segunda-feira, 15 de abril de 2024

Copacabana

RAY CUNHA 

BRASÍLIA, 15 DE ABRIL DE 2024 – A última vez que estive em Copacabana ocorreu no fim de fevereiro e início de março. Fui ao Rio para uma sessão de autógrafos do meu romance JAMBU, no restaurante Belém Belém Amazônia, no Posto 6, e para checar alguns endereços que entram no meu próximo romance. Fazia 40 graus à sombra, Copacabana fedia a esgoto e dos calçadões brotavam moradores de rua. 

Morei na Rua República do Peru, entre a Tonelero e a Barata Ribeiro, em 1972, dos 17 aos 20 anos, e estava trabalhando no meu primeiro livro solo de poemas. Já havia participado de uma coletânea, juntamente com mais dois poetas de Macapá/AP, minha cidade natal: Joy Edson (José Edson dos Santos) e José Montoril. Em 1971, publicamos XARDA MISTURADA. No Rio, escrevi Essa Copacabana Triste Mulher: 

Tua boca é pura flor embelezando-se ao sol de Copacabana

E tua figura é um desenho gostoso esculpido ao sol de Copacabana

E quando Copacabana inteira se prostituir

Os gemidos de amor serão a canção da moda em

Copacabana

Então a praia Copa será uma enorme cama. 

É como eu via Copacabana, uma rosa colombiana desnudando-se ao sol do Trópico, ao som de Tom Jobim, ou de Jorge Ben Jor. Rubem Braga fizera 22 advertências, em 1962, para a danação de Copacabana: 

1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas. 

2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite. 

3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia. 

4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas. 

5. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão. 

6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão. 

7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska. 

8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum. 

9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão. 

10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação. 

11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência. 

12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei. 

13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia. 

14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações. 

15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados? 

16. Antes de te perder eu agravarei a tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão. 

17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará. 

18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas. 

19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão. 

20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis – tudo passará. 

21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares. 

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas joias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana! 

Porém eu digo: Copacabana é pura como o azul do Atlântico e imortal como as rosas colombianas. A Princesinha do Mar está inteira, e mais bela do que nunca. Vista da Confeitaria Colombo, no Forte de Copacabana, até o Leme, a Avenida Atlântica é a praia mais esplendorosa do mundo. 

Acabo de ler Na multidão (Companhia das Letras, São Paulo, 2007, 176 páginas), de Luiz Alfredo Garcia-Roza, o maior escritor policial brasileiro. Ele criou o delegado Espinosa, que mora no Bairro Peixoto e é titular da 12ª DP, na Rua Hilário de Gouveia, entre a Barata Ribeiro e a Tonelero, e quase não sai da Zona Sul. 

Os grandes escritores conseguem transmitir emoção para o leitor por meio dos cinco sentidos. Sentimos cheiros, sabor, vemos, ouvimos e pegamos. Ernest Hemingway, por exemplo. E assim é com Garcia-Roza. Ele legou doze romances. Li dez. Faltam dois. Chegou a hora de poupar, ler esses dois que faltam bem devagar, como fazia Hemingway com Joseph Conrad. 

Garcia-Roza era psicanalista e professor universitário, graduado em psicologia e filosofia. Talvez isso tenha lhe dado ferramentas para criar as personagens que ele forjou, como o delegado Espinosa, um homem comum, com dúvidas, angústias e solidão, mas estruturado em uma liga inquebrável: Espinosa é incorruptível. Esse é o princípio que o norteia em meio a um mar de corrupção. 

Garcia-Roza nasceu em Copacabana, em 1936, daí que conhecia a fundo o bairro, pois, como todo bom escritor, via o que as pessoas geralmente não veem, e, certamente, gostava de caminhar pelas ruas do bairro. Assim, já tinha o ambiente de Espinosa, quando o criou. Quanto aos demais personagens, procurava conhecer suas entranhas. Mais do que solucionar os crimes, Espinosa quer entender por que os cometeram, como no caso do assassino de Na Multidão. 

Uma senhora procura o delegado, na 12ª DP, mas Espinosa está em reunião. Ela diz que precisa ir, porém voltará mais tarde. Vai embora e é atropelada e morta em uma esquina apinhada de gente, em horário de pico. Entretanto, testemunhas dizem que pareceu que ela foi empurrada. 

Surge um suspeito, ligado à morte de uma menina, 40 anos atrás, no Bairro Peixoto. Uma amiga da senhora que morreu atropelada aparece morta, com o pescoço quebrado. E ambas eram amigas da mãe do suspeito, que morreu em circunstâncias suspeitas. Mas não há prova alguma. Apenas suspeita. Até que Espinosa descobre que ele é o próximo.

Não é só isso. As 176 páginas de Na Multidão estão recheadas de surpresas, suspense, erotismo e Copacabana. Delícia!

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