sexta-feira, 5 de julho de 2024

O perfume das virgens ruivas

Ray Cunha, fotografado pelo pintor André Cerino (2013)

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 5 DE JULHO DE 2024 – O olfato é dos sentidos o mais primitivo, com a capacidade de provocar desejo ou repulsa. Daí que a memória olfativa é fundamental para o equilíbrio mental. Por exemplo: bebês identificam suas mães pelo cheiro. Os animais, em geral, identificam presas e ameaças, e encontram fêmeas no cio pelo cheiro. Incêndios, vazamento de gás, comida queimada, identificamos pelo cheiro. As pessoas têm cheiros característicos, assim como as cidades, as casas, as circunstâncias das nossas vidas. 

Um dos romances mais impressionantes é O Perfume – História de um Assassino, do escritor alemão Patrick Süskind, sucesso mundial, publicado pela primeira vez em 1985. O livro conta a história de Jean-Baptiste Grenouille, um homem que possui um olfato extraordinário, tornando-o capaz de se orientar apenas pelos cheiros. Mas ele não possui odor próprio, o que faz dele um fantasma. “O odor é a essência, e o que não tem essência não existe” – observa Süskind. 

A fim de ser notado pelos outros, Grenouille se torna perfumista e cria essências que utiliza de acordo com as circunstâncias. Jovem ainda, Grenouille encontra uma moça com cheiro absolutamente diferente de todos os perfumes que ele guardava na memória e se torna obcecado por apoderar-se desse odor. Então assassina-a e captura o cheiro do corpo da jovem por meio de técnicas de perfumista. Mas ele quer o perfume perfeito e mata mais 26 jovens mulheres para captar suas essências. 

Cria, afinal, o perfume. Mas, frustrado por ele mesmo não ter cheiro, banha-se com o frasco do perfume perfeito e a visão que tem dele um grupo de prostitutas e ladrões reunidos em uma praça é de um deus sedutor, tão sedutor que é devorado até o último pedacinho pela escória de Paris. 

Cheiros são como a espinha dorsal da nossa vida. Vejam o meu caso. Eu devia ter quatro ou cinco anos quando isso aconteceu. Minha casa, que ficava na esquina das ruas Iracema Carvão Nunes e Eliezer Levy, ao lado do Colégio Amapaense, em Macapá/AP, era frequentada por algumas adolescentes, amiguinhas das minhas irmãs, e uma delas lembrava um arbusto ruivo, uma deusa, como são todas as adolescentes. 

O banheiro ficava no quintal, tinha meio tambor de querosene de aviação que servia como caixa d’água e tomávamos banho despejando água na cabeça com uma lata de leite Ninho ou de óleo. Um dia, a adolescente ruiva (talvez nem fosse ruiva, mas lembro-a assim) foi dar banho em mim e tomar banho também. 

Quando ela tirou a roupa o planeta parou, ou as coisas começaram a andar rápido como a luz. Meu rosto ficou quase da altura do púbis dela, um sol. E então senti o perfume das virgens ruivas. Trata-se de um cheiro de liberdade. Liberdade total. Hoje, quando sinto esse cheiro, eu me transformo em leão de asas, e diante de mim abrem-se inumeráveis possibilidades. É algo tão bom que podemos senti-lo a qualquer momento, basta que tenhamos o gatilho para isso. 

Os cheiros ensinam muitas coisas. Uma delas é que a matéria é apenas uma ilusão, criada não somente pela ótica, o tato, a audição, o paladar, mas, principalmente, pelo cheiro, pois que os cheiros contêm todos os demais sentidos, e eles só existem na memória. 

O perfume das virgens ruivas é azul, é como o primeiro beijo, como ouvir Amira Willighagen, aos 9 anos, cantando Ave Maria, de  Charles Gounod e Johann Sebastian Bach, comer ostra com Antarctica enevoada às 9 horas, em Salinas/PA, no verão. 

Há cheiros que nunca os esquecemos, porque enobrecem a nossa vida, como o cheiro da casa dos meus pais, do feijão com arroz da minha mãe, da minha filha quando era bebê, da minha amada, o cheiro das madrugadas prenhes do perfume dos jasmineiros, em Macapá, de rosas colombianas, do Rio Amazonas.

Esses cheiros são como certos poemas, certas personagens de ficção, certos contos e romances que escrevemos sozinhos, de madrugada, como deuses criando mundos. Aí, dou uma pincelada de azul aqui e ali, como acho que faz Olivar Cunha ao criar seus mundos. São essas reminiscências, inclusive de vidas passadas, que nos conduzem. Certa vez Olivar Cunha disse que “a vida é um tesão”. Sim, é, por causa do perfume das virgens ruivas.

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