasmineiro em noite tórrida do verão amazônico, que nos faz mergulhar na dimensão do cio”.

- Meu poeta! - disse Yanna. Puxou Galicíssimo e o beijou, limpando o batom que carimbara nos lábios do homem de cara de terçado.

Galicíssimo era baixinho - teria um metro e sessenta, mais ou menos -, magricela, estrábico e de cabelos grisalhos, embora só tivesse quarenta e três anos. Mas isso era compensado por epiderme maravilhosa, lisa e rosada como a pele de um bebê. Sua expressão era a de uma criança perdida, despertando nas mulheres o instinto materno. Contudo o que lhe originara o apelido, Galicíssimo, fora seu talento para lidar com as mulheres. Podia-se, nesse caso, aplicar-lhe perfeitamente o ditado que reza: não há mulher difícil; há mulher mal cantada. Em outras palavras, não há mulher que resista a sentir-se princesa; isso as enlouquecem completamente, torna-as reféns absolutamente indefesas e as leva a cometer qualquer crime. Bastava meia hora de papo para as vítimas grudarem, literalmente, em Galicíssimo, que possuía o dom de dissecar a alma feminina com a mesma eficiência de um anatomista que vasculha o corpo humano em busca de compreender melhor a posição dos órgãos, ossos, músculos, tendões, artérias e tecidos, já tão estudados e catalogados. Educara-se em um meio bastante parecido ao de Gabriel García Márquez. Teve um avô como ponto de referência e o resto da casa eram mulheres. Tornara-se, assim, um observador, um analista, um especialista em mulheres, adivinhando os mais recônditos desejos “dessas crianças grandes, dessas criaturas divinas, dessas flores tão delicadas, que se defendem, quando muito, munidas apenas de miseráveis espinhos”. Todas buscavam, pura e simplesmente, consolo, por uma razão da qual não podiam escapar: são todas inconsoláveis. Era então que Galicíssimo dava o pulo do gato, exibindo um instrumento insuspeito, magnífico, que transformava mulheres tristes em tarântulas subindo pelas paredes e se voltando para encarar o surpreendente membro fálico. “Os psicoterapeutas confortam os homens menos dotados informando-os de que as mulheres gozam mais devido ao carinho, às preliminares, como dizem, e não a um pênis grande, mas todo homem quer ter o pênis de pelo menos dezesseis centímetros. O meu tem doze centímetros; chega a treze centímetros nos momentos de muita inspiração. Segundo os psicoterapeutas, até esse tamanho ainda é normal. Todas as mulheres que espetei gozaram; às vezes, experimentam gozos múltiplos. Mas acho que as deixaria bastante impressionadas se tivesse pelo menos dezesseis centímetros de pênis” – disse, certa vez, Boi Bambo. “Boi Bambo entende mais é de porrada” – Galicíssimo pensou, naquela ocasião.

Acendeu um Hilton. Tinha uma única filha, Eneida, de vinte e seis anos; estava fazendo mestrado em Paris. Era viúvo. Natural de Belém do Pará, já vivia há muito tempo em Brasília, “a cidade mais estrangeira do mundo, mas a única capaz de me proporcionar 30 mil reais por mês” – pensou. Marqueteiro dos bons na superfície, era, na verdade, poeta; poeta nos sete oitavos do seu iceberg pessoal. Viu Boi Bambo emergir do formigueiro defronte ao shopping e materializar-se à sua frente. Deveria chamar-se Boi Zebu, pois tinha o alto das omoplatas gordo como cupim. Seu andar era pesado e lerdo, meio bambo, como se estivesse dançando. Abriu-se em largo sorriso, estendendo a pata ao colega.

- Três espressos curtos – Galicíssimo pediu à moça do balcão.

- Ele pagou tudo, até o último centavo - disse Boi Bambo, adoçando com açúcar o forte, fumegante e amargo robusta. Sua cabeça só faltava ter chifres para ser mesmo boi. Era grandalhão e gordo como um barril. Quando caminhava, apenas suas pernas se moviam. Os braços pareciam dois quartos de boi pendurados no tronco roliço. Seus olhos lembravam os de uma boneca, fechando-se e abrindo-se lentamente, sem que nenhum outro músculo do seu corpo se movesse. Usava Chanel Número Cinco e terno branco, de linho irlandês; era capaz de sair de uma briga de rua tão alinhado quanto entrara. Treinara na Joe Louis, em Belém.

- Tudo? – disse Galicíssimo, incrédulo. Yanna não desgrudava os olhos do livro.

- Bem, tive de convencê-lo - continuou Boi Bambo. - Estive ontem lá e disse a ele: vou voltar amanhã cedo e se tu não estiveres aqui, com meu dinheiro, levarei um pedaço teu - um dedo, uma orelha, um ovo, qualquer pedaço, desde que tu fiques vivo. Ele me olhou com uma cara enfadada. Então mostrei a Glock a ele e expliquei que ela é uma pequena metralhadora, que poderia varrer sua flor do jardim de trás do mapa em alguns segundos. Tu sabes, vai sobrar muito dinheiro da campanha e o canalha do tesoureiro vai ficar com uma grana preta; se não recebêssemos logo, o nosso candidato ia querer pagar com cargos de assessoria especial ou uma sinecura qualquer, e se perder estas eleições, aí é que não veríamos a cor da grana, embora saibamos que ele não vai perder; as pesquisas mostram que ganhará no primeiro turno.

- Já me sinto culpado só de participar da campanha desse cretino; não quero fazer parte da quadrilha dele trabalhando no governo – disse Galicíssimo.

- Eu pago o almoço, hoje – disse Boi Bambo. – Vamos comer no Porcão! Darei os cheques de vocês lá e discutiremos melhor os passos finais da campanha.

Era o início da tarde. O sol fazia a grama estalar como palha. Em setembro, o tempo é seco como o Saara. Isso começa em julho e vai até outubro. Setembro estava no fim. Cigarras gritavam em qualquer árvore que escapou do concreto de Oscar Niemeyer; a Esplanada dos Ministérios, devastada pela prancheta do famoso arquiteto, tremia à onda de calor que sufocava a decrepitude precoce da cidade-estado. O automóvel, grande e negro, deixou para trás a Praça dos Três Poderes rumo ao Lago Sul. Do vidro da janela do carona Boi Bambo atirou um toco de cigarro na grama seca, que logo começou a crepitar.


Taguatinga Sul-DF, 2002/Valparaíso de Goiás, 14 de abril de 2007


SERVIÇO

O conto Almoço de trabalho no Porcão integra o livro O casulo exposto (LGE Editora, Brasília, 153 páginas, R$ 28), que enfeixa 17 contos ambientados em Brasília, inclusive o submundo político da capital. O fato de eu trabalhar desde 1987 como jornalista na cidade-estado, cobrindo amplamente o Distrito Federal, o Entorno (cidades goianas que o cercam) e o Congresso Nacional, municiou-me da ambientação dessas 17 histórias curtas. O prefácio é do escritor e jornalista Maurício Melo Júnior, apresentador do programa Leituras, da TV Senado, e a capa é assinada pelo artista plástico, cartunista e chargista André Cerino. O casulo do título do livro refere-se à redoma legal que engessa o Patrimônio Cultural da Humanidade, a borboleta de Lúcio Costa, ninfa golpeada no ventre, as vísceras escorrendo como labaredas de luxúria, depravação e morte nos subterrâneos da cidade dos exilados.

A fauna que transita na esfera política e chafurda nos subterrâneos brasilienses é heterogênea, e tenta sobreviver na ilha da fantasia, que arde numa imensa fogueira das vaidades. Políticos, inclusive daquele tipo mais vagabundo, que não pensa duas vezes antes de roubar merenda escolar; jornalistas se equilibrando no fio da navalha; tipos fracassados e duplamente fracassados; estupradores; assassinos; bandidos de todos os calibres, se misturam, nos contos, numa zona de fronteira fracamente iluminada. Contudo, a ambientação de sombra e luz tresanda, também, a perfume e a romance.

Pedidos ao editor – Livreiros interessados em fazer pedido de O casulo exposto ao editor devem entrar em contato com Antonio Carlos Navarro, pelo e-mail: lgeeditora@lgeeditora.com.br, ou pelo telefone (55-61) 3362-0008. A loja virtual da LGE Editora (www.lojalge.com.br) também atende a pedidos de apenas um exemplar e o envia ao endereço do cliente.

Autor  Contato com o autor pelo e-mail: raycunha@gmail.com

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